sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Melina

Em Albuquerque, no final da tarde, Rex, meu marido, ia para as aulas na universidade ou para o ateliê onde ele fazia suas esculturas. Eu levava Ben, o bebê, para longos passeios de carrinho. Subindo a ladeira, numa rua cheia de olmos frondosos, ficava a casa de Clyde Tingley. Nós sempre passávamos por aquela casa. Clyde Tingley era um milionário que tinha dado todo o dinheiro dele para hospitais de crianças do estado. Passávamos pela casa dele porque não só no Natal, mas durante o ano inteiro, ele mantinha luzes de árvore de Natal penduradas em toda a extensão da varanda e em todas as árvores. Ele as ligava bem ao cair da noite, quando estávamos a caminho de casa. Às vezes ele estava na varanda, na sua cadeira de rodas, um velho muito magrinho que gritava “Olá” e “Que bela noite” para nós quando estávamos passando. Uma noite, porém, ele gritou para mim: “Para! Para! Tem alguma coisa errada com os pés desse menino. Você precisa levá-lo pra fazer um exame”.
Eu olhei para os pés de Ben, que estavam ótimos.
Não, é que ele já ficou grande demais pra esse carrinho. Ele só está levantando os pés desse jeito esquisito para que eles não arrastem no chão.”
Ben era muito esperto. Ainda nem sabia falar, mas já parecia entender tudo. Nesse momento, ele apoiou os pés bem retos no chão, como que para mostrar ao velho que não havia nada de errado com eles.
As mães nunca querem admitir que há algum problema. Leve esse menino a um médico, sim?”
Justo nessa hora, um homem todo vestido de preto veio andando na nossa direção. Mesmo
naquela época você raramente via pessoas andando na rua, então foi uma surpresa ver aquele homem ali. Ele se agachou na calçada e segurou os pés de Ben nas mãos. Uma correia de saxofone pendurada no pescoço dele ficou balançando e Ben tentou agarrá-la.
Não, senhor. Não há nada errado com os pés desse menino”, ele disse.
Que bom, então”, Clyde Tingley gritou.
Obrigada de qualquer forma”, eu disse.
O homem e eu ficamos lá conversando e depois ele nos acompanhou até a nossa casa. Isso aconteceu em 1956. Ele foi o primeiro beatnik que eu conheci. Não havia ninguém como ele em Albuquerque, pelo menos que eu tivesse visto. Judeu, com sotaque do Brooklyn. Cabelo comprido e barba, óculos escuros. Mas ele não parecia ameaçador. Ben gostou dele logo de cara. Ele se chamava Beau. Era poeta e músico, saxofonista. Foi só mais tarde que eu descobri que a alça pendurada no pescoço dele era de saxofone.
Ficamos amigos instantaneamente. Ele brincou com o bebê enquanto eu fazia um chá gelado. Depois que botei Ben na cama, nos sentamos nos degraus da varanda e ficamos conversando até Rex voltar para casa. Os dois homens se trataram de modo educado, mas não foram muito com a cara um do outro, eu percebi de imediato. Rex era estudante de pós-graduação. Estávamos na maior penúria na época, mas Rex dava a impressão de ser alguém mais velho e poderoso. Tinha um ar de sucesso, talvez uma pontinha de arrogância. Beau agia como se não se importasse muito com nada, o que eu já sabia que não era verdade. Depois que ele foi embora, Rex disse que não gostava da ideia de eu trazer boêmios extraviados para casa.
Beau estava viajando de carona de volta para casa, em Nova York… a Maçã… depois de passar seis meses em San Francisco. Estava hospedado em casa de amigos, mas eles trabalhavam o dia inteiro, então todo dia ele vinha visitar a mim e ao Ben, durante os quatro dias em que ficou em Albuquerque.
Beau estava realmente precisando falar. Para mim era maravilhoso ouvir alguém falar, além das poucas palavras que Ben sabia dizer, então eu ficava feliz em vê-lo. Além disso, Beau falava de amor. Tinha se apaixonado. Ora, eu sabia que Rex me amava, e nós estávamos felizes, teríamos uma vida feliz juntos, mas ele não estava loucamente apaixonado por mim como Beau estava por Melina.
