quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

O som do rugido da onça | IX


Uma pessoa sabe que está morta quando não consegue mais escutar a voz dos animais, dos espíritos, das árvores, dos rios. Cada ente tem sua palavra, sua entonação própria e vocabulário. A paca fala de uma maneira, o tabaco fala de outra. A anta tem um acento, o jacaretinga tem outro. Tem palavras que só as onças usam e que não é dado a nenhum outro animal dizê-las. Do mesmo modo toda a diversidade de reinos dos bichos e das plantas.
Tururu etê turuliu caa nañaña u eê sapi, gritam os macacos quando entram em guerra.
A voz do peixe, em geral, é em torvelinho; mas a fala da inaai é tal qual a fala de gente, mas com um acento muito mais estrídulo. A voz da árvore tem semelhança com a voz da nuvem, e a voz da pedra é em igual tom ao da voz dos espíritos, uma fala muito clara e cortante. Só quem está vivo consegue escutar a voz do mundo, entender sua linguagem, seu rumor, os ermos e luminescências de suas palavras, e por estar vivo é que consegue responder.
Antes de ser vendida e levada embora, Iñe-e deslizava pelas águas dos rios como quem vive. Não pensamos na respiração quando estamos vivos, não nos ocupamos em entender os movimentos de encher os pulmões de ar ou de esvaziá-los; não lembramos de sentir o calor do sopro passando pelas narinas, mornamente, nem de sentir seu torpor quando está frio, muito frio. Mas Iñe-e descia aquelas águas em uma igara, que escorregava como a palma de uma mão deflui sobre o verde de uma folha muito lisa, e ela não se dava conta, porque era o seu natural, mas aquilo era a beleza de estar viva. E Iñe-e escutava.
No dia em que Iñe-e deixou a vida que conhecia para trás, ela ouviu a voz do rio, contínua e tornada escura pela fricção com as pedras, com as raízes e com a pele corrediça dos peixes. Pôde sentir sua teimosia e agastamento, e perceber as tentativas de impedir a sua partida. Assim, o rio jogou barrancos de areia no caminho, enviou troncos para atingir as canoas, assoprou nuvens de insetos. E esbravejava Vamos impedir nossas águas revoltosas vão impedir os troncos de madeira rolando pelas águas vão impedir os piuns já se ajuntam vão impedir nossa gente não sabe chorar trovejar da minha língua vamos impedir toda a arte de vocês é criação da morte vamos impedir [nós] a exibirmos nossa plumagem e nossa tristeza nossas cores e nossa selvageria sabemos lutar cuidado! as zarabatanas de água também mordem vamos impedir.
Mas de nada adiantou a arenga das corredeiras. Os homens são tenazes em suas pilhagens e, assim sendo, nada é realmente eficaz em impedi-los. Desse modo, a menina foi levada para a cidade dos brancos, onde ficou por tantos meses que chegou a pensar que ali seria o seu destino final. Quando começaram os aprontamentos para a nova viagem, não se deu conta. Vivia sobressaltada, esperando por algo que ela mesma não conseguia conformar em ideia clara. Morava nela o desejo de que, de uma das viagens que os cientistas faziam, sua mãe ou alguém conhecido pudesse ser trazido junto, para que não fosse mais tão solitária quanto era, muito embora cercada das outras crianças e de todos os que viviam no entorno da casa e das palhoças. Não conseguia pensar em outra coisa senão na vida e nas pessoas que deixara para trás, e esses pensamentos enchiam sua cabeça, sua alma.
Nada sabia sobre o mar ou sobre as terras que ficavam além dele. Sobre o movimento ao seu redor, achava que os cientistas e os outros homens se preparavam para um novo saque e que seria deixada mais uma vez ali com os outros, como os animais de criação que os brancos tinham certeza de que eram. No entanto, quando foram levados ao porto com uma infinidade de animais, entendeu que nunca mais regressaria. E do porto saíram em comboio de cinco monstruosos barcos, as brancas velas enfunadas por um vento sem vontade, em direção a um destino sombrio, desconhecido. E quando finalmente chegou ao alto-mar, Iñe-e não conseguia entender o que aquele imenso cobertor de água lhe dizia.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

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