Em
Albuquerque, no final da tarde, Rex, meu marido, ia para as aulas na
universidade ou para o ateliê onde ele fazia suas esculturas. Eu
levava Ben, o bebê, para longos passeios de carrinho. Subindo a
ladeira, numa rua cheia de olmos frondosos, ficava a casa de Clyde
Tingley. Nós sempre passávamos por aquela casa. Clyde Tingley era
um milionário que tinha dado todo o dinheiro dele para hospitais de
crianças do estado. Passávamos pela casa dele porque não só no
Natal, mas durante o ano inteiro, ele mantinha luzes de árvore de
Natal penduradas em toda a extensão da varanda e em todas as
árvores. Ele as ligava bem ao cair da noite, quando estávamos a
caminho de casa. Às vezes ele estava na varanda, na sua cadeira de
rodas, um velho muito magrinho que gritava “Olá” e “Que bela
noite” para nós quando estávamos passando. Uma noite, porém, ele
gritou para mim: “Para! Para! Tem alguma coisa errada com os pés
desse menino. Você precisa levá-lo pra fazer um exame”.
Eu
olhei para os pés de Ben, que estavam ótimos.
“Não,
é que ele já ficou grande demais pra esse carrinho. Ele só está
levantando os pés desse jeito esquisito para que eles não arrastem
no chão.”
Ben
era muito esperto. Ainda nem sabia falar, mas já parecia entender
tudo. Nesse momento, ele apoiou os pés bem retos no chão, como que
para mostrar ao velho que não havia nada de errado com eles.
“As
mães nunca querem admitir que há algum problema. Leve esse menino a
um médico, sim?”
Justo
nessa hora, um homem todo vestido de preto veio andando na nossa
direção. Mesmo
naquela
época você raramente via pessoas andando na rua, então foi uma
surpresa ver aquele homem ali. Ele se agachou na calçada e segurou
os pés de Ben nas mãos. Uma correia de saxofone pendurada no
pescoço dele ficou balançando e Ben tentou agarrá-la.
“Não,
senhor. Não há nada errado com os pés desse menino”, ele disse.
“Que
bom, então”, Clyde Tingley gritou.
“Obrigada
de qualquer forma”, eu disse.
O
homem e eu ficamos lá conversando e depois ele nos acompanhou até a
nossa casa. Isso aconteceu em 1956. Ele foi o primeiro beatnik que eu
conheci. Não havia ninguém como ele em Albuquerque, pelo menos que
eu tivesse visto. Judeu, com sotaque do Brooklyn. Cabelo comprido e
barba, óculos escuros. Mas ele não parecia ameaçador. Ben gostou
dele logo de cara. Ele se chamava Beau. Era poeta e músico,
saxofonista. Foi só mais tarde que eu descobri que a alça pendurada
no pescoço dele era de saxofone.
Ficamos
amigos instantaneamente. Ele brincou com o bebê enquanto eu fazia um
chá gelado. Depois que botei Ben na cama, nos sentamos nos degraus
da varanda e ficamos conversando até Rex voltar para casa. Os dois
homens se trataram de modo educado, mas não foram muito com a cara
um do outro, eu percebi de imediato. Rex era estudante de
pós-graduação. Estávamos na maior penúria na época, mas Rex
dava a impressão de ser alguém mais velho e poderoso. Tinha um ar
de sucesso, talvez uma pontinha de arrogância. Beau agia como se não
se importasse muito com nada, o que eu já sabia que não era
verdade. Depois que ele foi embora, Rex disse que não gostava da
ideia de eu trazer boêmios extraviados para casa.
Beau
estava viajando de carona de volta para casa, em Nova York… a Maçã…
depois de passar seis meses em San Francisco. Estava hospedado em
casa de amigos, mas eles trabalhavam o dia inteiro, então todo dia
ele vinha visitar a mim e ao Ben, durante os quatro dias em que ficou
em Albuquerque.
Beau
estava realmente precisando falar. Para mim era maravilhoso ouvir
alguém falar, além das poucas palavras que Ben sabia dizer, então
eu ficava feliz em vê-lo. Além disso, Beau falava de amor. Tinha se
apaixonado. Ora, eu sabia que Rex me amava, e nós estávamos
felizes, teríamos uma vida feliz juntos, mas ele não estava
loucamente apaixonado por mim como Beau estava por Melina.
