Para
contar a história do meu nascimento, não vou começar pelo início,
mas pelo fim do meu começo. Para falar a verdade, nasci duas vezes.
A primeira foi quando rasguei a passagem escura das entranhas de
minha mãe. A segunda foi quando o velho curandeiro da aldeia me
salvou.
A
jovem que me deu à luz pretendia acabar com tudo, não apenas com a
sua vida, mas com a minha também, no exato momento da minha chegada
a este mundo. Tinha pressa em se atirar do penhasco que ficava no
topo do monte Balan, mas eu fui mais rápido do que suas pernas
inchadas e escapei de seu ventre bem no momento em que ela avançava
para a beira daquele precipício fatídico. As pessoas da aldeia
tentariam imaginar o que a teria levado a isso, transformando-se numa
espécie de mito ao saltar do ponto mais alto da montanha, comigo
ainda ligado a ela pelo cordão da vida, o emaranhado cordão
umbilical.
Pulei
para fora antes que ela se atirasse no abismo, nascido em pleno ar,
pairando acima de tudo. Posso imaginá-la lançando-se daquele
penhasco escarpado como uma águia planando em direção ao solo,
liberta de seu ninho, de suas amarras, de seus pecados, em seu
lamento final, para ser esquecida pelo vento que fazia esvoaçar seu
cabelo viçoso de moça, enquanto se arremessava precipício abaixo.
Nós dois, anjos germinados e sem asas, caíamos em queda livre. Mas
o impensável aconteceu. A mão do destino interveio. Eu,
recém-nascido choroso, caindo no rastro de minha mãe pela encosta
do penhasco coberto de trepadeiras, fiquei subitamente agarrados aos
galhos de um arbusto de chá que crescia na entrada de uma gruta.
Em
câmara lenta, num segundo que poderia ter durado uma vida inteira,
rompeu-se o cordão umbilical. Apanhado por dois galhos flexíveis,
soltei um grito assustador – minha ode ao vigoroso e resistente
arbusto de chá. Minha mãe – o anjo do meu nascimento, de minha
morte – e eu nos separamos em pleno ar, com o sangue jorrando por
todo o lado, respingando nas folhas. Fiquei balançando, suspenso nas
alturas, preso nos galhos daquela planta abençoada.
Minha
mãe mergulhava em direção ao fundo, transformada num pequeno ponto
que ia ficando cada vez mais diminuto, até que desapareceu no
silêncio do vale que ficava lá embaixo, para nunca mais ser vista.
Só muito depois é que eu viria saber o motivo de minha mãe ter
escolhido cantar a canção da morte tão cedo em sua vida. Por ora,
eu estava pendendo de um galho, tão periclitantemente quanto se
poderia estar.
Porém
o destino se interveio mais uma vez. A misericórdia divina desceu
sobre mim na forma do velho curandeiro da aldeia – magro, ossudo e
cheio de fé. Quando ele me viu chorando e me viu preso no penhasco
açoitado pela ventania, desceu como um macaco para me resgatar.
Felizmente,
era tão ágil quanto um deles, pois sua atividade exigia que
percorresse as cadeias das montanhas, passando por todos os cumes,
por todos os vales, indo de caverna em caverna em busca de raros
ginseng e da saliva de andorinhas cujos ninhos eram encontrados
apenas nos locais quase inalcançáveis escolhidos pelas aves.
Ele
desceu pela costa do penhasco, abrindo caminho por entre os galhos
das árvores, por vezes não encontrando os pontos de apoio para os
pés e quase despencando em numa queda fatal. Mas, naquele dia, os
céus permitiram que apenas uma morte ocorresse. Ofegante, conseguiu
me agarrar. Este momento é que eu chamo de meu segundo nascimento, e
que foi concedido pela graça e misericórdia de Buda, pelas mãos de
uma pessoa que tinha praticado boas ações dia após dias, cuidando
de um vilarejo repleto de gente pobre e doente. Digo que foi a graça
e a misericórdia de Buda e foi exatamente isso, pois se fosse um
outro homem que tivesse escutado meu choro e que, mesmo pela vontade
do Buda, tivesse em seu coração a disposição e o desejo de salvar
aquele pequeno ser, fosse ele um homem de bom coração ou não,
poderia nunca ter conseguido fazer o que o curandeiro fez, porque ao
coração daquele velho faltava um filho. O grito que lancei no ar, e
que foi ouvido por ele, ecoou nos recônditos de sua própria alma,
como ele mais tarde me contaria. Não era apenas o berro de um menino
qualquer, mas o do seu próprio sangue.
Ele
estava a apenas alguns centímetros de distância de mim quando uma
rajada de vento por pouco não me arrancou novamente das mãos da
vida. Mas, segurando na raiz de uma árvore, ele estendeu um dos
braços para me pegar, agarrando a minha perninha minúscula a tempo
de me aninhar na dobra de seu outro braço. Para ganhar tempo e me
salvar, fez o que ninguém tinha ousado fazer antes, descendo
centenas de metros pelo penhasco íngreme, arranhando os joelhos e os
calcanhares, quase fraturando os ossos, para logo em seguida correr
de volta para a casa ao encontro da mulher com quem era casado há
quarenta anos, antes que os grandes felinos notívagos das montanhas
pudessem sentir o cheiro do nosso rastro de sangue.
