quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Por que “primeiras” e porque “estórias”?

A obra de Guimarães Rosa, de riqueza e complexidade crescentes, estimula cada vez mais o trabalho da exegese. Note-se, porém, que mesmo os críticos mais aparelhados para a tarefa só a empreendem com precauções e ressalvas, como que intimados a definir primeiro o próprio ofício e a precisar-lhe as limitações. Enquanto não explanada, a obra se constitui de um conjunto de sugestões inseparavelmente entrelaçadas; destacando uma ou outra, a explanação relega as demais à sombra, além de romper os fios de interligação. Por isso é que, ao apontar três planos superpostos em Grande sertão: veredas, mestre Cavalcanti Proença se apressa em acrescentar: “É preciso, porém, ressaltar o artificialismo desta simplificação, pois que as várias camadas se interpenetram, não sendo possível delimitá-las, mas unicamente acentuar-lhes as características e conexões que nos permitem esta divisão genérica. Decorre dessa complexidade uma abundância de elementos alegóricos, uma simbologia muito densa, além do caráter polissêmico das personagens.”
Vilem Flusser, em sua notável glosa ao conto “As garças” (posterior a este volume), aponta outro perigo: a crítica “afrouxa a densidade e traduz o conto da camada vivencial para a intelectual”. As tentativas de explicação acabam, sem querer, apoiando o traço de desenhos cuja magia está no esvaimento dos contornos, por dar expressão matemática a um conjunto em que não há equações perfeitas.
Oswaldino Marques, em seu penetrante ensaio “Canto e plumagem das palavras”, todo ele consagrado à arte de Guimarães Rosa, julga indispensável uma definição prévia das tarefas da análise literária, uma das quais consiste em “tornar manifestos, a posteriori, os elos subconscientes da construção formal para definir os meios originais de que se valeu o artista no tour de force da imitação” (e, por se tratar de Guimarães Rosa, poderia ter dito “os elos subconscientes, e os conscientes, mas ocultados”).
Adolfo Casais Monteiro, estudioso eminente dos problemas do romance, em face de Grande sertão: veredas, renuncia à pretensão exegética para apenas “refletir sobre o livro que nos deixou profunda impressão, para nos esclarecermos mais do que esclarecer seja quem for
e muito menos para ensinar nada ao autor”.
Não é outra coisa que se propõe o prefaciador de Primeiras estórias ao tentar expor, mais uma vez, suas razões de deslumbramento e espanto ante um livro de Guimarães Rosa. De suas conversações com o autor, nas quais vislumbrou numerosos subentendidos que lhe tinham escapado durante a leitura, ficou-lhe a convicção de que mesmo ao olhar mais agudo seria impossível abranger a totalidade intrincada das intenções do mais consciente dos nossos escritores. Se, apesar disso, se atreve a perlustrar o mais labiríntico de seus livros, onde a perspectiva, a atmosfera e a temperatura emocional mudam mais de vinte vezes, é apenas para exemplificar uma das muitas maneiras de acercamento amoroso de uma obra de ficção com que as nossas letras contribuem para o enriquecimento da literatura mundial.

Por que “primeiras” e porque “estórias”?

Cada novo cume atingido é, para o artista criador, um triunfo e um perigo. A obra-prima realizada impõe a obrigação de superar-se. Em Corpo de baile, Guimarães Rosa soube corresponder à expectativa suscitada por Sagarana; em Grande sertão: veredas, soube ir ainda mais além; e soube renovar-se nestas Primeiras estórias, que, não obstante o seu volume pouco alentado, formam outra etapa importante na reta da sua ascensão e obrigam o comentarista a rever suas apreciações anteriores. Há vinte anos, num artigo sobre Sagarana, antevi a vocação de romancista do futuro autor de Grande sertão: veredas, mas pus em dúvida seus dotes para o conto curto. Hoje estou persuadido de que suas inesgotáveis vivências se cristalizam, por assim dizer, automaticamente no gênero mais apropriado.
Na falta de precisões da “orelha” do volume, o título pede duas palavras de explicação.
O epíteto não alude a trabalhos da mocidade ou anteriores aos já publicados em volumes, e sim à novidade do gênero adotado, a estória. Esse neologismo de sabor popular, adotado por número crescente de ficcionistas e críticos, embora ainda não registrado pelos dicionaristas, destina-se a absorver um dos significados de “história”, o de “conto” (= short story). A oposição conceitual resulta nitidamente deste trecho de “Nenhum, nenhuma”: “Era uma velha, uma velhinha — de história, de estória — velhíssima, a inacreditável.”
Embora o termo, hoje em dia, já apareça também sem conotação folclórica, referido às narrativas de Guimarães Rosa envolve-se numa aura mágica, num halo de maravilhosa ingenuidade, que as torna visceralmente diferentes de quaisquer outras.

