Uma pessoa sabe que está morta quando
não consegue mais escutar a voz dos animais, dos espíritos, das
árvores, dos rios. Cada ente tem sua palavra, sua entonação
própria e vocabulário. A paca fala de uma maneira, o tabaco fala de
outra. A anta tem um acento, o jacaretinga tem outro. Tem palavras
que só as onças usam e que não é dado a nenhum outro animal
dizê-las. Do mesmo modo toda a diversidade de reinos dos bichos e
das plantas.
Tururu etê turuliu caa nañaña u eê
sapi, gritam os macacos quando entram em guerra.
A voz do peixe, em geral, é em
torvelinho; mas a fala da inaai é tal qual a fala de gente, mas com
um acento muito mais estrídulo. A voz da árvore tem semelhança com
a voz da nuvem, e a voz da pedra é em igual tom ao da voz dos
espíritos, uma fala muito clara e cortante. Só quem está vivo
consegue escutar a voz do mundo, entender sua linguagem, seu rumor,
os ermos e luminescências de suas palavras, e por estar vivo é que
consegue responder.
Antes de ser vendida e levada embora,
Iñe-e deslizava pelas águas dos rios como quem vive. Não pensamos
na respiração quando estamos vivos, não nos ocupamos em entender
os movimentos de encher os pulmões de ar ou de esvaziá-los; não
lembramos de sentir o calor do sopro passando pelas narinas,
mornamente, nem de sentir seu torpor quando está frio, muito frio.
Mas Iñe-e descia aquelas águas em uma igara, que escorregava como a
palma de uma mão deflui sobre o verde de uma folha muito lisa, e ela
não se dava conta, porque era o seu natural, mas aquilo era a beleza
de estar viva. E Iñe-e escutava.
No dia em que Iñe-e deixou a vida que
conhecia para trás, ela ouviu a voz do rio, contínua e tornada
escura pela fricção com as pedras, com as raízes e com a pele
corrediça dos peixes. Pôde sentir sua teimosia e agastamento, e
perceber as tentativas de impedir a sua partida. Assim, o rio jogou
barrancos de areia no caminho, enviou troncos para atingir as canoas,
assoprou nuvens de insetos. E esbravejava Vamos impedir nossas águas
revoltosas vão impedir os troncos de madeira rolando pelas águas
vão impedir os piuns já se ajuntam vão impedir nossa gente não
sabe chorar trovejar da minha língua vamos impedir toda a arte de
vocês é criação da morte vamos impedir [nós] a exibirmos nossa
plumagem e nossa tristeza nossas cores e nossa selvageria sabemos
lutar cuidado! as zarabatanas de água também mordem vamos impedir.
Mas de nada adiantou a arenga das
corredeiras. Os homens são tenazes em suas pilhagens e, assim sendo,
nada é realmente eficaz em impedi-los. Desse modo, a menina foi
levada para a cidade dos brancos, onde ficou por tantos meses que
chegou a pensar que ali seria o seu destino final. Quando começaram
os aprontamentos para a nova viagem, não se deu conta. Vivia
sobressaltada, esperando por algo que ela mesma não conseguia
conformar em ideia clara. Morava nela o desejo de que, de uma das
viagens que os cientistas faziam, sua mãe ou alguém conhecido
pudesse ser trazido junto, para que não fosse mais tão solitária
quanto era, muito embora cercada das outras crianças e de todos os
que viviam no entorno da casa e das palhoças. Não conseguia pensar
em outra coisa senão na vida e nas pessoas que deixara para trás, e
esses pensamentos enchiam sua cabeça, sua alma.
Nada sabia sobre o mar ou sobre as terras
que ficavam além dele. Sobre o movimento ao seu redor, achava que os
cientistas e os outros homens se preparavam para um novo saque e que
seria deixada mais uma vez ali com os outros, como os animais de
criação que os brancos tinham certeza de que eram. No entanto,
quando foram levados ao porto com uma infinidade de animais, entendeu
que nunca mais regressaria. E do porto saíram em comboio de cinco
monstruosos barcos, as brancas velas enfunadas por um vento sem
vontade, em direção a um destino sombrio, desconhecido. E quando
finalmente chegou ao alto-mar, Iñe-e não conseguia entender o que
aquele imenso cobertor de água lhe dizia.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
Nenhum comentário:
Postar um comentário