Pegaram
a cabra e a ordenaram. A mulher me alimentou com aquele leite como
viesse do seu próprio seio. Naquela mesma hora e naquele exato
momento, deram-me o nome de Shento – o topo da montanha, o cume.
– Ele
vai querer alcançar o céu, como o nosso sagrado monte Balan –
disse q baba.
– E
vai subir aos céus como o espírito de nossos ancestrais –
acrescentou mama. – Será que podemos ficar realmente com ele como
se fosse o nosso próprio filho?
– Mas
é claro que sim! Ele é uma dádiva da nossa querida montanha, uma
recompensa pelas boas ações que praticamos.
– E
se encaixa tão bem em nossos braços! – murmurou a mama,
acariciando meu rosto.
E
assim termina a história do meu nascimento e começa a da minha
vida.
O
sol se punha e a lua subia no céu, e aos poucos fui me tornando um
menino de roça, robusto e forte, com o apetite de uma criança de
três anos mais velha. Mama me dava comida com uma colher de bambu do
tamanho usado pelos adultos. Não precisava ficar cantando nenhuma
canção infantil para que eu comesse, Eu devorava uma colherada
depois da outra até soltar pequenos arrotos. Meu prato predileto era
bolo de arroz doce. Na nossa aldeia pobre, onde a comida de todos os
dias era inhame, arroz doce era coisa rara e preciosa. Baba tinha que
percorrer muitos quilômetros para atender pacientes em povoados
distantes, e ganhar um dinheirinho extra para que eu pudesse comer
aqueles preciosos bolos de arroz. Foi à antiga floresta, cortou as
melhores varas de bambu e construí um cercadinho, grande o
suficiente para que eu pudesse engatinhar e dormir. Pôs o cercado
perto de sua escrivaninha na enfermaria. Com o auxílio de mama,
atendia seus pacientes, dava conselhos e praticava acupuntura comigo
ali ao lado.
Apoiado
numa das paredes da enfermaria, havia um grande armário cheios de
gavetas com medicamentos fitoterápicos que baba vendia aos seus
pacientes, por grama ou por pitada. As gavetas tinham caracteres
chineses antigos e misteriosos que apenas os médicos versados em
texto clássico saberiam reconhecer. Certo dia, aos dois anos e meio
de idade, surpreendi baba ao citar e localizar dez das ervas mais
comumente utilizadas. Aos três eu sabia reconhecer mais da metade
delas. Quando tinha quatro anos, alertei baba de que ele tinha pegado
uma pitada da erva errada para uma determinada receita. O aviso,
disse baba, evitou que uma mulher grávida sofresse um aborto, Baba e
mama estavam convencidos de que eu não era uma criança comum.
Daquele
dia em diante, baba começou a ler para mim os textos clássicos da
medicina chinesa e me ensinou a memorizar os pontos usados na
acupuntura.
Uma
noite, deitado na cama antes de adormecer, escutei por acaso baba
falando baixinho para mama:
– O
destino do nosso filho é ser o melhor médico que essas montanhas
jamais irão conhecer.
Com
a sua inteligência extraordinária, imagine só quantas curas vai
descobrir!
– Não!
– retrucou a mama.
– E
porque não? Por que é que você discorda disso?
– O
destino do menino vai além do seu desejo limitado – disse ela. –
Um dia, ele vai comandar milhares e governar milhões.
– Você
não está sendo um pouco ambiciosa demais, minha querida esposa? –
ouvi baba dizer.
– De
jeito nenhum. Você não percebe? O nascimento dele foi um
acontecimento trágico, e sua história não é diferente da vida de
muitos imperadores que, vindos donada, ascenderam ao trono dourado.
Baba
ficou em silêncio por um momento.
– É...
já li em algum lugar que os acontecimentos trágicos formam homens
extraordinários.
– É
isso mesmo, mas, infelizmente, esses grandes homens nunca foram muito
felizes.
– Pois
prefiro que ele seja um homem comum que viva feliz, e que tenha uma
vida longa o suficiente para estar ao nosso lado, na hora da nossa
morte – disse baba.
– já
é tarde demais para isso. O destino dele começou quando ele
respirou pela primeira vez o ar daquele penhasco. Já é uma grande
sorte para nós tê-lo conosco durante o tempo que o nosso bom e
misericordioso Buda nos permitir.
Naquela
noite, infringi as regras e me aconcheguei na cama dos dois, dormindo
entre eles até o sol raiar. Mas, mesmo que falassem frequentemente
sobre mim, nunca mencionavam meus verdadeiros pais. Se esse tabu
fosse quebrado, o fantasma do meu passado voltaria para assombrar a
nossa vida quase perfeita, ainda que simples.
Da Chen, in A montanha e o rio
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