Os
guerreiros submetiam Honra a rituais de purificação para que seu
corpo aceitasse sem vulnerabilidade o uso de uma língua inimiga. Era
fundamental que pudesse entoar sem estar abrigado nesse discurso,
para o empunhar enquanto instrumento mas nunca enquanto lugar de
caber.
Honra,
diziam,
não
podes caber em palavra alguma. Terás de entoar como quem liberta a
onça, mas não podes seguir enquanto espírito assombrando o corpo
da onça. E a palavra fará sua maldade porque está vocacionada para
a maldade, mas tu terás de estar fora da palavra para que não te
possam abater no instante em que ela coagular o seu significado.
O
jovem guerreiro confirmava aprender. Escutava as orações dos
ancestrais, pintavam sua pele, escolhia agora cada ideia e garantia
que sim. Era o que queria fazer. E lentamente foram entrando as
palavras brancas em sua boca e ele as foi usando confiante e com
desdém. Entoava:
sabem
ao sujo das piores porcarias. Palavras que sabem ao sujo das piores
porcarias, como as carnes mortas há muito tempo. São palavras de
animais mortos por dentro.
Os
guerreiros tardios acenavam em confirmação. Assim era. Uma língua
azeda que chegava a feder na boca. Era feita para muita miséria e
toda a tristeza. E eles avisavam:
não
medites nesta língua. Não demores nela. Usa igual à arma que se
toma apenas no instante do ataque. Antes e depois disso, ignora.
E
o guerreiro jurava fazer assim, mas uma língua era de verdade como
um lugar aonde se ia chegando, e o feio, sem dar conta, abria dentro
de si um espaço que até então nunca contemplara.
Para
se manter lúcido, o guerreiro jovem atarefava-se na escavação da
piroga e voltava a ponderar como haveriam de fazer quando chegassem
as tempestades. E foi como entoou:
quero
ser teu primeiro salto. Quero ser o primeiro aviso. Eu estarei
acordado estudando as nuvens e espiando a oportunidade de qualquer
trovão. Se for de riscar relâmpago, eu vou saber bem antes, o
suficiente para que tu já estejas no alto da maior tatajuba, perto
das próprias nuvens, ali ao lado das aves mais levantadas.
E
o guerreiro Pé de Urutago recebia Honra com alguma hesitação.
Considerava que sua juventude, uma opacidade tão recente e ainda sem
convívio com nenhuma feminina, facilmente se tornaria apenas um
embaraço, uma inexperiência a que ele não se poderia dar ao luxo.
Mas confirmava por gentileza. Seguia trabalhando e seguia gentil,
como a isso também era obrigado.
*
Então,
o guerreiro de corpo ocupado pedia licença ao tremendo animal
líquido e entoava as palavras brancas, uma a uma. Deixava que se
escutassem inteiras, como redondas e gordas a saírem de sua boca,
oferecendo-lhes a oportunidade de se consumarem nas terras abaeté
para revelarem seus poderes. Queria conhecê-las, observá-las, medir
suas forças. Estava ensinado a pensar que não criavam. Muito ao
contrário. As palavras brancas destruíam. E ele procurava entender
se as mesmas coisas da beleza abaeté eram tornadas vis na fealdade
branca. Poderia o filhote de tapir ser um bicho grotesco quando dito
pela língua branca. Perguntava ele. E os guerreiros tardios lhe
ensinavam o nome do tapir e Honra quase comovia de tristeza. Tão
grande crueldade com o bicho dar-lhe um nome assim. Foi pela mata
espiar onde havia um tapir e entoava seu nome abaeté observando a
beleza. Entoava depois seu nome branco e seus olhos notavam como
outra coisa poderia estar ali movendo-se. Uma coisa menos bela,
ferida pela palavra mal-intencionada, uma palavra insuportável. Ele
entoou:
uma
língua infértil. Germina nada dentro. Desce sobre seus significados
como algo que sufoca. Se dita demasiadas vezes, vai matar. Vai acabar
com o ar, o sangue do vento, o invisível.
Pai
Todo lhe garantiu que não poderia matar o inimigo branco por haver
capturado suas palavras, seus nomes. O branco estaria defendido por
outra divindade, uma pior, perturbada, sem paz.
O
primeiro mar seguia quieto em sua tarefa, cintilando seu modo de
respirar e não devolvia reacção. As palavras inférteis do branco
era impotentes perante a maravilha do órgão vital. O jovem
guerreiro confiava que enfeitiçava a língua inimiga com mestria.
