A obra de Guimarães Rosa, de riqueza e
complexidade crescentes, estimula cada vez mais o trabalho da
exegese. Note-se, porém, que mesmo os críticos mais aparelhados
para a tarefa só a empreendem com precauções e ressalvas, como que
intimados a definir primeiro o próprio ofício e a precisar-lhe as
limitações. Enquanto não explanada, a obra se constitui de um
conjunto de sugestões inseparavelmente entrelaçadas; destacando uma
ou outra, a explanação relega as demais à sombra, além de romper
os fios de interligação. Por isso é que, ao apontar três planos
superpostos em Grande sertão: veredas, mestre Cavalcanti
Proença se apressa em acrescentar: “É preciso, porém, ressaltar
o artificialismo desta simplificação, pois que as várias camadas
se interpenetram, não sendo possível delimitá-las, mas unicamente
acentuar-lhes as características e conexões que nos permitem esta
divisão genérica. Decorre dessa complexidade uma abundância de
elementos alegóricos, uma simbologia muito densa, além do caráter
polissêmico das personagens.”
Vilem Flusser, em sua notável glosa ao
conto “As garças” (posterior a este volume), aponta outro
perigo: a crítica “afrouxa a densidade e traduz o conto da camada
vivencial para a intelectual”. As tentativas de explicação
acabam, sem querer, apoiando o traço de desenhos cuja magia está no
esvaimento dos contornos, por dar expressão matemática a um
conjunto em que não há equações perfeitas.
Oswaldino Marques, em seu penetrante
ensaio “Canto e plumagem das palavras”, todo ele consagrado à
arte de Guimarães Rosa, julga indispensável uma definição prévia
das tarefas da análise literária, uma das quais consiste em “tornar
manifestos, a posteriori, os elos subconscientes da construção
formal para definir os meios originais de que se valeu o artista no
tour de force da imitação” (e, por se tratar de Guimarães
Rosa, poderia ter dito “os elos subconscientes, e os conscientes,
mas ocultados”).
Adolfo Casais Monteiro, estudioso
eminente dos problemas do romance, em face de Grande sertão:
veredas, renuncia à pretensão exegética para apenas “refletir
sobre o livro que nos deixou profunda impressão, para nos
esclarecermos mais do que esclarecer seja quem for
— e muito menos para ensinar nada ao
autor”.
Não é outra coisa que se propõe o
prefaciador de Primeiras estórias ao tentar expor, mais uma vez,
suas razões de deslumbramento e espanto ante um livro de Guimarães
Rosa. De suas conversações com o autor, nas quais vislumbrou
numerosos subentendidos que lhe tinham escapado durante a leitura,
ficou-lhe a convicção de que mesmo ao olhar mais agudo seria
impossível abranger a totalidade intrincada das intenções do mais
consciente dos nossos escritores. Se, apesar disso, se atreve a
perlustrar o mais labiríntico de seus livros, onde a perspectiva, a
atmosfera e a temperatura emocional mudam mais de vinte vezes, é
apenas para exemplificar uma das muitas maneiras de acercamento
amoroso de uma obra de ficção com que as nossas letras contribuem
para o enriquecimento da literatura mundial.
Por que “primeiras” e porque
“estórias”?
Cada novo cume atingido é, para o
artista criador, um triunfo e um perigo. A obra-prima realizada impõe
a obrigação de superar-se. Em Corpo de baile, Guimarães
Rosa soube corresponder à expectativa suscitada por Sagarana;
em Grande sertão: veredas, soube ir ainda mais além; e soube
renovar-se nestas Primeiras estórias, que, não obstante o
seu volume pouco alentado, formam outra etapa importante na reta da
sua ascensão e obrigam o comentarista a rever suas apreciações
anteriores. Há vinte anos, num artigo sobre Sagarana, antevi
a vocação de romancista do futuro autor de Grande sertão:
veredas, mas pus em dúvida seus dotes para o conto curto. Hoje
estou persuadido de que suas inesgotáveis vivências se cristalizam,
por assim dizer, automaticamente no gênero mais apropriado.
Na falta de precisões da “orelha” do
volume, o título pede duas palavras de explicação.
