segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O som do rugido da onça | Capítulo XV

O rei me vê como um traço verde rasgando a paisagem. Ou como um pedaço de pano retorcido. Sobre um papel pardo, um risco. Qualquer rei me vê assim, e nenhum percebe bem as dobras e ondulações, nenhum sabe que sou profundo verde. Essencial e denso verde. Para o rei posso ser estorvo, caso perca uma batalha às minhas cercanias, ou posso ser promessa de mais ouro, caso encontre novas formas de lucrar com a minha existência. E foi assim que, sobre as minhas margens, o rei ordenou que se erguesse uma ponte. Acima de mim, o céu. Abaixo de mim, a pulsação da terra impelindo meu caminho.
Para erguer uma estrutura que servisse de passagem e ligamento, foram necessários braços fortes, a tração das pernas de homens e animais, todos juntos na mesma canga. Foi preciso a conjunção de carnes e forças e, sim, muitos nomes que servissem de cimento. Jörg não tinha pai nem mãe e estava na frente de trabalho a serviço da ponte e do rei, ao lado dos tios. Era um rapaz forte, e os músculos de suas pernas, braços e costas se retesavam quando se fazia necessário rolar as toras de madeira que serviriam de arcabouço para o desejo do rei.
O rei, para ser rei, precisa ser, necessariamente, um homem incomum. É o que se costuma dizer e acreditar. Esse a que me refiro era neto de Henry, o Negro, filho de Henry, o Orgulhoso, e ele mesmo um Henry, rosto e corpo continuado dos seus ancestrais, o mesmo levantar de sobrancelhas quando se mostrava curioso, o mesmo esgar que contraía o quadrante superior esquerdo dos lábios quando algo o irritava, a mesma tendência para a retenção de líquidos que se alojam nas pernas, logo abaixo dos joelhos e nos tornozelos.
Esse rei, em outro ponto da história que não este, em que nos deparamos com Jörg e seus tios cingidos por cordas feito mulas, encontrará, a caminho da Terra Santa, um leão em luta com um dragão. É de fato incomum presenciar batalhas entre bestas tão memoráveis, mas, qual um são Miguel em peleja com o diabo, Henry, filho de Henry e neto de Henry, se coloca ao lado do leão e o auxilia a vencer. Precisamente por isso entrará para a história como Henry, o Leão. O leão, por sua vez, cão domesticado, fiel ao favor real em sua batalha, seguirá Henry sem coleira ou grilhões que indiquem sua submissão. O mundo é um pasto de maravilhas para quem tiver olhos de ver e alma para crer.
Eu em nada creio, sou um rio. Eu vou e volto, conheço o chão e o céu, compartilho a língua comum a todas as águas. Atravesso o tempo. Morro e renasço. Engulo e regurgito. Sei dos animais tristes que são os homens.
Jörg, por sua vez, Jorge sem nenhum dragão que o notabilizasse, comia as batatas que o velho monge Hans oferecia. Jörg e seus tios não raro se alimentavam das sobras do mosteiro quando iam auxiliar os religiosos em trabalhos que exigiam mais corpo do que fé, e esses monges, em particular, eram detentores dos segredos da construção de pontes. O mosteiro que se erguia às minhas margens naquela ocasião não tinha nenhuma imponência. Era um assentamento simples de pedras sobre o sangue dos homens, seja o sangue das mãos que as empilharam umas sobre as outras, seja o sangue das costas machucadas pelo cilício.
Sobre o cilício, sabe-se que João Batista, o pregador do deserto, primo de Jesus, fez uso dele, assim como Thomas More, o filósofo mártir, que, por baixo da camisa de seda muito alva, usava uma camisa de cilício para mortificação da carne e elevação do espírito, assim como o velho irmão Hans, quando não soube distinguir, a mirada azulada e turva, a mente confusa, se o corpo de Jörg era corpo de homem ou de mulher. Nem o tocou, é verdade, porém a atrapalhação em si exigiu o pagamento da carne, como sói ser.
O desejo do rei era que a ponte, mais que passagem entre uma margem e outra, possibilitasse um trânsito mais seguro para as pessoas e injetasse ânimo para o povoamento da cidade. Estes verbos são parte querida do vocabulário dos governantes: injetar, transitar, possibilitar. O rei sabe, porém, que nem todo desejo que habita o coração humano floresce no mundo, neste mundo de poeira e assassinatos, de saques e contendas, o que não impede que o desejo se transforme em braços, em cordas, em toras de madeira, em pernas distendidas, em gritos, em suor escorrendo.
Mas nem tudo um rei pode saber, por mais extraordinário que seja o seu retrato. Um rei, no final das contas, é um homem cujos dentes também apodrecem e cujas pernas pesam com seu inchaço. Um rei caga e vomita. Um rei não muito raramente fica cansado e tem pesadelos que, quase sempre, coloca na conta de traições e perfídias que lhe tramam pelas costas.
Mas, calma, não nos apressemos: Henry, o Leão, ainda demora a entrar em contenda com Frederick Barbarossa, e não é agora que ele é despojado de seus domínios e mandado em exílio para a Inglaterra. E, a bem da verdade, isso pouco nos interessa. Há uma ponte sendo construída, e sobre sua estrutura se equilibra um rapaz.