Saberia enfeitiçá-la sem erro e a caminho da matança. Honra sentia
estar a caminho. Cada vez que entoava, ele chegava mais perto de
passar a lâmina no corpo branco que necessitava de abater.
Por
se tornar adulto, o feio dormia numa maloca distinta da dos pais, era
imperioso que escolhesse por juízo próprio e não fosse humilhado
por nenhuma orientação piedosa. Escolhia um pouco de chão próximo
de alguma feminina que tivesse vontade de cativar. Suas preocupações
intensas não podiam muito contra certo fervor do corpo. Ele
procurava manter toda a sobriedade, uma lucidez pela qual devia
justificar sua glória de herói mais tarde, mas o corpo meditava
sozinho acerca de gestos simples, como os de mexer numa feminina,
sentir seu cheiro, provar seu paladar. As femininas eram frutos
húmidos que ofereciam à boca dos guerreiros o melhor dos alimentos.
Na sua idade, Honra deveria estar admitido à companhia de femininas
mais seduzidas e também atentas às temperaturas de seus próprios
corpos. Mas não havia modo de isso acontecer.
Na
máscara da noite, onde seu movimento lembrava mais a vontade do que
a cor, o guerreiro passava entre os que se deitavam, e chegava a seu
canto sempre sozinho e à espera. Tinha vindo da mata onde se mexera
para acalmar. Quando vertia o corpo para dormir, era importante estar
capaz de o fazer, sem que a musculação inventasse por si mesma uma
ideia de proximidade com as femininas. Quando assim acontecia, mesmo
durante o sono, o guerreiro rebolava de seu canto e perigava pelo
chão tão inconsciente quanto físico. Quem houvesse de estar perto
lhe batia para que acordasse e recolhesse a mordedura prestes a
acontecer. Aquele silêncio também era a entoação daquilo que se
procurava esconder. O silêncio podia revelar. Podia ser
incrivelmente falante.
Naquela
noite, ainda que se tivesse mexido na mata, o corpo de Honra musculou
seus baixios e impacientou seu sono. O guerreiro branco moveu e saiu
pelo chão sem acordar nem ficar quieto. Seu desassossego era pelo
odor em redor e ele procurava.
Quando
alguém sentiu sua mão num toque quase nada, bateu. Honra acordou
naquele modo rastejado e envergonhou profundamente. Fugiu da maloca à
míngua do brilho da lua e foi lamentar como doía sua cabeça batida
e como era insuportável seu cruel adiamento.
Alguns
que soam mantinham caminho pelo terreiro e o guerreiro queria
deixar-se sozinho, ficar sem conversa nem distracção. Decidiu que
sairia da cerca da aldeia e andaria até às areias, a espiar o
vazio, a ver as pirogas deixadas para escavação. Decidiu que sairia
pela noite sem maior sono, apenas à deriva porque a deriva
encontrava acasos que podiam estar por ali à espera havia muito.
Na
mata mais densa, desviado do chão das onças e precavido para onde
assomavam os jacarés, Honra começou a caminhar mais corrido e
ansioso por chegar ao areal e encarar o primeiro mar. Sabia mal
porque haveria de ceder àquela pressa, não entendia, mas ficou
urgente e algo parecia empurrá-lo naquela direcção. Subitamente,
bem antes de avistar o tremendo animal líquido, Honra escutou um
ruído de boca falante, um vocábulo, alguém que entoara por perto.
O guerreiro branco deteve-se e melhorou o silêncio. Se fosse entoada
nova palavra, poderia capturar seu sentido e saber talvez de quem
viria, para que serviria na escuridão conspiradora da mata. E
novamente escutou e era mais um gemido do que um vocábulo.
Significava uma dor ou um esforço. Um som que abrigava um cansaço.
Honra caminhou mais na direcção e foi suavizando seus gestos para
espiar no pouco luar filtrado pelas copas quem andaria ali atarefado
com que razão. Quando a mata abriu um quase nada, o guerreiro branco
reconheceu a figura em dobro de Pé de Urutago que carregava pelo
chão alguma coisa e imediatamente entoou:
sagrado
Pé de Urutago, em que posso ajudar.
O
grande guerreiro sobressaltou e respondeu:
sagrado
Honra, podes ajudar regressando mudo e sem notícia à aldeia.