Beau
tinha sido vendedor de sanduíche em San Francisco. Tinha uma
carrocinha na qual vendia café, pães doces, refrigerantes e
sanduíches. Empurrava a carrocinha para cima e para baixo, pelos
andares de um gigantesco edifício comercial. Um dia, ele empurrou a
carrocinha até o escritório de uma companhia de seguros e então a
viu. Melina. Ela estava arquivando papéis, só que não estava
arquivando coisa nenhuma, mas sim olhando pela janela com um sorriso
sonhador no rosto. Tinha cabelo comprido pintado de louro e usava um
vestido preto. Era muito magra e pequenininha. Mas o impressionante
era a pele dela, disse ele. Era como se ela não fosse uma pessoa de
verdade, mas algum tipo de criatura feita de seda branca, de vidro
leitoso.
Beau
não sabia o que tinha dado nele. Só sabia que tinha abandonado a
carrocinha e os fregueses, passado por uma portinhola e ido até onde
ela estava. Então, ele disse a Melina que estava apaixonado por ela.
Eu quero você, ele disse. Vou pegar a chave do banheiro. Vamos. Só
vai levar uns cinco minutos. Melina olhou para ele e disse: Eu já
vou lá.
Eu
era muito jovem na época. Essa era a história mais romântica que
eu já tinha ouvido na vida.
Melina
era casada e tinha uma filhinha de mais ou menos um ano. A idade de
Ben. O marido dela era trompetista. Ele esteve em turnê durante os
dois meses em que Beau ficou com Melina. Eles tiveram um caso tórrido
e, quando o marido estava para chegar, ela disse para Beau: “Hora
de se mandar”. Então, ele se mandou.
Beau
disse que você não tinha como não fazer o que ela pedia, que ela
enfeitiçava a ele, ao marido e a todo homem que a conhecia. Você
também não tinha como sentir ciúme, porque parecia perfeitamente
natural que qualquer outro se apaixonasse por ela.
Por
exemplo… a bebê nem era filha do marido dela. Eles tinham morado
em El Paso durante um tempo. Melina trabalhava no supermercado Piggly
Wiggly, embalando carne e frango com plástico. Atrás de uma vitrine
de vidro, com um chapéu de papel ridículo. Mesmo assim, um toureiro
mexicano que estava comprando bifes a viu lá dentro. Ele bateu no
balcão, tocou uma campainha e insistiu com o açougueiro que tinha
que falar com a moça que fazia as embalagens. Ele a fez sair do
trabalho. Era esse o tipo de efeito que ela tinha em você, disse
Beau. Você tinha que dar um jeito de ficar perto dela imediatamente.
Alguns
meses depois, Melina percebeu que estava grávida. Ficou muito feliz
e contou para o marido. Ele ficou furioso. Você não pode estar
grávida, ele disse, eu fiz vasectomia. O quê? Melina ficou
indignada. E você se casou comigo sem me contar uma coisa dessa? Ela
o pôs para fora de casa e trocou todas as fechaduras. Então, ele
começou a lhe mandar flores, a escrever cartas apaixonadas. Ficou
acampado em frente à porta dela até que, por fim, ela perdoou o que
ele tinha feito.
Era
ela que fazia todas as roupas deles. Tinha forrado todos os cômodos
do apartamento com tecidos. Havia colchões e almofadas espalhados
pelo chão, então você engatinhava, feito um bebê, de uma tenda
para outra. À luz de velas, dia e noite, você nunca sabia que horas
eram.
Beau
me contou tudo sobre Melina. Sobre sua infância em casas de pais de
criação, sobre como ela fugiu aos treze anos. Ela começou a
trabalhar num bar, como B-girl (não sei muito bem o que é isso), e
o marido a tinha tirado de uma situação muito ruim. Ela é durona,
disse Beau, fala grosso. Mas os olhos dela, o modo como ela toca em
você, são de uma criança angelical. Ela foi um anjo que entrou na
minha vida e a arruinou para sempre… Ele realmente ficava dramático
quando falava dela e até chorava às vezes, mas eu adorava ouvir as
histórias sobre Melina, queria poder ser como ela. Durona,
misteriosa, linda.
Fiquei
triste quando Beau foi embora. Ele também foi como um anjo na minha
vida. Depois que ele se foi, eu me dei conta de como era raro Rex
conversar comigo ou com Ben. Fiquei me sentindo tão sozinha que até
pensei em transformar nossos quartos em tendas.
