O
pai viajava muito. Envolvido em política, tinha reuniões em outros
estados. Chegou a ficar ausente meses, exilado. E, mesmo quando
estava na cidade, quase não parava em casa.
Seu
filho nasceu para ser o único homem de uma casa com muitas mulheres.
Desde pequeno, fascinava o diverso mundo feminino, rico em detalhes.
Sua rotina era invadida por perfumes, nuances, delicadezas e mimos.
A
família acordava com o mesmo toque do despertador. Estudavam de
manhã. Ele se vestia num minuto. E, como se estivesse na coxia de
uma ópera, sentava-se no canto do corredor, para assistir ao
corre-corre das quatro irmãs, matriculadas num colégio religioso.
Enquanto
o que bastava para ele era um short, uma camiseta com o logo da
escola, um par de tênis e uma bola, elas tinham de lidar com um
vestido de brim pesado, com torçal, laço e faixa. Uma ajudava a
outra a guarnecer e amarrar a cintura.
Usavam
meias, roupas de baixo, sem contar a maquiagem, o encaixe de grampos,
brincos, pulseiras e anéis, além de adornos com nomes estranhos,
como piranha e tiara.
Havia
trombadas no corredor. Brigas. Mãos disputavam peças do figurino.
Empurra-empurra. Paninhos com água morna e limão limpavam manchas.
As quatro transformavam aquela casa numa trincheira sob bombardeio.
Ele não perdia um detalhe deste mundo complexo e perturbador.
Às
tardes, elas passavam horas no telefone, com pinças, esmaltes e
escovas de cabelo, diante de espelhos. Cada uma examinava com cuidado
cada centímetro do próprio corpo.
Enquanto
ele nem cuidara do joelho ralado na escola, elas pintavam as unhas
dos pés e das mãos, raspavam as pernas com a gilete do pai ausente,
usavam cremes, pós e batom. Mulheres olham para o mundo através dos
espelhos, descobriu.
Secavam
o cabelo com um barulhento instrumento — de que ele foi proibido de
chegar perto, já que o usou como se fosse um revólver, numa
brincadeira de rua.
Enquanto
ele apenas chacoalhava a cabeça ao sair do banho, como um cão
vira-lata saindo do mar, elas enrolavam com destreza uma toalha na
cabeça, antes de usarem o secador. Lembravam as figuras egípcias
que ele tinha no livro de História. Uma vez, ele tentou enlaçar a
cabeça com uma toalha. Sem sucesso. Só as mulheres conseguem,
concluiu.
Dividia
o banheiro com as irmãs. A sós, passou esmalte nos dedos. Cheirou
cremes. Atacou as formigas da pia com uma pinça em cada mão. E
torturou o gato da família: colocou presilhas nas suas orelhas,
elásticos no rabo e lixou as suas garras.
Na
lixeira, intrigavam os pacotinhos embrulhados por papel higiênico.
Ele abriu alguns deles e observou maravilhado o sangue escondido,
proibido. Ele sabia que elas não estavam doentes, nem raladas, sim,
porque crianças fazem questão de mostrar a todos os ferimentos
conquistados.
Ninguém
nunca explicou o significado daquele sangue secreto. Ele tinha
consciência de que era parte do misterioso mundo feminino.
Lembra-se
com exatidão de uma cena que nunca teve coragem de contar. É um
segredo muito bem trancado, que o intimida.
Devia
ter uns 8 anos. Viu pendurados no banheiro da sua mãe uma calcinha e
um sutiã. Seus dedos percorreram o tecido delicado. Examinou a
intricada armação de alças, presilhas, elásticos e um fecho. Que
sofisticada obra de engenharia é o sutiã, pensou. Fez dele um
estilingue. Riu. Olhou-se no espelho.
Depois
de se certificar de que a porta estava trancada, experimentou por
cima da roupa.
Vestiu
o sutiã. Percebeu o quanto é inoperante o seu fecho. Sentiu as
alças apertarem os ombros, o tecido segurar algo que faltava, a
armação dificultar os movimentos dos braços. Depois, vestiu a
calcinha. Reparou como o tecido era mais delicado do que o das suas
cuecas ásperas, que não tinham rendados.
Olhou-se
de novo no espelho e riu. Parecia um palhaço. Fez uma careta.
Qual
o significado desse gesto? Vestiu-se para experimentar o que a pessoa
que ele mais amava sentia. Viu-se no espelho, para admirar as roupas
que tinham a honra de protegê-la.
O
pai ficou com receio de o filho ser influenciado e virar um “frouxo”,
como se dizia. Tirou-o da escola alternativa do bairro, em que
estudavam os filhos dos amigos, e o colocou numa escola pública na
Praça da República, centro da cidade; um choque.
O
queridinho das mulheres da casa de repente era um anônimo
uniformizado, cercado por duas mil crianças que usavam o mesmo terno
azul, desconfortável e antiquado. Chorou no primeiro dia.
Desesperou-se no segundo. Encontrou uma saída no terceiro: um
refúgio que só aumentou a sua admiração pelas mulheres.
Sua
avó paterna, animada, carioca de nascimento, morava em frente, na
Avenida São Luis. Ele fugiu da escola. Pediu para um pedestre ajudar
a atravessar a Ipiranga, e passou a manhã dançando Roberto Carlos
com a velhinha de cabelo azul. Pediu para ela pintar o cabelo dele
também de azul.
Conheceu
os penduricalhos de outra geração, como cintas-ligas e anágua.
Brincou com joias pesadas. Dançou em sapatos altos. Cobriu-se com um
casaco de peles e fingiu ser um animal selvagem, atacando a
governanta da casa.
A
visita virou rotina. Bebia vinho do porto com ela. Dormia no seu
colo, que cheirava a talco, até a hora de voltar para casa, depois
da “aula”.
O
pai morreu, quando ele tinha 11 anos. Antes, portanto, de saber que,
até hoje, quando o filho vê uma mulher diante do espelho, nua, com
pinças, cremes, examinando as imperfeições da pele, o dia está
ganho. O mundo para de girar, para ele observar o intricado e belo
universo feminino.
Claro
que esse garoto tem um nome. Adivinha…
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola
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