Na
Faculdade Estadual de São Francisco, naquela manhã, o vento soprava
a chuva fria em rajadas sobre os gramados lamacentos e contra as
janelas iluminadas das salas vazias. Dias antes tinha havido
incêndios, aulas invadidas e um confronto com a Unidade Tática da
polícia da cidade. Nas semanas seguintes, o campus ia se tornar o
que muitas pessoas ficariam contentes de chamar de “campo de
batalha”. A polícia, o gás lacrimogêneo e as prisões ao
meio-dia se tornariam rotina na faculdade, e toda noite os
combatentes recapitulariam o dia deles na televisão: as ondas de
estudantes avançando, a comoção no canto do enquadramento, os
cassetetes reluzindo, o instante de câmera trêmula que servia para
sugerir a qual preço a filmagem tinha sido obtida; então um corte
para a previsão do tempo. No começo houvera o indispensável
“problema”, a suspensão de um professor de 22 anos que, por
acaso, também era ministro da Educação do Partido dos Panteras
Negras, mas esse problema, como a maioria, logo havia deixado de ser
o objetivo até mesmo na mente dos participantes mais idiotas. A
desordem era o objetivo.
Eu
nunca antes tinha estado em um campus nessa situação, perdera até
mesmo Berkeley e Columbia, e suponho que fui à Estadual de São
Francisco esperando encontrar algo diferente do que encontrei. Em
certo sentido, nada trivial, o cenário estava errado. A própria
arquitetura das faculdades estaduais da Califórnia tende a negar
ideias radicais. Em vez disso, reflete uma visão burocrata de
bem-estar progressista, modesta e esperançosa. Enquanto eu andava de
um lado para outro do campus naquele dia e nos dias seguintes, todo o
dilema da Estadual de São Francisco — a politização gradual, os
“problemas” aqui e ali, as “quinze demandas” obrigatórias, a
agitação contínua da polícia e dos cidadãos indignados —
parecia cada vez mais fora do tom, um caso de enfants terribles
e conselho administrativo colaborando inconscientemente em uma
fantasia ilusória (Revolução do Campus) e a levando a cabo a tempo
do noticiário das seis horas. “Reunião do comitê de porpaganda
no Redwood Room”, lia-se em uma anotação rabiscada na porta do
refeitório certa manhã; apenas alguém muito desesperado
responderia com tanta força um bando de guerrilheiros que não só
anunciavam a própria reunião no quadro de avisos do inimigo como
pareciam alheios à ortografia, e também ao significado, das
palavras que usavam. “Hayakawa Hitler” era como alguns docentes
começaram a chamar S.I. Hayakawa, o semanticista que se tornara o
terceiro reitor da faculdade em um ano e tinha se exposto a um
descontentamento considerável ao tentar manter o campus aberto.
“Eichmann”,
Kay Boyle gritara para ele em uma manifestação. Com esses poucos e
amplos traços estava sendo pintado o outono de 1968 no campus de
tons pastel da Estadual de São Francisco.
O
lugar simplesmente nunca parecia sério. As manchetes eram sombrias
naquele primeiro dia, a faculdade fora fechada “por tempo
indeterminado”, tanto Ronald Reagan quanto Jesse Unruh ameaçavam
represálias. Ainda assim, a atmosfera dentro do prédio da
administração era a de uma comédia musical sobre a vida
universitária.
“De
jeito nenhum a gente vai abrir amanhã”, informavam
secretárias àqueles que telefonavam. “Vá esquiar, divirta-se.”
Militantes
negros em greve apareciam para conversar com os reitores; radicais
brancos em greve fofocavam nos corredores.
“Sem
entrevistas, sem imprensa”, anunciou um estudante líder da greve
ao entrar no escritório do reitor, onde eu estava. No momento
seguinte, ele ficou irritado porque ninguém tinha lhe dito que uma
equipe de filmagem do Huntley-Brinkley estava no campus.
“A
gente ainda pode entrar nessa”, disse o reitor com calma.