Beau tinha sido vendedor de sanduíche em San Francisco. Tinha uma carrocinha na qual vendia café, pães doces, refrigerantes e sanduíches. Empurrava a carrocinha para cima e para baixo, pelos andares de um gigantesco edifício comercial. Um dia, ele empurrou a carrocinha até o escritório de uma companhia de seguros e então a viu. Melina. Ela estava arquivando papéis, só que não estava arquivando coisa nenhuma, mas sim olhando pela janela com um sorriso sonhador no rosto. Tinha cabelo comprido pintado de louro e usava um vestido preto. Era muito magra e pequenininha. Mas o impressionante era a pele dela, disse ele. Era como se ela não fosse uma pessoa de verdade, mas algum tipo de criatura feita de seda branca, de vidro leitoso.
Beau não sabia o que tinha dado nele. Só sabia que tinha abandonado a carrocinha e os fregueses, passado por uma portinhola e ido até onde ela estava. Então, ele disse a Melina que estava apaixonado por ela. Eu quero você, ele disse. Vou pegar a chave do banheiro. Vamos. Só vai levar uns cinco minutos. Melina olhou para ele e disse: Eu já vou lá.
Eu era muito jovem na época. Essa era a história mais romântica que eu já tinha ouvido na vida.
Melina era casada e tinha uma filhinha de mais ou menos um ano. A idade de Ben. O marido dela era trompetista. Ele esteve em turnê durante os dois meses em que Beau ficou com Melina. Eles tiveram um caso tórrido e, quando o marido estava para chegar, ela disse para Beau: “Hora de se mandar”. Então, ele se mandou.
Beau disse que você não tinha como não fazer o que ela pedia, que ela enfeitiçava a ele, ao marido e a todo homem que a conhecia. Você também não tinha como sentir ciúme, porque parecia perfeitamente natural que qualquer outro se apaixonasse por ela.
Por exemplo… a bebê nem era filha do marido dela. Eles tinham morado em El Paso durante um tempo. Melina trabalhava no supermercado Piggly Wiggly, embalando carne e frango com plástico. Atrás de uma vitrine de vidro, com um chapéu de papel ridículo. Mesmo assim, um toureiro mexicano que estava comprando bifes a viu lá dentro. Ele bateu no balcão, tocou uma campainha e insistiu com o açougueiro que tinha que falar com a moça que fazia as embalagens. Ele a fez sair do trabalho. Era esse o tipo de efeito que ela tinha em você, disse Beau. Você tinha que dar um jeito de ficar perto dela imediatamente.
Alguns meses depois, Melina percebeu que estava grávida. Ficou muito feliz e contou para o marido. Ele ficou furioso. Você não pode estar grávida, ele disse, eu fiz vasectomia. O quê? Melina ficou indignada. E você se casou comigo sem me contar uma coisa dessa? Ela o pôs para fora de casa e trocou todas as fechaduras. Então, ele começou a lhe mandar flores, a escrever cartas apaixonadas. Ficou acampado em frente à porta dela até que, por fim, ela perdoou o que ele tinha feito.
Era ela que fazia todas as roupas deles. Tinha forrado todos os cômodos do apartamento com tecidos. Havia colchões e almofadas espalhados pelo chão, então você engatinhava, feito um bebê, de uma tenda para outra. À luz de velas, dia e noite, você nunca sabia que horas eram.
Beau me contou tudo sobre Melina. Sobre sua infância em casas de pais de criação, sobre como ela fugiu aos treze anos. Ela começou a trabalhar num bar, como B-girl (não sei muito bem o que é isso), e o marido a tinha tirado de uma situação muito ruim. Ela é durona, disse Beau, fala grosso. Mas os olhos dela, o modo como ela toca em você, são de uma criança angelical. Ela foi um anjo que entrou na minha vida e a arruinou para sempre… Ele realmente ficava dramático quando falava dela e até chorava às vezes, mas eu adorava ouvir as histórias sobre Melina, queria poder ser como ela. Durona, misteriosa, linda.
Fiquei triste quando Beau foi embora. Ele também foi como um anjo na minha vida. Depois que ele se foi, eu me dei conta de como era raro Rex conversar comigo ou com Ben. Fiquei me sentindo tão sozinha que até pensei em transformar nossos quartos em tendas.
