quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Quantos abraços cabem num prato de canja?

Agosto. Aquele frio tropical do Sudeste brasileiro, que nunca pedirá chapéu, mas que sempre pedirá abraço e sopa. Talvez mais abraço do que sopa.
Ele chegou no apartamento recém-entregue. Um daqueles com decoração impecável em preto, bege e mogno, que demonstram bom gosto, sobra de dinheiro e falta de história.
Tinha trinta anos recém-feitos e ganhava muito melhor do que trinta anos de idade deveriam permitir. O apartamento era dele, sem dívidas nem auxílios. Simplesmente dele. Decidiu sair de casa quando o pai se casou de novo, pois, por mais que gostasse da madrasta – que já fazia o grande favor de entreter o pai –, achava que aquela casa não cabia mais nele ou vice-versa.
Perdeu a mãe aos vinte e seis, num estúpido atropelamento, daqueles em que todo mundo é vítima, quem matou e quem morreu. Era a maior paixão da sua vida. Não poderia imaginar algo mais divino do que aquela mulher de menos de um metro e sessenta, parruda, de cabelos escuros sempre presos.
Precisou voar sozinho, levando-a todo dia na memória e na foto 3x4 na carteira, em tempos de rolo de câmera do iPhone. Nunca aprenderia a estar sem ela.
Sentou-se no sofá de couro preto, desamarrou os sapatos de grife, respondeu mensagens de três mulheres bonitas. Foi até a cozinha e encontrou o bilhete da Danda: “Dudu, precisa comprar papel-alumínio e caldo de carne. Como tá frio, fiz canja. Achei a receita da sua mãe num livro na casa do seu pai. Tá no fogão. Danda”.
Percebeu que nunca mais tinha comido canja. Nem a da mãe, nem nenhuma outra. Foi até o fogão, tirou a tampa da panela que, suada, pingou no chão de mármore claro.
Sentiu o cheiro da canja e provou na própria concha, sem pensar, sem esquentar, sem modos, sem pausa.
Sentiu naquele caldo o sabor da ausência, o cheiro do abraço e o alto preço do amor desmedido.
Chorou até pegar no sono.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

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