segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Capítulo Segundo | A Paz do Senhor

Oh! O mistério de todas as coisas. O mistério da igreja. O mistério do Natal. O mistério da Missa do Galo. O mistério do povo acreditando em tudo e espiando a beleza da igreja enfeitada de velas enormes e onde os altares exibiam um planejamento novo de brocados, onde se distinguiam os desenhos bordados a sangue para dar mais alegria naquela noite.
A igreja desde as dez horas fora se enchendo de multidão. Meia-noite não era ainda chegada quando não havia lugar nem mesmo fora das portas. Sim, porque o verão fez com que se abrissem até as portas laterais.
Todo o subúrbio desaguara ali. O mais interessante de se ver aparecia na divisão da igreja feita pelos grupos de cada rua. Para isso se chegava cedo.
Seu Polydoro ficava de pé ao lado de seu Abrahão, sentado e se abanando. O terno de seu Polydoro era mais branco que cor de hóstia. Tão engomado que estalava a qualquer movimento. Estava de gravata borboleta e em vez do livro de missa segurava elegantemente o chapéu de palha. Seu Abrahão se enxugava com um lenço de riscadinho e deixava escapar a barriga quase atingindo os joelhos. A calça meio soronha libertava um pedaço de meia azulada e um pouco da batata gorda das pernas. As botinas de elástico foram engraxadas, mas a poeira das ruas descalças empanava o seu brilho. Era o dia do ano que conseguia trazer seu Abrahão e sua bondade para fora do seu pequeno sítio.
Seu Antoninho Verdureiro dava verdadeiros cochilos. Os olhos não aguentavam o brilho balançante das velas. Era preciso que Taninha cutucasse ele de vez em quando e falasse ao seu ouvido discretamente: “Acorde, porqueira! Tu veio aqui pra dá vexame?”. Quiterinha ficava verde de vergonha com a atitude da mãe e rezava verdemente, porque ela era toda desengonçada, magra, feia, esquisita e triste. Sua pele esverdeada combinava com o cabelo preso em coque de um tom castanho e ainda por cima liso. Até o seu vestido nessa noite era verde. Parecia que seu Antoninho Verdureiro tinha trazido por engano um feixe de cheiro-verde.
Dona Cordélia estava vidrada. Olhava os santos e julgava cada um mais lindo que o outro. Verdade que desviava a vista da imagem de São Sebastião todo flechado, porque senão começaria a se sentir no lugar dele, toda martirizada, sofrida e dolorida. O coração era até capaz de repetir sua frase costumeira: “Que coisa!...”.
Dorinha aparecia porque era da igreja. Cantava no coro aos domingos com sua voz esganiçada. Mas a verdade verdadeira era que achava o Natal menos bonito do que a Semana Santa. Aí, sim, vinha de Verônica, de cabelos soltos, mais viva e importante do que o Salvador.
Rosinea, de cabelo espichado e bancando pose de letrada, sentada sem respirar quase, porque a cintura se achava estrangulada por um cinto de couro largo. Tão apertado que por pouco não separava o tórax das cadeiras. Rosinea sabia que atrás Dona Maria José e Dona Bárbara estavam pensando nas suas costas: “Neguinha besta, taí. Pensa que é a mulher mais fina e mais elegante da rua. A culpa foi da Princesa...”.
Na verdade, na verdade, elas estavam pensando isso e muito mais. Mas o pensamento foi interrompido, porque o povo se afastava, dando passagem para as três Marias. Aí Dona Bárbara cutucou Dona Maria José. E todos os olhares viraram-se para as três. Até os santos dos altares se debruçaram um pouco para espiar.
