O mundo me espantava. Tanta coisa
interessante! Tanta coisa pra fazer! Se houvesse psicologia naqueles
tempos acho que me classificariam como hiperativo. Sem psicologia
para complicar, explicavam a minha agitação como sendo “a crise
dos sete anos”. Falava sem parar. Falava tanto que meu irmão
Ismael chegou a pagar-me uma pratinha de dois mil-réis para que eu
ficasse calado por dez minutos. Fiquei. Mas, enquanto o tempo
passava, fui ficando indignado com aquela humilhação, o meu
silêncio comprado. Passados os dez minutos me disseram: “Pode
falar. Os dez minutos já passaram”. Não falei. De birra continuei
mudo. Aí eles insistiam: “Fale!”. Eu não falava. Começaram a
ficar aflitos, com medo de que algo grave tivesse acontecido comigo,
que eu tivesse ficado mudo. Foi então que o Ismael ofereceu-me outra
pratinha para que eu falasse. Falei.
Eu acordava antes de o sol nascer e me
punha a andar pela casa fazendo barulho para ver se os grandes
acordavam. Eu não entendia as razões por que eles preferiam o sono
ao mundo.
Mas de noite vinha a escuridão, o mundo
sumia, tudo virava sombra, as coisas interessantes do dia me
abandonavam. Era então que a égua noturna começava a sua correria.
Sempre o menino da mata, “ô menino”, e o eco respondendo “ô
menino”, e o menino sozinho na noite escura anunciando “Olha os
pastéis de carne e de queijo...” . E eu? Eu ficava triste e
começava a chorar baixinho. Não adiantaria chorar alto. Os grandes
não entenderiam. Eles se ririam do meu sofrimento. Os grandes não
entendem os sofrimentos das crianças.
Numa dessas noites de choro baixinho eu
pensava: “O que será de mim quando eu estiver sozinho no mundo? O
que será de mim quando eu crescer?”.
Acho que eu chorava porque a solidão da
cama deve me ter feito pensar que um dia eu estaria sozinho no mundo,
sem ninguém para cuidar de mim. Eu era o menino da mata, o menino
que vendia pastéis.
Minha mãe ouviu o meu choro. Assentou-se
na cama e quis saber as razões. Aí eu criei coragem: “Mãe,
quando eu crescer, como é que eu vou arranjar dinheiro? Como é que
eu vou viver?”.
Ela tentou tranqüilizar-me. Não
conseguiu. E aí me surgiu uma solução. “Já sei!”, eu disse.
“Poderei ganhar a vida rachando lenha ou mexendo com meus
papéis...” Quem rachava lenha para nós era o seu Zé, que
trabalhava o dia inteiro, suando com machado e enxada, e ao final do
dia ganhava uma pratinha de dois mil-réis. Quem mexia com papéis
era meu pai, viajante, que estava sempre às voltas com pedidos que
ele “daquitilografava” (era assim que ele falava,
“daquitilografar”) em sua Smith-Corona portátil. Essas
perspectivas me tranquilizavam.
Aí comecei a chorar de novo. “E, mãe,
quando eu crescer, como é que vou arranjar uma mulher para mim?”
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
Nenhum comentário:
Postar um comentário