A alusão ao poeta Lemsford em capítulo
anterior me leva a tratar de nossos amigos em comum, Nord e Williams,
os quais, com o próprio Lemsford, Jack Chase e meus camaradas de
gávea, compreendem praticamente as únicas pessoas a bordo da
fragata com quem eu tinha relações sem qualquer reserva. Pois,
pouco depois de embarcar, percebi que não poderia ser íntimo de
todos. Uma proximidade indiscriminada com toda a marujada leva a
irritações inúmeras e atritos, que não raro terminam com
chibatadas no passadiço. Embora estivesse havia mais de um ano na
fragata, existia um grupo grande de homens que me era absolutamente
estranho, cujos nomes ignorava e que dificilmente seria capaz de
reconhecer se os encontrasse por acaso nas ruas.
Nos quartinhos em alto-mar, durante a
primeira parte da noite, o convés principal mostra-se geralmente
apinhado com suas multidões de pedestres, passeando de um lado para
o outro ladeados pelos canhões como fossem pessoas procurando ar
fresco na Broadway. Nessas ocasiões, é curioso ver os homens
cumprimentando-se com meneios ao reconhecimento uns dos outros (é
possível que uma semana tenha se passado desde seu último contato);
trocando palavras amistosas com amigos; marcando apressadamente algum
encontro para o dia seguinte sobre os mastros, ou passando por grupos
inteiros sem se dignar à menor saudação. A bem da verdade,
comparativamente falando, não era eu o único a ter senão poucos
conhecidos a bordo, embora certamente levasse minha meticulosidade a
níveis excepcionais.
Meu amigo Nord era, arrisco dizer, figura
do mais absoluto interesse; e, se o mistério inclui aventura, era
certamente muito aventureiro. Antes de conseguir ser apresentado a
ele por meio de Lemsford, muitas vezes tive a oportunidade de
observar sua figura alta, magra, aprumada, pavoneando-se como um Dom
Quixote em meio aos pigmeus da guarda de popa, à qual pertencia. De
início, julguei-o excessivamente reservado e taciturno; o semblante
saturnino mostrava-se invariavelmente carrancudo; e seus modos
denotavam antipatia quase repulsiva. Em suma, parecia ser seu desejo
que entendêssemos que sua lista de amigos de fragata estava já
fechada, repleta e completa; sem lugar para quem quer que fosse.
Porém, observando que Lemsford era o único marinheiro com quem Nord
se relacionava, tive a nobreza de conter meu ressentimento em relação
a sua frieza e não permiti que ele perdesse para sempre a
oportunidade de entrar em contato com alguém de minha capital
importância. Ademais, notei em seu olhar que se tratava de um
conhecedor de bons livros; apostaria minha vida que ele compreendia o
verdadeiro sentido da prosa de Montaigne. Percebi que Nord era um
profundo pensador; mais do que suspeitava que estivera preso ao
moinho das adversidades. Por tudo isso, meu coração lhe guardava
profunda simpatia; estava determinado a conhecê-lo.
Por fim, obtive sucesso; aconteceu
durante um quarto profundamente silencioso, à meia-noite, quando o
vi caminhando a sós no poço, enquanto a maioria dos homens
cochilava sobre os reparos das caronadas.
Naquela noite, esquadrinhamos toda a
pradaria de nossas leituras; mergulhamos no mais íntimo dos autores
para trazer-lhes à tona os corações; e naquela noite Jaqueta
Branca aprendeu mais do que jamais aprendera numa única noite desde
então.
O homem era um portento. Ele me espantava
— tanto quanto Coleridge o fizera com os soldados entre os quais se
alistara. O que teria levado um homem como aquele a embarcar numa
fragata? As razões me eram insondáveis. Da mesma forma, era um
mistério como ele conseguia manter a dignidade, tal como mantinha,
em meio àquela turba. Ele não era marinheiro; tão ignorante de um
navio quanto os homens o são das nascentes do rio Níger. Os
oficiais, porém, respeitavam-no; e a marujada o temia. Isso se
notava pelo fato de invariavelmente declinar de quaisquer funções
especiais que lhe fossem atribuídas; e ter a sorte de jamais se
expor ou sujeitar-se à reprimenda. Sem dúvida, sua postura diante
do problema era compartilhada por outros marinheiros; e desde o
início decidiu se portar de forma tal que jamais corresse o risco de
ser açoitado. E deve ter sido isso — além de qualquer dor
incomunicável que nele porventura houvesse — que fez de Nord um
recluso vira-mundos, mesmo cercado pelo tumulto de um navio de
guerra. Provavelmente sua maca não balançava havia muito no convés
quando constatou que, para garantir-se livre daquilo que o
amedrontava, precisava estar disposto a tornar-se, de um modo geral,
um misantropo, expatriando-se socialmente de muitas coisas que lhe
teriam tornado a vida mais suportável. Não obstante, muitos devem
ter sido os acontecimentos que o amedrontaram com o pensamento de
que, por mais que se isolasse e enterrasse, a improbabilidade de ser
submetido àquilo que mais temia jamais atingiria a infalibilidade do
impossível.
Em meu contato com Nord, ele jamais fez
alusão a sua vida pregressa — assunto sobre o qual a maioria dos
desgarrados de estirpe numa fragata é bastante prolixa, relatando
aventuras na mesa de jogo, a indiferença com que perderam fortunas
inteiras numa única rodada, suas esmolas generosas e gratificações
a carregadores e parentes pobres, e, acima de tudo, indiscrições de
juventude e as donzelas de coração partido que deixaram para trás.
Nord não contava quaisquer histórias do gênero. No que toca a seu
passado, este era cerrado e trancado como os cofres de dinheiro em
espécie do Banco da Inglaterra. Pois, a contar com tudo que dele
escapava, nenhum de nós poderia cravar que tivesse qualquer
existência anterior àquele momento. De qualquer forma, era uma
figura do mais absoluto interesse.
Meu outro amigo, Williams, era um típico
ianque do Maine, mascate e, de ofício, professor. Desfiava todo tipo
de história sobre pequenos divertimentos interioranos e arrolava uma
infindável lista de namoradas. Era honesto, esperto, engenhoso,
cheio de alegria e bom humor — um sorridente filósofo. Era uma
inestimável ajuda contra o tédio; assim, visando a estender as
vantagens de sua companhia ao saturnino Nord, apresentei-os; na mesma
noite, porém, este ignorou-o por completo, quando partimos de entre
canhões para uma caminhada no convés principal.
Herman Melville, in Jaqueta Branca
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