Alguns anos depois, eu estava casada com outro homem, um pianista de jazz chamado David. Ele era um cara legal, mas também era muito calado. Não sei por que eu me casei com esses homens caladões, quando a coisa que mais gosto de fazer na vida é conversar. Mas tínhamos muitos amigos. Músicos que vinham para a cidade ficavam na nossa casa e, enquanto os homens tocavam, nós, mulheres, cozinhávamos, conversávamos e brincávamos na grama com as crianças.
Fazer David me contar alguma coisa era como arrancar um dente, não importava se eu estivesse pedindo para ele me falar sobre como ele era na primeira série, sobre a sua primeira namorada ou sobre o que quer que fosse. Eu sabia que ele tinha morado com uma mulher, uma pintora muito bonita, durante cinco anos, mas ele não queria falar sobre ela. Ei, eu disse um dia, eu contei a minha vida inteirinha pra você, me conta alguma coisa sobre você, vai, me fala da primeira vez que você se apaixonou… Ele riu, mas me contou. Isso é fácil, ele disse.
Era uma mulher que estava morando com o melhor amigo dele, um baixista, Ernie Jones. Eles moravam no vale do sul, perto do canal de irrigação. Um dia ele foi lá para falar com Ernie e, quando viu que ele não estava em casa, resolveu ir até o canal.
Ela estava tomando sol, nua e branca na grama verde. Em vez de óculos escuros, estava usando duas daquelas toalhinhas rendadas de papel que as pessoas costumam botar embaixo de taças de sorvete.
E aí? Só isso?”, pressionei.
É, ué. Só isso. Eu me apaixonei.”
Mas como ela era?”
Ela não era como ninguém que existe neste mundo. Uma vez, o Ernie e eu estávamos sentados perto do canal, conversando e puxando fumo. Estávamos numa tremenda fossa, porque nós dois estávamos sem trabalho. Ela estava sustentando nós dois, trabalhando como garçonete. Um dia ela trabalhou num banquete na hora do almoço e foi embora levando junto todas as flores, as flores do salão inteiro. Só que ela carregou todas elas até o alto do vale e as jogou no canal. Então o Ernie e eu estávamos lá sentados na margem do canal, deprimidos, olhando para a água barrenta, quando de repente um bilhão de flores passou boiando na nossa frente. Ela também levou comida, vinho, pratos e até talheres e toalhas de mesa, que estendeu na grama.”
Então, você fez amor com ela?”
Não. Eu nunca nem conversei com ela, não a sós pelo menos. Eu só me lembro dela… deitada na grama.”
Hum”, eu disse, satisfeita com toda essa informação e com o ar de bobão que ele tinha no rosto. Eu adorava histórias românticas de qualquer tipo.
Nós nos mudamos para Santa Fe, onde David passou a tocar piano no Claude’s. Muitos bons músicos passavam pela cidade naquela época e tocavam com o trio de David uma ou duas noites. Uma vez veio um trompetista fantástico, chamado Paco Duran. David gostava de tocar com ele e me perguntou se eu me importaria se Paco, a mulher e a filha ficassem com a gente durante uma semana. Claro que não me importo, eu disse, vai ser ótimo.
E foi. Paco tocava maravilhosamente bem. Ele e David tocavam a noite toda no trabalho e tocavam juntos o dia inteiro em casa. A mulher de Paco, Melina, era exótica e divertida. Eles falavam e agiam como jazzistas de Los Angeles. Chamavam a nossa casa de “cafofo” e diziam coisas como “saca?” e “um barato”. A filhinha deles e Ben se entenderam muito bem, mas estavam ambos naquela idade em que as crianças mexem em tudo. Tentamos botá-los num cercadinho, mas nenhum dos dois queria saber de ficar lá dentro. Melina teve a ideia de deixar os dois soltos e a gente entrar no cercadinho, para que nossos cafés e cinzeiros ficassem a salvo. Então lá estávamos nós, sentadas dentro do cercadinho, enquanto as crianças tiravam livros da estante. Ela estava me falando de Las Vegas, descrevendo a cidade de um jeito que a fazia parecer outro planeta. Ouvindo-a falar e não só olhando para ela, mas sendo cercada pela sua beleza de outro mundo, eu me dei conta de que aquela era a Melina de Beau.