As três Marias. Santinhas do pau oco. Bruacas, sim. Virgens sem homens. Aquelas danadas, verdadeiras pestes futriqueiras, iriam para o céu no barco da virgindade. Nem minhoca estaria disposta a fazer a caridade.
Maria da Penha, Maria Elisa e Maria Ofélia. Iguais em tudo. Magras, amarelas, ossudas. Da mesma altura. Legítimas tábuas de passar roupas; verdadeiras bruxas sem vassouras. O vestido de uma era igual ao da outra. Elas deviam se vestir sem briga, porque toda a moda era igual. Na certa trocariam os vestidos, sem se zangar e se aperceber. Estavam de branco, de sapatões brancos. Tudo era branco fedendo a virgindade. A brancura se perdia ou não se completava, porque na mão esquerda elas traziam um livro e um terço pretos. E no peito, a fita azul de filhas de Maria. Outra coisa também destoava do normal. Cada uma trazia um pacotinho de presente embrulhado em papel de seda: AZUL.
O pensamento era geral. O pacotinho, na certa, era presente para o Padre Santa Helena. Não fossem elas da ordem da chaleira.
Mas na verdade as três Marias nem ligavam. Ajoelharam-se ao mesmo tempo, ao mesmo tempo se benzeram e ao mesmo tempo ritmaram os lábios na mesma oração.
Parecendo adivinhar o mal-estar causado, o harmônio da igreja soltou os primeiros sons roufenhos e lá veio o coro com a cantoria.
Sinal de que a missa ia começar. E como ia começar, começou mesmo. Padre Santa Helena veio da sacristia devagar, imensamente gordo, vermelho de calor, afogado nas vestes amontoadas e brilhantes, rodeado de dois coroinhas.
Aí Vovó Sinhazinha apertou suavemente o braço de Pedrinho, como se dissesse: Olhe que bonito os coroinhas! Mas Pedrinho não achava nada bonito aquilo. Sabia que o sonho da velha era vê-lo daquele jeito, vestido de mulherzinha, de blusa branca e saia vermelha. Não, aquilo não era para ele. Nunca. Preferia subir em árvores, brigar na rua, pegar passarinho e conversar safadezas, em vez de estar ali rodeando o padre e balançando a sineta...
Introibo ad altare Dei...
E quando chegou no evangelho, Padre Santa Helena, mais vermelho ainda, mais redondo, com as mãozinhas balofas, suando em bicas a ponto de empastar os cabelos ralos e avermelhados na testa, falou bonito.
Falou do significado da data. Da beleza e do valor do nascimento de Cristo. Do
amor que deveria ser implantado no coração dos homens etc. Sapecou uns termos de latim para impressionar desde Gloria in Excelsis Deo até Sic transit Gloria Mundi.
Terminou abrindo os braços, como se quisesse estreitar entre eles o coração de todos os fiéis dizendo lindamente: “A Paz do Senhor se encontra em cada um de nós em qualquer parte...”.
Foi tão lindo que se se pudesse bater palmas a igreja teria vindo abaixo.
Terminada a missa, as três Marias permaneceram ainda em êxtase. Ressoava em seus vestidos, no ouvido do coração, a maravilhosa prédica.
A igreja começou a esvaziar-se enquanto os coroinhas retornaram para apagar as velas dos altares.
Dona Bárbara e Dona Maria José queriam ver o resto.
As três Marias se ergueram e ao mesmo tempo alisaram os vestidos. Seguraram o livro, o véu e o presente entre as mãos cruzadas no peito e se encaminharam para a sacristia.