Alguns
anos depois, eu estava casada com outro homem, um pianista de jazz
chamado David. Ele era um cara legal, mas também era muito calado.
Não sei por que eu me casei com esses homens caladões, quando a
coisa que mais gosto de fazer na vida é conversar. Mas tínhamos
muitos amigos. Músicos que vinham para a cidade ficavam na nossa
casa e, enquanto os homens tocavam, nós, mulheres, cozinhávamos,
conversávamos e brincávamos na grama com as crianças.
Fazer
David me contar alguma coisa era como arrancar um dente, não
importava se eu estivesse pedindo para ele me falar sobre como ele
era na primeira série, sobre a sua primeira namorada ou sobre o que
quer que fosse. Eu sabia que ele tinha morado com uma mulher, uma
pintora muito bonita, durante cinco anos, mas ele não queria falar
sobre ela. Ei, eu disse um dia, eu contei a minha vida inteirinha pra
você, me conta alguma coisa sobre você, vai, me fala da primeira
vez que você se apaixonou… Ele riu, mas me contou. Isso é fácil,
ele disse.
Era
uma mulher que estava morando com o melhor amigo dele, um baixista,
Ernie Jones. Eles moravam no vale do sul, perto do canal de
irrigação. Um dia ele foi lá para falar com Ernie e, quando viu
que ele não estava em casa, resolveu ir até o canal.
Ela
estava tomando sol, nua e branca na grama verde. Em vez de óculos
escuros, estava usando duas daquelas toalhinhas rendadas de papel que
as pessoas costumam botar embaixo de taças de sorvete.
“E
aí? Só isso?”, pressionei.
“É,
ué. Só isso. Eu me apaixonei.”
“Mas
como ela era?”
“Ela
não era como ninguém que existe neste mundo. Uma vez, o Ernie e eu
estávamos sentados perto do canal, conversando e puxando fumo.
Estávamos numa tremenda fossa, porque nós dois estávamos sem
trabalho. Ela estava sustentando nós dois, trabalhando como
garçonete. Um dia ela trabalhou num banquete na hora do almoço e
foi embora levando junto todas as flores, as flores do salão
inteiro. Só que ela carregou todas elas até o alto do vale e as
jogou no canal. Então o Ernie e eu estávamos lá sentados na margem
do canal, deprimidos, olhando para a água barrenta, quando de
repente um bilhão de flores passou boiando na nossa frente. Ela
também levou comida, vinho, pratos e até talheres e toalhas de
mesa, que estendeu na grama.”
“Então,
você fez amor com ela?”
“Não.
Eu nunca nem conversei com ela, não a sós pelo menos. Eu só me
lembro dela… deitada na grama.”
“Hum”,
eu disse, satisfeita com toda essa informação e com o ar de bobão
que ele tinha no rosto. Eu adorava histórias românticas de qualquer
tipo.
Nós
nos mudamos para Santa Fe, onde David passou a tocar piano no
Claude’s. Muitos bons músicos passavam pela cidade naquela época
e tocavam com o trio de David uma ou duas noites. Uma vez veio um
trompetista fantástico, chamado Paco Duran. David gostava de tocar
com ele e me perguntou se eu me importaria se Paco, a mulher e a
filha ficassem com a gente durante uma semana. Claro que não me
importo, eu disse, vai ser ótimo.
E
foi. Paco tocava maravilhosamente bem. Ele e David tocavam a noite
toda no trabalho e tocavam juntos o dia inteiro em casa. A mulher de
Paco, Melina, era exótica e divertida. Eles falavam e agiam como
jazzistas de Los Angeles. Chamavam a nossa casa de “cafofo” e
diziam coisas como “saca?” e “um barato”. A filhinha deles e
Ben se entenderam muito bem, mas estavam ambos naquela idade em que
as crianças mexem em tudo. Tentamos botá-los num cercadinho, mas
nenhum dos dois queria saber de ficar lá dentro. Melina teve a ideia
de deixar os dois soltos e a gente entrar no cercadinho, para que
nossos cafés e cinzeiros ficassem a salvo. Então lá estávamos
nós, sentadas dentro do cercadinho, enquanto as crianças tiravam
livros da estante. Ela estava me falando de Las Vegas, descrevendo a
cidade de um jeito que a fazia parecer outro planeta. Ouvindo-a falar
e não só olhando para ela, mas sendo cercada pela sua beleza de
outro mundo, eu me dei conta de que aquela era a Melina de Beau.