Por alguma razão, eu não consegui dizer nada sobre isso. Não podia dizer “Ei, você é tão bonita e estranha que só pode ser a paixão do Beau”. Mas fiquei pensando em Beau, sentindo falta dele e torcendo para que ele estivesse bem.
Ela e eu fizemos o jantar e depois os homens foram trabalhar. Demos banho nas crianças e fomos para a varanda dos fundos, onde ficamos fumando, tomando café e falando sobre sapatos. Falamos de todos os sapatos que tinham sido importantes na nossa vida. O primeiro mocassim, o primeiro salto alto. Sandálias de salto plataforma prateadas. Botas que tínhamos conhecido. Escarpins perfeitos. Sandálias feitas à mão. Sandálias de couro trançado. Sapatos de salto agulha. Enquanto falávamos, nossos pés descalços se remexiam na grama verde e úmida em frente à varanda. As unhas dos pés dela estavam pintadas de preto.
Ela me perguntou qual era o meu signo. Normalmente esse tipo de coisa me irritava, mas eu deixei que ela discorresse sobre a minha natureza escorpiana e acreditei em cada palavra. Então, eu disse a ela que sabia ler mãos, um pouquinho, e examinei as palmas das suas mãos. Como estava escuro, fui buscar uma lamparina lá dentro e a pus no degrau entre nós duas. Segurei aquelas duas mãos brancas à luz da lamparina e da lua e me lembrei do que Beau havia me dito sobre a pele dela. Era como segurar um objeto frio de vidro ou prata.
Sei de cor o livro de quiromancia de Cheiro. Já li centenas de mãos. Estou falando isso para você saber que, sim, eu disse a ela coisas que vi nas linhas e nos montes das mãos. Mas, basicamente, eu lhe disse tudo o que Beau tinha me contado sobre ela.
Tenho vergonha da razão por que fiz isso. Eu sentia inveja de Melina. Ela era tão deslumbrante. E não fazia realmente nada de especial, era a sua pessoa que deslumbrava. Eu queria impressioná-la.
Contei a vida dela inteira para ela. Falei dos pais adotivos horríveis que ela teve, de como Paco a protegeu. Falei coisas como “Eu vejo um homem. Um homem bonito. Perigo. Você não está em perigo. Ele está em perigo. É piloto de corrida ou, talvez, toureiro?”. Putz, ela disse, ninguém sabia do toureiro.
Beau havia me contado que uma vez ele tinha posto a mão na cabeça dela e dito “Vai ficar tudo bem…” e que ela tinha chorado. Eu disse a Melina que ela quase nunca chorava, nem quando estava triste nem quando estava com raiva. Mas, se alguém fosse carinhoso com ela e simplesmente pusesse a mão na sua cabeça e falasse para ela não se preocupar, isso podia fazê-la chorar…
Não vou contar mais nada. Estou envergonhada demais. Mas isso teve exatamente o efeito que eu esperava. Ela ficou lá sentada, olhando para suas mãos lindas, e sussurrou: “Você é uma bruxa. Você é mágica”.
Tivemos uma semana maravilhosa. Fomos todos assistir a danças indígenas, visitar o monumento Bandelier e o pueblo Acoma. Sentamos dentro da caverna onde o homem de Sandia viveu. Tomamos banho em fontes de águas termais perto de Taos e fomos à igreja do Santo Niño. Contratamos até uma babysitter por duas noites, para que Melina e eu pudéssemos ir ao Claude’s. A música estava ótima. “Eu me diverti muito esta semana”, eu disse. Ela sorriu. “Eu sempre me divirto”, ela disse, sem afetação.
A casa ficou muito quieta depois que eles foram embora. Acordei, como sempre, quando David chegou em casa. Acho que senti vontade de confessar a ele o que eu tinha feito quando li as mãos de Melina, mas ainda bem que não fiz isso. Estávamos deitados juntos na cama, no escuro, quando ele me disse:
Era ela.”
Ela quem?”
Melina. Era ela a mulher na grama.”

Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos

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