Oh!
O mistério de todas as coisas. O mistério da igreja. O mistério do
Natal. O mistério da Missa do Galo. O mistério do povo acreditando
em tudo e espiando a beleza da igreja enfeitada de velas enormes e
onde os altares exibiam um planejamento novo de brocados, onde se
distinguiam os desenhos bordados a sangue para dar mais alegria
naquela noite.
A
igreja desde as dez horas fora se enchendo de multidão. Meia-noite
não era ainda chegada quando não havia lugar nem mesmo fora das
portas. Sim, porque o verão fez com que se abrissem até as portas
laterais.
Todo
o subúrbio desaguara ali. O mais interessante de se ver aparecia na
divisão da igreja feita pelos grupos de cada rua. Para isso se
chegava cedo.
Seu
Polydoro ficava de pé ao lado de seu Abrahão, sentado e se
abanando. O terno de seu Polydoro era mais branco que cor de hóstia.
Tão engomado que estalava a qualquer movimento. Estava de gravata
borboleta e em vez do livro de missa segurava elegantemente o chapéu
de palha. Seu Abrahão se enxugava com um lenço de riscadinho e
deixava escapar a barriga quase atingindo os joelhos. A calça meio
soronha libertava um pedaço de meia azulada e um pouco da batata
gorda das pernas. As botinas de elástico foram engraxadas, mas a
poeira das ruas descalças empanava o seu brilho. Era o dia do ano
que conseguia trazer seu Abrahão e sua bondade para fora do seu
pequeno sítio.
Seu
Antoninho Verdureiro dava verdadeiros cochilos. Os olhos não
aguentavam o brilho balançante das velas. Era preciso que Taninha
cutucasse ele de vez em quando e falasse ao seu ouvido discretamente:
“Acorde, porqueira! Tu veio aqui pra dá vexame?”. Quiterinha
ficava verde de vergonha com a atitude da mãe e rezava verdemente,
porque ela era toda desengonçada, magra, feia, esquisita e triste.
Sua pele esverdeada combinava com o cabelo preso em coque de um tom
castanho e ainda por cima liso. Até o seu vestido nessa noite era
verde. Parecia que seu Antoninho Verdureiro tinha trazido por engano
um feixe de cheiro-verde.
Dona
Cordélia estava vidrada. Olhava os santos e julgava cada um mais
lindo que o outro. Verdade que desviava a vista da imagem de São
Sebastião todo flechado, porque senão começaria a se sentir no
lugar dele, toda martirizada, sofrida e dolorida. O coração era até
capaz de repetir sua frase costumeira: “Que coisa!...”.
Dorinha
aparecia porque era da igreja. Cantava no coro aos domingos com sua
voz esganiçada. Mas a verdade verdadeira era que achava o Natal
menos bonito do que a Semana Santa. Aí, sim, vinha de Verônica, de
cabelos soltos, mais viva e importante do que o Salvador.
Rosinea,
de cabelo espichado e bancando pose de letrada, sentada sem respirar
quase, porque a cintura se achava estrangulada por um cinto de couro
largo. Tão apertado que por pouco não separava o tórax das
cadeiras. Rosinea sabia que atrás Dona Maria José e Dona Bárbara
estavam pensando nas suas costas: “Neguinha besta, taí. Pensa que
é a mulher mais fina e mais elegante da rua. A culpa foi da
Princesa...”.
Na
verdade, na verdade, elas estavam pensando isso e muito mais. Mas o
pensamento foi interrompido, porque o povo se afastava, dando
passagem para as três Marias. Aí Dona Bárbara cutucou Dona Maria
José. E todos os olhares viraram-se para as três. Até os santos
dos altares se debruçaram um pouco para espiar.
As
três Marias. Santinhas do pau oco. Bruacas, sim. Virgens sem homens.
Aquelas danadas, verdadeiras pestes futriqueiras, iriam para o céu
no barco da virgindade. Nem minhoca estaria disposta a fazer a
caridade.
Maria
da Penha, Maria Elisa e Maria Ofélia. Iguais em tudo. Magras,
amarelas, ossudas. Da mesma altura. Legítimas tábuas de passar
roupas; verdadeiras bruxas sem vassouras. O vestido de uma era igual
ao da outra. Elas deviam se vestir sem briga, porque toda a moda era
igual. Na certa trocariam os vestidos, sem se zangar e se aperceber.