Por
alguma razão, eu não consegui dizer nada sobre isso. Não podia
dizer “Ei, você é tão bonita e estranha que só pode ser a
paixão do Beau”. Mas fiquei pensando em Beau, sentindo falta dele
e torcendo para que ele estivesse bem.
Ela
e eu fizemos o jantar e depois os homens foram trabalhar. Demos banho
nas crianças e fomos para a varanda dos fundos, onde ficamos
fumando, tomando café e falando sobre sapatos. Falamos de todos os
sapatos que tinham sido importantes na nossa vida. O primeiro
mocassim, o primeiro salto alto. Sandálias de salto plataforma
prateadas. Botas que tínhamos conhecido. Escarpins perfeitos.
Sandálias feitas à mão. Sandálias de couro trançado. Sapatos de
salto agulha. Enquanto falávamos, nossos pés descalços se remexiam
na grama verde e úmida em frente à varanda. As unhas dos pés dela
estavam pintadas de preto.
Ela
me perguntou qual era o meu signo. Normalmente esse tipo de coisa me
irritava, mas eu deixei que ela discorresse sobre a minha natureza
escorpiana e acreditei em cada palavra. Então, eu disse a ela que
sabia ler mãos, um pouquinho, e examinei as palmas das suas mãos.
Como estava escuro, fui buscar uma lamparina lá dentro e a pus no
degrau entre nós duas. Segurei aquelas duas mãos brancas à luz da
lamparina e da lua e me lembrei do que Beau havia me dito sobre a
pele dela. Era como segurar um objeto frio de vidro ou prata.
Sei
de cor o livro de quiromancia de Cheiro. Já li centenas de mãos.
Estou falando isso para você saber que, sim, eu disse a ela coisas
que vi nas linhas e nos montes das mãos. Mas, basicamente, eu lhe
disse tudo o que Beau tinha me contado sobre ela.
Tenho
vergonha da razão por que fiz isso. Eu sentia inveja de Melina. Ela
era tão deslumbrante. E não fazia realmente nada de especial, era a
sua pessoa que deslumbrava. Eu queria impressioná-la.
Contei
a vida dela inteira para ela. Falei dos pais adotivos horríveis que
ela teve, de como Paco a protegeu. Falei coisas como “Eu vejo um
homem. Um homem bonito. Perigo. Você não está em perigo. Ele está
em perigo. É piloto de corrida ou, talvez, toureiro?”. Putz, ela
disse, ninguém sabia do toureiro.
Beau
havia me contado que uma vez ele tinha posto a mão na cabeça dela e
dito “Vai ficar tudo bem…” e que ela tinha chorado. Eu disse a
Melina que ela quase nunca chorava, nem quando estava triste nem
quando estava com raiva. Mas, se alguém fosse carinhoso com ela e
simplesmente pusesse a mão na sua cabeça e falasse para ela não se
preocupar, isso podia fazê-la chorar…
Não
vou contar mais nada. Estou envergonhada demais. Mas isso teve
exatamente o efeito que eu esperava. Ela ficou lá sentada, olhando
para suas mãos lindas, e sussurrou: “Você é uma bruxa. Você é
mágica”.
Tivemos
uma semana maravilhosa. Fomos todos assistir a danças indígenas,
visitar o monumento Bandelier e o pueblo Acoma. Sentamos
dentro da caverna onde o homem de Sandia viveu. Tomamos banho em
fontes de águas termais perto de Taos e fomos à igreja do Santo
Niño. Contratamos até uma babysitter por duas noites, para que
Melina e eu pudéssemos ir ao Claude’s. A música estava ótima.
“Eu me diverti muito esta semana”, eu disse. Ela sorriu. “Eu
sempre me divirto”, ela disse, sem afetação.
A
casa ficou muito quieta depois que eles foram embora. Acordei, como
sempre, quando David chegou em casa. Acho que senti vontade de
confessar a ele o que eu tinha feito quando li as mãos de Melina,
mas ainda bem que não fiz isso. Estávamos deitados juntos na cama,
no escuro, quando ele me disse:
“Era
ela.”
“Ela
quem?”
“Melina.
Era ela a mulher na grama.”
Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos
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