segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Uma criança chora

O mundo me espantava. Tanta coisa interessante! Tanta coisa pra fazer! Se houvesse psicologia naqueles tempos acho que me classificariam como hiperativo. Sem psicologia para complicar, explicavam a minha agitação como sendo “a crise dos sete anos”. Falava sem parar. Falava tanto que meu irmão Ismael chegou a pagar-me uma pratinha de dois mil-réis para que eu ficasse calado por dez minutos. Fiquei. Mas, enquanto o tempo passava, fui ficando indignado com aquela humilhação, o meu silêncio comprado. Passados os dez minutos me disseram: “Pode falar. Os dez minutos já passaram”. Não falei. De birra continuei mudo. Aí eles insistiam: “Fale!”. Eu não falava. Começaram a ficar aflitos, com medo de que algo grave tivesse acontecido comigo, que eu tivesse ficado mudo. Foi então que o Ismael ofereceu-me outra pratinha para que eu falasse. Falei.
Eu acordava antes de o sol nascer e me punha a andar pela casa fazendo barulho para ver se os grandes acordavam. Eu não entendia as razões por que eles preferiam o sono ao mundo.
Mas de noite vinha a escuridão, o mundo sumia, tudo virava sombra, as coisas interessantes do dia me abandonavam. Era então que a égua noturna começava a sua correria. Sempre o menino da mata, “ô menino”, e o eco respondendo “ô menino”, e o menino sozinho na noite escura anunciando “Olha os pastéis de carne e de queijo...” . E eu? Eu ficava triste e começava a chorar baixinho. Não adiantaria chorar alto. Os grandes não entenderiam. Eles se ririam do meu sofrimento. Os grandes não entendem os sofrimentos das crianças.
Numa dessas noites de choro baixinho eu pensava: “O que será de mim quando eu estiver sozinho no mundo? O que será de mim quando eu crescer?”.
Acho que eu chorava porque a solidão da cama deve me ter feito pensar que um dia eu estaria sozinho no mundo, sem ninguém para cuidar de mim. Eu era o menino da mata, o menino que vendia pastéis.
Minha mãe ouviu o meu choro. Assentou-se na cama e quis saber as razões. Aí eu criei coragem: “Mãe, quando eu crescer, como é que eu vou arranjar dinheiro? Como é que eu vou viver?”.
Ela tentou tranqüilizar-me. Não conseguiu. E aí me surgiu uma solução. “Já sei!”, eu disse. “Poderei ganhar a vida rachando lenha ou mexendo com meus papéis...” Quem rachava lenha para nós era o seu Zé, que trabalhava o dia inteiro, suando com machado e enxada, e ao final do dia ganhava uma pratinha de dois mil-réis. Quem mexia com papéis era meu pai, viajante, que estava sempre às voltas com pedidos que ele “daquitilografava” (era assim que ele falava, “daquitilografar”) em sua Smith-Corona portátil. Essas perspectivas me tranquilizavam.
Aí comecei a chorar de novo. “E, mãe, quando eu crescer, como é que vou arranjar uma mulher para mim?”

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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