Todo
mundo parecia unido em uma camaradagem um tanto festiva, em um jargão
em comum, em um senso compartilhado de momento: o futuro não era
mais árduo e indefinido, era imediato e programático, radiante com
a perspectiva dos problemas a serem “endereçados”, dos planos a
serem “implementados”. Era um consenso que os confrontos podiam
representar “uma evolução muito saudável”, que talvez uma
paralisação fosse necessária para “algo ser feito”. O clima,
como a arquitetura, era o funcional de 1948, um modelo de otimismo
pragmático.
Talvez
Evelyn Waugh pudesse ter descrito isso do jeito certo: Waugh era bom
com cenas de autoilusão elaborada, cenas de pessoas absorvidas por
jogos estranhos. Aqui, na Estadual de São Francisco, só os
militantes negros podiam ser levados a sério. Para todos os efeitos,
eles estavam escolhendo as partidas, ditando as regras e extraindo o
que podiam daquilo que, para todos os outros, parecia apenas uma
agradável fuga da rotina, da ansiedade institucional, do tédio do
calendário acadêmico. Enquanto isso, os administradores podiam
falar dos cursos. Enquanto isso, os radicais brancos, que não tinham
nada a perder, podiam se ver como guerrilheiros urbanos. Esse jogo na
Estadual de São Francisco era bom para todo mundo, e as virtudes
peculiares dele nunca ficaram tão claras para mim quanto na tarde em
que participei de uma reunião de cinquenta ou sessenta membros da
Students for a Democratic Society. Eles tinham convocado uma coletiva
de imprensa para mais tarde naquele dia, e agora discutiam
“exatamente qual deveria ser o formato da coletiva de imprensa”.
“Tem
que ser nos nossos termos”, advertiu alguém. “Porque eles vão
fazer perguntas bem capciosas, vão fazer perguntas.”
“Mande
submeterem todas as perguntas por escrito”, sugeriu outra pessoa.
“A União dos Estudantes Negros faz isso e é muito bem-sucedida.
Eles simplesmente não respondem nada que não queiram responder.”
“Boa.
Não caiam na armadilha.”
“Algo
que a gente devia enfatizar nessa coletiva de imprensa é quem
controla a mídia.”
“Você
não acha que é de conhecimento geral que os jornais representam
interesses corporativos?”, interrompeu uma pessoa com bom senso
entre eles, em dúvida.
“Não
acho que isso seja compreendido…”
Duas
horas e dezenas de votações depois, o grupo havia selecionado
quatro membros para dizer à imprensa quem controlava a mídia, tinha
decidido comparecer en masse a uma coletiva de imprensa e
debatido várias palavras de ordem para a manifestação do dia
seguinte.
“Vamos
ver, primeiro nós temos ‘William Randolph Hearst só conta o que
quer’, aí ‘Chega de distorção da imprensa’ — essa é
aquela que deu alguma controvérsia política…”
Antes
de se dispersarem, eles ouviram um estudante que tinha vindo da
Faculdade de San Mateo, uma instituição localizada descendo a
península a partir de São Francisco.
“Vim
aqui hoje com alguns estudantes do Terceiro Mundo para dizer que
estamos com vocês, e esperamos que estejam do nosso lado
quando a gente tentar fazer uma greve na semana que vem, porque a
gente está nessa de verdade, a gente carrega nossos capacetes o
tempo todo, não consegue pensar, não consegue ir para aula.”
Ele
fez uma pausa. Era um rapaz bonito, entusiasmado pela incumbência
dele. Pensei na suave melancolia da vida em San Mateo, que é um dos
condados com maior riqueza per capita dos Estados Unidos, e
pensei se Wichita Lineman e as pétalas em um galho preto e molhado
representavam ou não a falta de propósito da burguesia. Pensei na
ilusão de um objetivo a ser alcançado com uma coletiva de imprensa,
sendo o único problema das coletivas de imprensa o fato de que a
imprensa fazia perguntas.
“Vim
aqui para dizer que, na Faculdade de San Mateo, estamos vivendo como
revolucionários”, falou o garoto então.
Joan Didion, in O álbum branco
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