Diversidade e unidade

Nisto já antecipamos a característica dominante da coletânea: sem embargo de sua extrema diferenciação, as vinte e uma estórias acabam dando uma impressão de homogeneidade perfeita — tal como as novelas de Sagarana se fundem em unidade, ou como as sete narrativas de Corpo de baile emergiram intimamente associadas da imaginação do artista.
Diversos, antes de mais nada, os assuntos: tente-se recontá-los em breves palavras para ver quantos. Diversas as situações, os problemas envolvidos e suas soluções. Note-se ainda que cada espécime pertence, por assim dizer, a outra variante ou subgênero — o conto fantástico, o psicológico, o autobiográfico, o episódio cômico ou trágico, o retrato, a reminiscência, a anedota, a sátira, o poema em prosa... Distinga-se a multiplicidade dos tons: jocoso, patético, sarcástico, lírico, arcaizante, erudito, popular, pedante — multiplicidade decorrente não só do tema, senão também da personalidade do narrador, manifesto ou oculto. Observa-se a variedade da construção e do ritmo.
Contudo as histórias se apresentam com inconfundível ar de família, nimbadas do mesmo halo, trescalando o mesmo perfume. O seu parentesco não se reduz a traços estilísticos: provém de uma concepção pessoal tanto da vida como da arte.
Cada estória tem como núcleo um acontecimento. Mas o sentido atribuível a esse termo não é o que lhe dão comumente os dicionários, isto é, não é sinônimo de ocorrência. “Parecia não acontecer coisa nenhuma”, adverte-nos o contista certa vez; e em outra ocasião pondera, ainda mais explícito: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.”
Os protagonistas de Primeiras estórias farejam esses acontecimentos, adivinham esses milagres. São todos, em grau menor ou maior, videntes: entregues a uma ideia fixa, obnubilados por uma paixão, intocados pela civilização, guiados pelo instinto, inadaptados ou ainda não integrados na sociedade ou rejeitados por ela, pouco se lhes dá do real e da ordem.
Neles a intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que existe dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir. Essa vitória do irracional sobre o racional constitui-se em fonte permanente de poesia.
Os que desencadeiam essa corrente e nela se banham sentem-na com toda a intensidade, mas encontram dificuldade em comunicá-la. Ainda que tenham o verbo fácil, falta-lhes o domínio da linguagem abstrata e exteriorizam suas fortes experiências íntimas com toda a sua riqueza de matizes numa língua concreta, saborosa e enérgica; a maioria, porém, compõe-se de taciturnos, desajeitados e ensimesmados, que nem tentam exprimir-se e passariam despercebidos pela vida se não encontrassem quem lhes emprestasse a voz. Reconstituir a fala daqueles, traduzir o silêncio destes — eis a tarefa do contista.
Até os contos que não se enquandram neste esquema representam, de uma ou de outra maneira, sondagens no inconsciente; assim a evocação e reconstrução, pelo adulto, de vivências infantis ou juvenis só parcialmente entendidas na época, ou o monólogo do introspectivo à procura do próprio eu sob as camadas superpostas pelas contigências do viver. O espetáculo tragicômico do demente encarapitado no alto de uma palmeira enseja um estudo de patologia individual, e outro, de patologia coletiva. As próprias narrativas anedóticas se prolongam, pelas alternativas sugeridas, num plano outro que não o real.

Paulo Rónai, in Os vastos espaços, prefácio de Primeiras estória, de Guimarães Rosa

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