O epíteto não alude a trabalhos da
mocidade ou anteriores aos já publicados em volumes, e sim à
novidade do gênero adotado, a estória. Esse neologismo de
sabor popular, adotado por número crescente de ficcionistas e
críticos, embora ainda não registrado pelos dicionaristas,
destina-se a absorver um dos significados de “história”, o de
“conto” (= short story). A oposição conceitual resulta
nitidamente deste trecho de “Nenhum, nenhuma”: “Era uma velha,
uma velhinha — de história, de estória — velhíssima, a
inacreditável.”
Embora o termo, hoje em dia, já apareça
também sem conotação folclórica, referido às narrativas de
Guimarães Rosa envolve-se numa aura mágica, num halo de maravilhosa
ingenuidade, que as torna visceralmente diferentes de quaisquer
outras.
Diversidade e unidade
Nisto já antecipamos a característica
dominante da coletânea: sem embargo de sua extrema diferenciação,
as vinte e uma estórias acabam dando uma impressão de homogeneidade
perfeita — tal como as novelas de Sagarana se fundem em
unidade, ou como as sete narrativas de Corpo de baile emergiram
intimamente associadas da imaginação do artista.
Diversos, antes de mais nada, os
assuntos: tente-se recontá-los em breves palavras para ver quantos.
Diversas as situações, os problemas envolvidos e suas soluções.
Note-se ainda que cada espécime pertence, por assim dizer, a outra
variante ou subgênero — o conto fantástico, o psicológico, o
autobiográfico, o episódio cômico ou trágico, o retrato, a
reminiscência, a anedota, a sátira, o poema em prosa... Distinga-se
a multiplicidade dos tons: jocoso, patético, sarcástico, lírico,
arcaizante, erudito, popular, pedante — multiplicidade decorrente
não só do tema, senão também da personalidade do narrador,
manifesto ou oculto. Observa-se a variedade da construção e do
ritmo.
Contudo as histórias se apresentam com
inconfundível ar de família, nimbadas do mesmo halo, trescalando o
mesmo perfume. O seu parentesco não se reduz a traços estilísticos:
provém de uma concepção pessoal tanto da vida como da arte.
Cada estória tem como núcleo um
acontecimento. Mas o sentido atribuível a esse termo não é o que
lhe dão comumente os dicionários, isto é, não é sinônimo de
ocorrência. “Parecia não acontecer coisa nenhuma”, adverte-nos
o contista certa vez; e em outra ocasião pondera, ainda mais
explícito: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos
vendo.”
Os protagonistas de Primeiras estórias
farejam esses acontecimentos, adivinham esses milagres. São todos,
em grau menor ou maior, videntes: entregues a uma ideia fixa,
obnubilados por uma paixão, intocados pela civilização, guiados
pelo instinto, inadaptados ou ainda não integrados na sociedade ou
rejeitados por ela, pouco se lhes dá do real e da ordem.
Neles a intuição e o devaneio
substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais fundo, os gestos e
os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que existe
dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir.
Essa vitória do irracional sobre o racional constitui-se em fonte
permanente de poesia.
Os que desencadeiam essa corrente e nela
se banham sentem-na com toda a intensidade, mas encontram dificuldade
em comunicá-la. Ainda que tenham o verbo fácil, falta-lhes o
domínio da linguagem abstrata e exteriorizam suas fortes
experiências íntimas com toda a sua riqueza de matizes numa língua
concreta, saborosa e enérgica; a maioria, porém, compõe-se de
taciturnos, desajeitados e ensimesmados, que nem tentam exprimir-se e
passariam despercebidos pela vida se não encontrassem quem lhes
emprestasse a voz. Reconstituir a fala daqueles, traduzir o silêncio
destes — eis a tarefa do contista.
Até os contos que não se enquandram
neste esquema representam, de uma ou de outra maneira, sondagens no
inconsciente; assim a evocação e reconstrução, pelo adulto, de
vivências infantis ou juvenis só parcialmente entendidas na época,
ou o monólogo do introspectivo à procura do próprio eu sob as
camadas superpostas pelas contigências do viver. O espetáculo
tragicômico do demente encarapitado no alto de uma palmeira enseja
um estudo de patologia individual, e outro, de patologia coletiva. As
próprias narrativas anedóticas se prolongam, pelas alternativas
sugeridas, num plano outro que não o real.
Paulo Rónai, in Os vastos espaços, prefácio de Primeiras estória, de Guimarães Rosa
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