Estavam de branco, de sapatões brancos. Tudo era branco fedendo a
virgindade. A brancura se perdia ou não se completava, porque na mão
esquerda elas traziam um livro e um terço pretos. E no peito, a fita
azul de filhas de Maria. Outra coisa também destoava do normal. Cada
uma trazia um pacotinho de presente embrulhado em papel de seda:
AZUL.
O
pensamento era geral. O pacotinho, na certa, era presente para o
Padre Santa Helena. Não fossem elas da ordem da chaleira.
Mas
na verdade as três Marias nem ligavam. Ajoelharam-se ao mesmo tempo,
ao mesmo tempo se benzeram e ao mesmo tempo ritmaram os lábios na
mesma oração.
Parecendo
adivinhar o mal-estar causado, o harmônio da igreja soltou os
primeiros sons roufenhos e lá veio o coro com a cantoria.
Sinal
de que a missa ia começar. E como ia começar, começou mesmo. Padre
Santa Helena veio da sacristia devagar, imensamente gordo, vermelho
de calor, afogado nas vestes amontoadas e brilhantes, rodeado de dois
coroinhas.
Aí
Vovó Sinhazinha apertou suavemente o braço de Pedrinho, como se
dissesse: Olhe que bonito os coroinhas! Mas Pedrinho não achava nada
bonito aquilo. Sabia que o sonho da velha era vê-lo daquele jeito,
vestido de mulherzinha, de blusa branca e saia vermelha. Não, aquilo
não era para ele. Nunca. Preferia subir em árvores, brigar na rua,
pegar passarinho e conversar safadezas, em vez de estar ali rodeando
o padre e balançando a sineta...
– Introibo
ad altare Dei...
E
quando chegou no evangelho, Padre Santa Helena, mais vermelho ainda,
mais redondo, com as mãozinhas balofas, suando em bicas a ponto de
empastar os cabelos ralos e avermelhados na testa, falou bonito.
Falou
do significado da data. Da beleza e do valor do nascimento de Cristo.
Do
amor
que deveria ser implantado no coração dos homens etc. Sapecou uns
termos de latim para impressionar desde Gloria in Excelsis Deo até
Sic transit Gloria Mundi.
Terminou
abrindo os braços, como se quisesse estreitar entre eles o coração
de todos os fiéis dizendo lindamente: “A Paz do Senhor se encontra
em cada um de nós em qualquer parte...”.
Foi
tão lindo que se se pudesse bater palmas a igreja teria vindo
abaixo.
Terminada
a missa, as três Marias permaneceram ainda em êxtase. Ressoava em
seus vestidos, no ouvido do coração, a maravilhosa prédica.
A
igreja começou a esvaziar-se enquanto os coroinhas retornaram para
apagar as velas dos altares.
Dona
Bárbara e Dona Maria José queriam ver o resto.
As
três Marias se ergueram e ao mesmo tempo alisaram os vestidos.
Seguraram o livro, o véu e o presente entre as mãos cruzadas no
peito e se encaminharam para a sacristia.
•••
Esperaram
um momento até que o Padre Santa Helena retirasse toda a roupagem
litúrgica e entraram. Nem deram tempo de o padre cansado se sentar
no banco e acabar de limpar o suor do rosto. Achegaram-se em fila
indiana e beijaram a mão salgada, suada do reverendo.
– Um
presentinho para o senhor. Uma humilde lembrancinha.
– Ora,
minhas filhas, não era preciso se incomodar.
– Não
repare, que é de coração.
– Vamos
sentar um pouco que o dia foi terrível.
Ofereceu
o banco e elas se sentaram empertigadas.
– Realmente
esses dias de festa são estafantes. Com esse pé. Com essa gota, só
Deus sabe o que penei. Ainda por cima o calor de rachar. E foi um tal
de visitar o sanatório dos tuberculosos, os presidiários, um tal de
batizar e confessar sem ter fim.
Um
tal de benzer túmulos e velhos mortos amigos da família... Uff!...
– Isso
é verdade – comentou o trio ao mesmo tempo. – Só um santo como
o senhor suportaria tanto...
Fizeram
uma pausa. Dona Maria Ofélia, como a mais velha, se transformava
sempre em oradora das três. Arriscou:
– Foi
por isso que não aceitou o nosso convitezinho, não foi?
– Teria
sido um prazer, mas já expliquei... não seria possível mesmo.
– Que
pena! Fizemos uma reuniãozinha muito bonitinha. Um chá com bolinhos
e salgados. As mães-bentas e as brevidades estavam uma delícia.
Padre
Santa Helena muniu-se de paciência, porque aquilo ia demorar.