O céu da manhã de sábado não promete chuva, diz um monge, e passa, segue seu caminho, muito embora eu saiba da chuva que está por vir. A ponte em vias de conclusão não se figura como algo grandioso, um tabuleiro simples sobre um cavalete, mas eficiente em sua função. Uma mulher, ao longe, escarra no chão e se encolhe por baixo de um xale grosseiro. Jörg come um resto de pão velho e nada mais. Corta o dedo em uma aresta formada na caneca e um dos tios, o mais velho, o repreende:
Você está distraído, Jörg.
O garoto não responde, faz uma careta, e o tio continua a provocar:
Está me afrontando, menino? Não sabe responder? Olha que te parto em dois.
Não é nada, responde Jörg a contragosto, e essas são suas últimas palavras.
Tempestades são rios, você sabe. Toda água é, a linha azul que caminha nos mapas, o trajeto do sangue no corpo. Quando a tempestade encontra Jörg no alto do tabuleiro, algo acontece, e o menino se deixa derrubar sobre o meu lençol violento e revolto pelos ventos. Pode não parecer, mas as minhas cheias são verdadeiramente ferozes. Sinto o corpo dele simultaneamente duro e macio atravessando minha pele, sua carne tenra e jovem que conheço desde que estava no ventre da mãe. Jörg, muito embora bom nadador, não faz nenhum movimento de resistência que possa, quem sabe, até salvá-lo.
Ao tio mais velho, que o espicaçara ainda de manhãzinha, parece que durante toda a queda estivesse já paralisado, os olhos como que de vidro, numa abertura incomum, muito embora o outro tio, o mais novo e esguio, que também está próximo da cena, não tenha visto senão o corpo despencando e se perdendo no meio da água, sem que nada nem ninguém pudesse fazer algo sob a grossa pancada de chuva. O que sei é que seu coração parou antes mesmo que eu fechasse sua laringe, encharcasse seus pulmões.
Os homens, as mulheres e crianças que passeiam às minhas margens, que me atravessam de um lado a outro brincando nos lugares de pouca fundura, apreciando a beleza do céu bávaro sobre a cidade de Munique, como a turista vestida à francesa, a saia branca com duas listras azul-marinho, blusa também listrada, o chapéu de palha cor de tabaco graciosamente pendido para o lado, os pés em sapatilhas delicadas que em dado momento ela descalça e passa a carregar numa das mãos enquanto a outra segura a mão de um rapaz jovem de queixo proeminente, mas ainda assim de certa beleza, não sabem nada sobre Jörg nem sobre aqueles que ergueram essa e as outras pontes, e menos ainda que o vai e vem dos rios atravessa a história, que ela, a história, está sempre em movimento, que não existe nada estagnado. Desconhecem que tudo é fluxo e que dentro de mim há outras cidades, muitas da mesma cidade; que, abaixo da ponte, a ponte que Jörg ajudou a construir a mando de um rei há muito falecido, existe outra ponte; ignoram que, nas margens abaixo do rio em que refrescam os pés, outras pessoas, as pessoas da água, vivem sua vida, levantam suas pedras, fazem compras, piqueniques, beijam seus filhos antes que peguem a condução para ir à escola, derrubam reis, inventam máquinas, morrem de fome, de peste ou de frio, e são em quase tudo iguais a eles, que vivem fora do rio, nos muitos tempos que se desdobram nas margens da superfície. Quando o Allianz Arena estremece com um gol do Bayern, as pessoas da água sentem ondulações sob seus pés. Quando é primavera e as crianças da terra correm alegremente sobre a relva do Jardim Inglês, nas muitas cidades espelhadas é possível sentir uma brisa muito leve a agitar as folhas das árvores. Quando as coisas se tornam violentas, o desequilíbrio é mútuo.
Porém, minha condição não é exclusiva. Não se trata de um privilégio porque venho dos Alpes, como um braço do Danúbio, paisagem tão bela e paradisíaca estampada em um calendário engordurado numa parede de uma cidade distante e quente do hemisfério Sul. Na verdade, todos os rios abrigam sua gente da água, todos os rios abrigam todos os tempos. Mas isso nenhum rei, nem mesmo um que fosse aliado de um leão, poderia saber. Tampouco o casal de turistas em seu passeio ao fim da tarde. Os povos que habitam as florestas sabem, mas Jörg só soube quando caiu. E a primeira coisa que viu na margem abaixo da margem foi outro mosteiro, com outros monges, pessoas, animais, plantas, tudo igual e diverso. Ele não sabia. Mas soube, e então morreu.
Jörg paira por sobre a água. Ele sabe quem vocês são. Suas peles morenas, seus olhos repuxados, o coração aos saltos. Sabe que estão assustados como um pássaro na boca de um gato. Sabe que vocês olham um para o outro como quem procura se agarrar a algo conhecido. Sabe que é inverno e que vocês sentem frio.
Então Iñe-e vislumbrou Jörg com os outros fantasmas, como que a esperar por ela e seu companheiro. E seu corpo todo estremeceu.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

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