•••

Esperaram um momento até que o Padre Santa Helena retirasse toda a roupagem litúrgica e entraram. Nem deram tempo de o padre cansado se sentar no banco e acabar de limpar o suor do rosto. Achegaram-se em fila indiana e beijaram a mão salgada, suada do reverendo.
Um presentinho para o senhor. Uma humilde lembrancinha.
Ora, minhas filhas, não era preciso se incomodar.
Não repare, que é de coração.
Vamos sentar um pouco que o dia foi terrível.
Ofereceu o banco e elas se sentaram empertigadas.
Realmente esses dias de festa são estafantes. Com esse pé. Com essa gota, só Deus sabe o que penei. Ainda por cima o calor de rachar. E foi um tal de visitar o sanatório dos tuberculosos, os presidiários, um tal de batizar e confessar sem ter fim.
Um tal de benzer túmulos e velhos mortos amigos da família... Uff!...
Isso é verdade – comentou o trio ao mesmo tempo. – Só um santo como o senhor suportaria tanto...
Fizeram uma pausa. Dona Maria Ofélia, como a mais velha, se transformava sempre em oradora das três. Arriscou:
Foi por isso que não aceitou o nosso convitezinho, não foi?
Teria sido um prazer, mas já expliquei... não seria possível mesmo.
Que pena! Fizemos uma reuniãozinha muito bonitinha. Um chá com bolinhos e salgados. As mães-bentas e as brevidades estavam uma delícia.
Padre Santa Helena muniu-se de paciência, porque aquilo ia demorar. Enquanto elas não atingissem o alvo, não parariam; mas a verdade mesmo era a vontade de ir para casa, tirar os sapatos, livrar-se daquela batina quente, suada, ardida e incômoda. Tomar um belo banho frio de chuveiro e esticar-se na cama, talvez mordiscando uma rabanada sumarenta que a empregada deveria ter feito.
Reunimos muita gente amiga e de bom caráter para discutirmos os problemas. E se o senhor não se zanga, a conclusão foi a mesma de sempre.
Suspirou quase se lamentando em voz alta.
Que conclusão, minhas filhas?
Que o senhor, com a polícia, deveriam providenciar a ida daqueles homens para o hospício da Praia Vermelha ou de Jacarepaguá.
Mas por quê?
Por quê? Mas, Padre Santa Helena, aqueles homens estão desmoralizando a igreja. Precisam ser internados.
Que mal fizeram aquelas criaturas?
O senhor acha pouco?
Lembrou-se do seu sermão na missa. Da inutilidade de ter falado no amor e da paz na terra entre os homens de boa vontade.
Estão desrespeitando a Madre Igreja. Estão desmoralizando a nossa igreja e, idiotamente, abalando o prestígio do senhor, Padre Santa Helena.
Que mal praticam os homens? Nada. Só distribuem bondade, ao que me consta. Estão quietos no seu canto sem provocar ninguém...
Padre Santa Helena, até milagres eles deram para fazer. MILAGRES!...
Ora, nada foi provado. Nada.
Diga isso para o povo daquela rua e eles são capazes até de matar.
Não posso fazer nada.
O senhor precisa fazer, padre. Corremos o risco. Nossa fé, nossas famílias, nossas casas, nossas vidas podem ser trucidadas pelo fanatismo que começa a invadir também as outras ruas...
Coçou a cabeça desanimado e sentindo que a paciência poderia a qualquer momento estourar. Por mais que quisesse não achava motivo forte e justo que obrigasse a saída dos dois homens daquela rua. Que mal poderiam fazer? Pelo que soubera, eles apenas distribuíam simploriamente bondade e ternura. Davam aulas e serviam às vezes de enfermeiros para os mais desprotegidos da sorte. Não queria nem deveria julgar ninguém. Aquelas mulheres, fazia meses, os perseguiam e nem sequer poderiam esquecer a noite de Natal. Deus do céu!...
Levantou os olhos súplices para as três Marias.
Não poderei tomar uma decisão definitiva. Vamos esperar. O mais que posso fazer é falar, indo à cidade, com a família dos dois homens e...
E?...
Então se a família decidir levá-los. Se a família não os forçar...
Nem sabia mais como argumentar. Já agora queria apenas chegar em casa, aliviar a gota, jogar-se na cama e nem pensar em rabanadas...
Pois bem, se a família os vier buscar, eu apoiarei a ida deles... Do contrário, não vejo motivo em escorraçar os dois irmãos. Não são eles que irão destruir a verdade da Igreja. Uma verdade que caminha íntegra há dois mil anos.
Levantou-se e foi acompanhado pela decepção das três solteironas.
Juntou os três pacotinhos de presente onde sabia cada um conter quatro lenços. Seu nome, como em cada Natal, viria bordado em letras negras, verdes e azuis.
Realmente estou muito cansado. E na quinta-feira próxima conversaremos com mais calma.
Tirou o relógio do bolso e viu o adiantado das horas.
Poderei acompanhá-las até próximo da casa das senhoras.
Saíram em silêncio. A gordura do Padre Santa Helena caminhava devagar. Respirava mais aliviado o cheiro da noite.
Do adro da igreja na escuridão, Dona Bárbara e Dona Maria José se postaram para espiar a passagem.
E o padre caminhava ao lado das três, que ritmavam o passo no caminhar virginal e branco.
Dona Maria José não se conteve.
Como se aquelas figuras tristes precisassem de acompanhamento. Nem lobisomem se arriscava a chegar perto daqueles trastes. Isso eu aposto até minha vida...
Depois, em silêncio, retornaram à sua rua. A rua pobre e descalçada que no verão levantava sempre a poeira, a poeira do desconforto.

José Mauro de Vasconcelos, in Rua Descalça

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