Enquanto elas não atingissem o alvo, não parariam; mas a verdade
mesmo era a vontade de ir para casa, tirar os sapatos, livrar-se
daquela batina quente, suada, ardida e incômoda. Tomar um belo banho
frio de chuveiro e esticar-se na cama, talvez mordiscando uma
rabanada sumarenta que a empregada deveria ter feito.
– Reunimos
muita gente amiga e de bom caráter para discutirmos os problemas. E
se o senhor não se zanga, a conclusão foi a mesma de sempre.
Suspirou
quase se lamentando em voz alta.
– Que
conclusão, minhas filhas?
– Que
o senhor, com a polícia, deveriam providenciar a ida daqueles homens
para o hospício da Praia Vermelha ou de Jacarepaguá.
– Mas
por quê?
– Por
quê? Mas, Padre Santa Helena, aqueles homens estão desmoralizando a
igreja. Precisam ser internados.
– Que
mal fizeram aquelas criaturas?
– O
senhor acha pouco?
Lembrou-se
do seu sermão na missa. Da inutilidade de ter falado no amor e da
paz na terra entre os homens de boa vontade.
– Estão
desrespeitando a Madre Igreja. Estão desmoralizando a nossa igreja
e, idiotamente, abalando o prestígio do senhor, Padre Santa Helena.
– Que
mal praticam os homens? Nada. Só distribuem bondade, ao que me
consta. Estão quietos no seu canto sem provocar ninguém...
– Padre
Santa Helena, até milagres eles deram para fazer. MILAGRES!...
– Ora,
nada foi provado. Nada.
– Diga
isso para o povo daquela rua e eles são capazes até de matar.
– Não
posso fazer nada.
– O
senhor precisa fazer, padre. Corremos o risco. Nossa fé, nossas
famílias, nossas casas, nossas vidas podem ser trucidadas pelo
fanatismo que começa a invadir também as outras ruas...
Coçou
a cabeça desanimado e sentindo que a paciência poderia a qualquer
momento estourar. Por mais que quisesse não achava motivo forte e
justo que obrigasse a saída dos dois homens daquela rua. Que mal
poderiam fazer? Pelo que soubera, eles apenas distribuíam
simploriamente bondade e ternura. Davam aulas e serviam às vezes de
enfermeiros para os mais desprotegidos da sorte. Não queria nem
deveria julgar ninguém. Aquelas mulheres, fazia meses, os perseguiam
e nem sequer poderiam esquecer a noite de Natal. Deus do céu!...
Levantou
os olhos súplices para as três Marias.
– Não
poderei tomar uma decisão definitiva. Vamos esperar. O mais que
posso fazer é falar, indo à cidade, com a família dos dois homens
e...
– E?...
– Então
se a família decidir levá-los. Se a família não os forçar...
Nem
sabia mais como argumentar. Já agora queria apenas chegar em casa,
aliviar a gota, jogar-se na cama e nem pensar em rabanadas...
– Pois
bem, se a família os vier buscar, eu apoiarei a ida deles... Do
contrário, não vejo motivo em escorraçar os dois irmãos. Não são
eles que irão destruir a verdade da Igreja. Uma verdade que caminha
íntegra há dois mil anos.
Levantou-se
e foi acompanhado pela decepção das três solteironas.
Juntou
os três pacotinhos de presente onde sabia cada um conter quatro
lenços. Seu nome, como em cada Natal, viria bordado em letras
negras, verdes e azuis.
– Realmente
estou muito cansado. E na quinta-feira próxima conversaremos com
mais calma.
Tirou
o relógio do bolso e viu o adiantado das horas.
– Poderei
acompanhá-las até próximo da casa das senhoras.
Saíram
em silêncio. A gordura do Padre Santa Helena caminhava devagar.
Respirava mais aliviado o cheiro da noite.
Do
adro da igreja na escuridão, Dona Bárbara e Dona Maria José se
postaram para espiar a passagem.
E
o padre caminhava ao lado das três, que ritmavam o passo no caminhar
virginal e branco.
Dona
Maria José não se conteve.
– Como
se aquelas figuras tristes precisassem de acompanhamento. Nem
lobisomem se arriscava a chegar perto daqueles trastes. Isso eu
aposto até minha vida...
Depois,
em silêncio, retornaram à sua rua. A rua pobre e descalçada que no
verão levantava sempre a poeira, a poeira do desconforto.
José Mauro de Vasconcelos, in Rua Descalça
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