sexta-feira, 11 de março de 2022

A casa da fonte

Uma vez, uma menina foi morta, mas depois foi ressuscitada. A questão é que disseram aos parentes que a menina estava morta, mas não a entregaram (estavam todos viajando juntos num ônibus, mas na hora da explosão ela estava de pé na parte da frente, e os pais, sentados atrás). A menina era jovenzinha, tinha quinze anos, e a explosão a havia jogado longe.
Enquanto chamavam a ambulância, enquanto separaram os feridos e os mortos, o pai segurou a menina nos braços, apesar de estar claro que ela havia morrido, e de o médico ter constatado a morte. Depois foi preciso levar a menina embora, mas o pai e a mãe subiram na mesma ambulância e foram com a filha até o necrotério.
Ela estava deitada na maca como se estivesse viva, mas não tinha nem pulso, nem respiração. Disseram aos pais que fossem para casa, mas eles não queriam — ainda não era hora de entregar o corpo, tinham que esperar todos os trâmites da justiça e da medicina legal, isto é, a autópsia e o estabelecimento das causas.
Porém o pai, enlouquecido pela dor, e ainda por cima cristão praticante, decidiu roubar a filha. Ele levou a esposa para casa, ela já estava quase sem consciência, aguentou a conversa com a sogra, acordou a vizinha, que era da área médica, e pediu o avental branco dela; em seguida, depois de pegar todo o dinheiro que havia em casa, foi para o hospital mais próximo, ali alugou uma ambulância vazia (eram duas da madrugada) e, com uma maca e um auxiliar de enfermagem de uniforme branco, se infiltrou no hospital onde mantinham a filha; evitando o segurança, desceu pela escada rumo ao corredor no porão, entrou calmamente no necrotério. Não havia ninguém ali. Logo encontrou sua filha, colocou-a na maca com a ajuda do auxiliar de enfermagem e em seguida, depois de chamar o elevador de carga, subiu com o seu
fardo até o terceiro andar, para a unidade de terapia intensiva. Ele havia planejado tudo ali, enquanto esperavam a decisão da noite na sala de espera.
Ali ele deixou o auxiliar de enfermagem ir embora e depois de uma breve conversa com o médico da UTI , depois de entregar um maço de dinheiro para ele, deixou a filha nas mãos do médico na ala de terapia intensiva.
Como ela não tinha um prontuário, o médico pelo visto concluiu que o pai havia chamado a ambulância e trazido a paciente (morta pouco antes) para o hospital mais próximo. O médico da UTI via muito bem que a menina não estava viva, mas ele precisava muito do dinheiro, a mulher acabara de dar à luz uma criança (também menina), e todos os nervos daquele médico estavam no limite. A mãe dele não gostava da esposa, e as duas se revezavam no choro, a criancinha também chorava, e no hospital ele ainda cumpria o turno da noite. Precisava conseguir dinheiro e alugar um apartamento. O que o pai enlouquecido (claramente) daquela princesa morta havia oferecido a ele era o suficiente para viver seis meses num apartamento alugado.
Sem falar uma palavra, o médico se lançou à tarefa como se diante dele de fato houvesse uma pessoa viva, mas mandou o pai vestir o uniforme do hospital e o deitou na cama ao lado na mesma UTI , já que aquele doente estava absolutamente resolvido a não abandonar a filha.
A moça jazia branca como mármore, o rosto de uma incrível beleza, e o pai olhava para ela sentado em sua cama com olhar meio estranho. Uma pupila dele ia para o lado o tempo todo, e quando aquele louco piscava, as pálpebras se descolavam com grande dificuldade.
O médico, observando-o, pediu à enfermeira que o submetesse a um eletrocardiograma, e depois aplicou uma injeção naquele novo paciente. O pai apagou rapidamente. A menina ficou deitada como a bela adormecida, ligada aos aparelhos. O médico cuidava dos procedimentos dela, fazendo todo o possível, ainda que agora ninguém o controlasse com aquele olhar fugidio. Para falar a verdade, aquele jovem doutor era um fanático, para ele não existia nada mais importante no mundo do que um caso grave e interessante, do que um paciente, não importa quem, sem nome e individualidade, no limiar da morte.

O pai dormia, e no sono ele se encontrou com a filha. Quer dizer, ele foi visitá-la, como ia à colônia de férias fora da cidade. Ele pegou comida, por algum motivo só um sanduíche com recheio de almôndegas, só isso. Subiu no ônibus (de novo o ônibus) numa maravilhosa noite de verão, em algum canto perto da estação de metrô Sókol, e foi para aquele lugar paradisíaco. Nos campos, entre suaves colinas verdes havia uma enorme casa cinzenta com arcos que iam até o céu, e quando ele transpôs esse portão gigante e entrou no pátio, ali, no gramado de esmeralda, estava uma fonte do tamanho de uma casa, um fluxo de água firme que se desfazia no alto, com um penacho espumante. Havia um longo pôr do sol de verão, e o pai com satisfação passeou rumo à entrada à direita do arco e subiu para um andar alto. A menina o encontrou um pouco contrariada, como se ele a estivesse atrapalhando. Estava de pé, olhando para o lado. Como se ali transcorresse sua vida particular, própria, que já não dissesse respeito a ele. Eram os assuntos dela.
O aposento era enorme, com tetos altos e janelas muito largas, e dava para o sul, na sombra, para a fonte que ficava ao lado, iluminado pelo sol que se punha. A fonte era ainda mais alta que a janela.
Trouxe um sanduíche de almôndega, como você gosta — disse o pai.
Ele se aproximou da mesinha debaixo da janela, pôs seu pacote sobre ela, pensou e o desenrolou. Lá estava o estranho sanduíche, dois pedacinhos de pão preto barato. Para mostrar à filha que havia almôndegas dentro, ele abriu as fatias. Ali dentro havia (ele logo entendeu) um coração humano cru. O pai ficou inquieto porque o coração não estava cozido e não dava para comer o sanduíche. Enrolou-o de volta no pão e disse, sem jeito:
Eu me confundi com o sanduíche, vou trazer outro pra você.
Mas a filha se aproximou mais e olhou para o sanduíche com uma expressão estranha no rosto. O pai tentou esconder o pacote no bolso e apertou com a palma da mão, para que a menina não pegasse.
Ela estava de pé ao lado dele, de cabeça baixa, com a mão estendida:
Me dê, papai, estou com fome, estou com muita fome.
Você não vai comer essa porcaria.
Não, me dê — disse ela com dificuldade.
Ela estendia o braço flexível, muito flexível, para o bolso dele, mas o pai entendia que, se a filha pegasse aquele sanduíche e comesse, ela morreria.
E então, virando-se, ele puxou o pacote, abriu-o e começou a comer rapidamente o coração cru. Na mesma hora sua boca se encheu de sangue. Ele comeu aquele pão preto com sangue.
Agora eu também vou morrer”, pensou ele, “que bom que vou antes dela.”
Me escute, abra os olhos! — alguém disse.
Com dificuldade ele descolou as pálpebras e viu, como uma névoa, numa moldura que se desfazia, o rosto do jovem médico.
Estou ouvindo — respondeu o pai. — Qual é o seu tipo sanguíneo?
O mesmo da minha filha.
Tem certeza?
Sim, é isso mesmo.
Ali mesmo o levaram para algum lugar, amarraram um torniquete no braço esquerdo, puseram uma seringa na veia.
Como ela está? — perguntou o pai.
Como assim? — perguntou o médico, concentrado em sua tarefa.
Viva?
O que você acha? — resmungou o médico.
Está viva?
Deite-se, deite-se — exclamou o bom doutor. O pai se deitou, escutando alguém agonizar e chorar ao lado.

Em seguida já estavam atarefados cuidando dele, e ele de novo foi embora para algum lugar, de novo estava verde ao redor, mas então foi despertado por um barulho: a filha, deitada na cama ao lado, agonizava alto, como se lhe faltasse ar. O pai olhou para ela de lado. O rosto dela estava branco, a boca se entreabriu. Do braço do pai para o braço da filha corria sangue vivo. O pai se sentia leve, apressava a passagem do sangue, queria que todo ele corresse para a filha. Queria morrer para que ela ficasse viva.
Depois ele se viu ainda no mesmo apartamento, no enorme prédio cinza. A filha não estava. Ele foi procurá-la com calma, examinou todos os cantos daquele apartamento luxuoso com muitas janelas, mas não achou ninguém. Então ele sentou no sofá, depois deitou. Estava tranquilo, sereno, como se a filha já estivesse instalada em algum lugar, vivesse de forma alegre, e ele pudesse descansar. Ele (no sonho) começou a adormecer, e então a filha apareceu. Entrou no quarto como um turbilhão, logo parou ao lado dele como uma coluna de vento rodopiante, uivou, sacudiu tudo em volta, cravou as unhas na dobra do braço direito do pai, de tal forma que penetraram na pele. A pontada foi forte, e ele começou a gritar de terror e abriu os olhos. O médico acabara de introduzir uma agulha na veia do seu braço direito.
A menina estava deitada ao lado, respirando com dificuldade, mas já não agonizava tanto. O pai se soergueu, apoiando-se no cotovelo, viu que seu braço esquerdo já estava livre do torniquete e com curativo, e se dirigiu para o médico:
Doutor, preciso fazer uma ligação urgente.
Não me fale em ligação — retrucou o médico –, por enquanto não tem nada que ligar. Deite, senão você também vai… deslizar…
Mas antes de sair ele deu seu celular, e o pai ligou para a mulher, mas não havia ninguém em casa. A mulher e a sogra pelo visto haviam ido sozinhas, de manhã cedo, para o necrotério, e agora estavam enlouquecidas, sem entender onde estava o corpo da filha.

A menina já estava melhor, mas ainda não tinha recuperado a consciência. O pai tentava ficar perto dela na UTI, fingindo que estava morrendo. O médico da noite já
havia ido embora, e o infeliz pai já não tinha dinheiro, porém o haviam submetido a um eletrocardiograma, e por enquanto o deixavam ali, parece que o médico da noite havia combinado algo assim, ou o resultado do exame fora ruim.
O pai refletia sobre o que fazer — descer ele não podia, telefonar não permitiam, todos eram desconhecidos e estavam ocupados. Ele pensava no que deviam estar sentindo suas duas mulheres, suas “meninas”, como ele as chamava: a esposa e a sogra. O coração doía muito. Puseram uma sonda nele, como a da filha.
Depois ele adormeceu, e quando acordou a filha não estava ao seu lado.
Enfermeira, onde está a menina que estava deitada aqui?
Para que você quer saber?
Sou pai dela, por isso. Onde ela está?
Ela foi levada para a sala de operação. Não se preocupe e não se levante. O senhor não pode.
O que ela tem?
Não sei.
Querida enfermeira, chame o médico!
Estão todos ocupados.
Ao lado um velho gemia. Do outro lado da parede alguém, talvez o jovem médico, pelo visto executava algum procedimento com uma velha e conversava como se ela fosse uma simplória da roça, alto e em tom de brincadeira.
E aí… Vovó, quer sopa? — Pausa. — Que sopa você quer?
Hum — mugia de alguma forma não humana a velha, com uma voz metálica.
Quer sopa de cogumelos? — Pausa. — Quer com cogumelos? Comeu a sopa com cogumelos?
De repente a velha respondeu com seu grave metálico:
Cogumelos… com macarrão.
Ah, muito bem — gritou o médico.
O pai estava deitado e se preocupava, em algum lugar sua filha era operada, em algum lugar estava a esposa meio enlouquecida de dor, ao lado a sogra se contorcia… Um jovem médico o olhou, de novo aplicaram uma injeção e ele caiu no sono.

À noite ele se levantou em silêncio e como estava, descalço, só de camisola do hospital, saiu. Chegou até a escada sem ser percebido e desceu pelos degraus frios, como um fantasma. Foi até o corredor do porão, andou seguindo uma seta na qual estava escrito: ALA DE ANATOMIA PATOLÓGICA .
Ali ele chamou uma pessoa de avental branco:
Paciente, o que está fazendo aqui?
Sou do necrotério — respondeu o pai de repente — , eu me perdi.
Como assim do necrotério?
Saí mas deixei meus documentos lá. Quero voltar, mas não sei onde é.
Não estou entendendo nada — disse o de avental branco, pegou-o pelo braço e o levou pelo corredor. Depois, apesar de tudo, perguntou:
O que houve, você se levantou?
Eu voltei à vida, não havia ninguém, saí, depois decidi voltar mesmo assim para que percebessem.
Um milagre — respondeu seu acompanhante.
Eles chegaram à ala, mas ali o enfermeiro os recebeu com palavrões. O pai escutou todas as suas objeções e perguntou:
Minha filha também está aqui, ela devia dar entrada depois da operação.
Ele disse o sobrenome.
Não está, ela não está! Estão fazendo todos quebrarem a cabeça! Vieram procurar de manhã! Ela não está aqui! Puseram aqui todos os que têm câncer! E esse ainda é da psiquiatria! Fugiu do manicômio ou o quê? De onde ele veio?
Estava vagando pelos corredores — respondeu o de avental branco.
Então chame a segurança — o enfermeiro voltou a dizer palavrões.
Quero ligar para casa — pediu o pai. — Eu me lembrei, eu estava na UTI no
terceiro andar. Perdi a memória depois da explosão do ônibus na Varchavka, vim parar aqui.
Então os aventais brancos se calaram. A explosão na Varchavka havia acontecido dias antes. Levaram-no, tremendo, descalço, para uma mesa onde havia um telefone.
A esposa atendeu o telefone e ali mesmo começou a soluçar:
Você! Você! Onde você foi parar? Levaram o corpo dela, não sabemos para onde! E você andando por aí! E nem um copeque em casa! Nem para o táxi encontramos! Você pegou, não é?
Eu… eu estava sem consciência, vim parar no hospital, na UTI …
Onde, em qual?
No mesmo em que ela estava…
E onde ela está? Onde? — uivou a esposa.
Não sei, eu não sei. Estou sem roupa nenhuma, traga tudo para mim. Estou aqui no necrotério descalço. Qual o endereço do hospital?
O que te levou para aí? Não estou entendendo nada — continuou soluçando a mulher.
Ele deu o telefone para o avental branco. Este tranquilamente, como se não tivesse acontecido nada, informou o endereço e desligou o telefone. O enfermeiro trouxe um avental e uns chinelos gastos, tortos para ele. Pelo visto teve pena daquela pessoa viva, e o encaminhou para o posto do segurança.
A esposa e a sogra chegaram com o rosto inchado, parecendo velhas, vestiram-no, calçaram-no, abraçaram-no, finalmente o escutaram, chorando felizes, e todos juntos começaram a esperar no sofazinho, porque lhes disseram que haviam operado a filha deles, ela estava na UTI e a situação não era tão grave.
Duas semanas depois ela já começava a andar, o pai a levava para passear pelos corredores e repetia o tempo todo que ela estava viva depois da explosão, estava simplesmente em choque, em choque. Ninguém notou, mas para ele ficou claro na hora.
É verdade, ele ficava calado a respeito daquele coração humano cru que teve que comer para que ela não comesse. Mas isso havia sido no sonho, e no sonho não conta.

Liudmila Petruchévskaia, in Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha: Histórias e contos de fadas assustadores

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