Mas
o guerreiro branco abeirou mais e julgou que eram agora semelhantes
para o conhecimento. Haveriam de debater as tarefas estranhas e
colaborar, poderia interferir de maneira a dar seu contributo às
graças da comunidade. Era agora opaco. Maturara. Tinha o queixo mais
levantado, o espírito mais polido e estava preparado para ser
responsável e brilhante. No passo que deu, imediatamente Pé de
Urutago lhe vociferou:
sagrado
Honra, fica onde estás. Carrego um fardo a que nossa educação me
obriga por meio solitário. Tua proximidade é um perigo. Convoco
chefia de Pai Todo para te pedir que fujas de mim. Afasta teu jeito
curioso, tua bondade, afasta tua esperança. O que faço nesta noite
é ofício que me chega desde muito antigamente, e não pode haver
notícia disso. Parte, sagrado Honra, parte para tua normalidade e
celebra tua paz. Preciso ir. Preciso ir.
Era
tempo sem alteração. As noites vinham caindo sem conteúdo. Apenas
ausência. Não se cobriam os céus, não chovia, o vento tinha sopro
nenhum, as presas eram comuns e simplesmente alimentares. Os abaeté
viviam para a fome, sem perigo maior do que o da fácil fome.
Pescavam e caçavam. Os sóis passavam nessa bênção. Por isso,
Honra soube que não poderia ser caminhada para subir ao clarão,
agarrar o mudador osso do relâmpago, iniciar nova era. Não havia
pressentimento de tempestade. A noite era inútil, servia o sono, era
gentilmente inútil. Assim, frustrado com a severa chefia do mais
velho, talvez até ofendido, Honra recuou um passo e entoou:
sagrado
Pé de Urutago, quero ser teu amigo. Acredito que é tempo de chegar
a grande profecia e acredito que isso será porque o branco cerca
nossas terras. É tempo de a Verdadeiríssima Divindade se
pronunciar. Eu sei que ela entoará e sei que minha pele é a última
maldade. Estamos no limite de todas as fúrias. A própria mata se
adensou. Reparaste em como se fecharam os restos de chão e tudo
nasceu. Reparaste em como a mata é mais alta.
Perguntou.
Pé
de Urutago, impaciente, por um resto de respeito, quis saber:
e
que andas por esta distância a fazer, tão dentro da noite,
vulnerável, sem caça nem guerra. O que aconteceu.
O
feio, humilhado mas bravo para ser igual, opaco e corajoso, entoou:
o
musculado do corpo inventa um sonambulismo grave. Rastejo pela maloca
ao odor das femininas e acordo sempre batido e sem ninguém.
Entardeço nesta violência. Esta noite, depois de até ter mexido no
próprio corpo antes de deitar, depois de mesmo assim sonambular como
um verme, senti que devia caminhar. Talvez seja propósito deste
incómodo, talvez seja uma inspiração para te encontrar, sagrado Pé
de Urutago, uma intuição que esteja a receber da encantaria. Não
te parece, grande guerreiro. Não te parece que fui enviado para te
ser útil.
No
entusiasmo de entoar seu pressentimento, o guerreiro de corpo ocupado
andou um pouco mais e novamente Pé de Urutago lhe vociferou:
sagrado
Honra, terei de te matar se abeirares mais um passo. Afeiçoa tua
vida para a aldeia. Não hesites. Afeiçoa.
O
guerreiro branco, estupefacto, recuou e deitou corrida a caminho do
areal. A ameaça aberrante de Pé de Urutago sobrava em seu
pensamento como um absurdo que não podia descodificar. Enquanto
isso, percebeu nada daquilo que ele carregava. Percebeu nada do
esforço que fazia. O que fazia.
Chegado
ao areal, sem saber como decidir, Honra desceu sobre os joelhos e
olhou para dentro de si mesmo. Pensou:
não
sinto.
Se
o mataria, certamente teria de operar alguma traição. Pensou depois
assim, que o grande guerreiro traía a dignidade abaeté numa noite
discreta como aquela. E subiu sua temperatura. Ferveu seu espírito
confuso, e ele entoou a palavra que caça à distância. Aquela que
leva sua mordedura intacta, transpondo a mata inteira. Honra entoou:
maldito.
O
som conflituou com a quietude. A palavra caçou o outro.
Muito
afastado dali, Pé de Urutago feriu em seu silêncio. Alguma coisa o
golpeou na certeza brava de que o guerreiro branco, ignorante e
despreparado, o dera como indigno, talvez como um inimigo. O grande
guerreiro sofreu. Seguiu seu ofício sofrendo.
Por
causa disso, chorou.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário