segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Morte e luto


Quando o estado de Mama piorou, sem esperança de melhora, ela foi sacrificada por um veterinário. Foi um dia imensamente triste, mas a decisão era inevitável. O zoológico então fez algo que raramente integra o protocolo da morte: ofereceu à colônia de símios a chance de ver e tocar o cadáver, deixando-o no abrigo noturno com as portas abertas. Todas as idas e vindas foram filmadas.
Os vídeos deixam claro que as fêmeas estavam mais interessadas que os machos. Os machos bateram no corpo de Mama algumas vezes e o arrastaram. Esse tratamento grosseiro pode parecer inadequado, mas já o havíamos visto antes: é provável que seja uma tentativa de despertar o morto. Como ter certeza de que um indivíduo está realmente morto, a menos que suas reações tenham sido exaustivamente testadas? Mesmo em salas de emergência do hospital uma pessoa só é declarada morta depois que os esforços de ressuscitação fracassaram. As fêmeas fizeram algo parecido, embora um pouco mais sutil: levantaram um braço ou um pé e o deixaram cair, ou olharam dentro da boca, talvez para verificar a ausência de respiração. Mas, quando uma das fêmeas puxou o corpo para movê-lo, levou uma bronca de Geisha, a filha adotiva de Mama. Ao contrário das outras, Geisha não fez nenhuma pausa para comer ou interagir com os outros chimpanzés e ficou com o cadáver o tempo todo. Ela agiu como as pessoas fazem num velório, durante o qual, originalmente, as pessoas mantinham vigília junto à pessoa morta, em casa. É provável que os seres humanos tenham criado o velório na esperança de que seu ente querido voltasse à vida, ou então para ter certeza de que ele estava morto antes de ser enterrado.
Geisha é filha de Kuif. Mama passara a cuidar dela após a morte da mãe. Isso era lógico, tendo em vista a relação íntima de Mama com Kuif. Agora, depois da morte de Mama, foi Geisha quem passou a maior parte do tempo com o cadáver, mais ainda do que a filha biológica e a neta de Mama. Todas as fêmeas visitaram o recinto em silêncio total, estado incomum para os chimpanzés. Elas cheiraram e inspecionaram o cadáver de várias maneiras, ou passaram um tempo catando o corpo morto de Mama.
Elas também trouxeram um cobertor de outro lugar, deixando-o perto de Mama. Isso foi mais difícil de interpretar, mas me lembrou de outra morte de chimpanzé.
Um dia, na Estação de Campo do Centro Nacional Yerkes de Pesquisas sobre Primatas, Amos, um popular ex-macho alfa, estava ofegando a uma velocidade de sessenta respirações por minuto. O suor escorria de seu rosto. Não tínhamos percebido seu estado de saúde precário antes porque, como a maioria dos machos, ele o escondera o máximo possível. Os machos evitam mostrar vulnerabilidades. Somente após sua morte, alguns dias depois, foi que soubemos que ele estava com o fígado enormemente inchado e tinha múltiplos cânceres. Uma vez que ele se recusava a sair com os outros, nós o mantivemos separado e entreabrimos uma porta para seu abrigo noturno. Sua amiga Daisy vinha frequentemente visitá-lo. Ela estendia o braço através da abertura para catar ternamente o ponto macio atrás das orelhas. Em algum momento, foi buscar maravalha e começou a empurrar grandes quantidades dela para Amos. Chimpanzés gostam de construir ninhos com esse material. Daisy empurrou várias vezes a maravalha entre as costas de Amos e a parede contra a qual ele estava encostado, como se percebesse que o amigo estava com dor e seria melhor se apoiar em algo macio. Parecia o jeito como arrumamos os travesseiros nas costas de um paciente no hospital.
Então, mesmo que não saibamos como aquele cobertor acabou perto dos restos mortais de Mama, não podemos descartar que alguém estava tentando fazê-la se sentir confortável, talvez em reação ao seu corpo gelado. O estudo de como os símios e outros animais reagem à morte de outros faz parte da tanatologia, nome derivado de Tânatos, o deus grego da morte não violenta. O luto após a morte é difícil de definir, porém a antropóloga norte-americana Barbara King propõe que um requisito mínimo é que os indivíduos próximos ao falecido alterem significativamente o comportamento, comendo menos, tornando-se apáticos ou guardando o local onde o morto foi visto pela última vez. Se o falecido é um filhote, a mãe pode ficar com o cadáver malcheiroso até que ele se desfaça, como já se observou muitas vezes. Numa floresta da África Ocidental, a mãe chimpanzé carregou seu bebê morto por nada menos que 27 dias. Essa reação é bastante natural nos primatas, que transportam filhotes na barriga ou nas costas, mas também foi observada em golfinhos. A mãe golfinho pode manter o corpo de seu filhote morto flutuando durante muitos dias.
Os indivíduos que não têm vínculo com o falecido não têm motivos para serem afetados por sua morte. Muitos animais de estimação, por exemplo, dificilmente reagem quando outro da mesma casa morre. O luto exige apego. Quanto mais forte o laço, mais forte a reação quando ele é cortado. Isso é válido para todos os mamíferos e aves, inclusive os corvídeos (membros da família dos corvos). Quando a fêmea de uma de minhas gralhas desapareceu, por razões desconhecidas, seu companheiro a chamou por dias a fio enquanto esquadrinhava o céu. Uma vez que ela não voltou, ele desistiu e morreu alguns dias depois. Então, foi a minha vez de lamentar a perda de duas aves que tinham me dado tanto afeto e alegria, e que me ensinaram que a vida emocional das aves está em pé de igualdade com a dos mamíferos.
O eminente etólogo austríaco Konrad Lorenz idealizava os vínculos de casal vitalícios de seus gansos. Quando uma de suas alunas disse que havia notado algumas infidelidades, ela suavizou o golpe acrescentando que isso tornava os gansos “humanos”. O vínculo de casal ou monogamia é mais típico das aves que dos mamíferos. Na verdade, pouquíssimos primatas são monogâmicos, e é discutível se os seres humanos o são de verdade. No entanto, as emoções associadas podem ser semelhantes entre as espécies, pois a oxitocina está envolvida em todos os mamíferos. Esse antigo neuropeptídio é liberado pela glândula pituitária durante o sexo, a amamentação e o parto (é administrado rotineiramente nas maternidades para induzir o parto), mas também serve para promover os laços entre os adultos. As pessoas que acabaram de se apaixonar têm mais oxitocina no sangue do que os solteiros, e sua alta concentração dura se o relacionamento durar. Mas a oxitocina também protege os casais monogâmicos de aventuras sexuais com estranhos. Quando se administra esse hormônio, em forma de spray nasal, a homens casados, eles se sentem desconfortáveis perto de mulheres atraentes e preferem manter distância.
Mesmo se considerarmos o amor romântico humano especial, as semelhanças neurais com outras espécies são impressionantes. Larry Young, um colega neurocientista da Universidade Emory, é conhecido por seus estudos de duas espécies de ratos silvestres. A ratazana do prado leva uma vida promíscua, ao passo que o arganaz do campo, de aparência semelhante, forma pares nos quais macho e fêmea se acasalam exclusivamente entre si e criam filhotes juntos. Os arganazes do campo possuem muito mais receptores de oxitocina nas vias de recompensa de seus cérebros do que as ratazanas do prado. Em consequência, têm uma associação intensamente positiva com o sexo, o que os torna “viciados” no parceiro com o qual o fazem. A oxitocina garante que eles se vincularão. Se perdem o(a) parceiro(a), esses ratos apresentam mudanças cerebrais químicas que sugerem estresse e depressão; tornam-se também passivos diante do perigo, como se viver ou morrer não lhes importasse mais. Portanto, até esses minúsculos roedores parecem conhecer o pesar da morte.
A zoóloga norte-americana Patricia McConnell descreve como sua cadela Lassie reagiu à morte do melhor amigo, o cão Luke. Os dois se adoravam e estavam sempre juntos. Após a morte de Luke, Lassie ficou um dia inteiro no quarto onde o corpo estivera, deitada de cabeça baixa, com os olhos melancolicamente tristes e as sobrancelhas franzidas. No dia seguinte, ela regrediu ao comportamento estereotipado de sua juventude, girando como louca, lambendo e chupando os brinquedos como se estivesse mamando. McConnell concluiu que Lassie havia compreendido o caráter definitivo da morte de Luke. Caso contrário, por que mudaria tão drasticamente de disposição?
Tudo indica que ao menos alguns animais percebem que um companheiro morto nunca se moverá de novo. Quando um chimpanzé macho adulto caiu de uma árvore e quebrou o pescoço, uma fêmea adolescente selvagem fitou seu corpo imóvel por mais de uma hora, sem interrupção, enquanto os machos ao redor se abraçavam com sorrisos nervosos. Não haveria razão para essas reações dramáticas se os símios considerassem passageira a situação do outro. Além disso, a percepção da irreversibilidade implica uma expectativa em relação ao futuro. Temos muitas provas científicas da orientação para o futuro em primatas, baseadas no modo como eles planejam suas viagens ou preparam ferramentas para uma tarefa, mas raramente consideramos a previsão ligada à vida e à morte. Por razões óbvias, nos faltam experimentos sobre essa habilidade. Se chamarmos a consciência da própria morte de senso de mortalidade — de cuja existência não temos provas fora de nossa própria espécie —, podemos chamar o reconhecimento de Lassie de que Luke não retornará de senso de finitude. Este difere do senso de mortalidade, pois diz respeito ao outro, e não ao eu.
Há muitas histórias de luto semelhantes, também de gatos e, evidentemente, entre animais de estimação e seus donos. Sabe-se de cães que passam anos perto do túmulo de seu companheiro humano ou que voltam todos os dias à estação de trem onde costumavam buscá-lo. Em Edimburgo e Tóquio vi estátuas em homenagem a cães leais, chamados Bobby e Hachiko. A mesma lealdade post mortem pode vigorar entre outros animais. Os elefantes juntam o marfim ou os ossos de um membro da manada morto, seguram os pedaços com a tromba e os passam para os outros. Alguns elefantes retornam durante anos ao local onde um parente morreu, apenas para tocar e inspecionar as relíquias.
Um indício diferente do senso de finitude ocorreu um dia depois que uma víbora-do-gabão, uma cobra venenosa, entrou num santuário africano. A cobra despertou um medo intenso entre os bonobos, e todos saltaram para trás diante de seus movimentos. Os bonobos a cutucaram cautelosamente com uma vara, até que finalmente a fêmea alfa agarrou a cobra, ergueu-a no ar e bateu com ela contra o chão. Depois que a matou, ninguém deu qualquer indicação de esperar que a cobra voltasse à vida. O que está morto, está morto. Os jovens arrastaram alegremente o corpo sem vida como um brinquedo, enrolando-o no pescoço e até abrindo-lhe a boca para estudar as enormes presas. Esses símios devem ter considerado a morte da cobra irreversível.
Raramente testemunhamos o momento da morte de um membro de uma colônia de símios, mas isso aconteceu no Zoológico Burgers, quando Oortje literalmente caiu morta. Ela era uma das minhas preferidas, com seu caráter sempre despreocupado. Oortje estava tossindo e seu estado de saúde continuava a se deteriorar, apesar dos antibióticos que lhe demos. Um dia, vimos Kuif olhando de perto nos olhos de Oortje. Então, sem nenhuma razão aparente, Kuif começou a gritar com uma voz histérica enquanto se batia em movimentos espasmódicos dos braços, como fazem os chimpanzés frustrados. Ela parecia perturbada com algo que vira nos olhos de Oortje. A própria Oortje ficara em silêncio até aquele momento, mas passou a gritar fracamente em resposta. Ela tentou se deitar, caiu do tronco em que estava sentada e ficou imóvel no chão. Em outra parte, uma fêmea soltou gritos semelhantes aos de Kuif, embora não pudesse ter visto o que havia acontecido. Depois disso, 25 chimpanzés ficaram completamente silenciosos. O cuidador tirou todos os outros símios do caminho, depois tentou ressuscitar Oortje fazendo respiração boca a boca, sem sucesso. A autópsia revelou que Oortje tinha uma enorme infecção no coração e no abdômen.
Os primatas, como os que rodearam o corpo de Mama, reagem à morte da mesma maneira que os humanos cuidam dos mortos: tocando, lavando, untando e catando os corpos antes de deixá-los. Mas nós vamos além, pois enterramos os mortos e muitas vezes lhes damos algo para levar em sua “viagem”. Os antigos egípcios enchiam os túmulos dos faraós de comida, vinho, cães de caça, babuínos de estimação e embarcações a vela de grande porte. Para tornar uma perda suportável e para acalmar nosso próprio terror da mortalidade, os seres humanos frequentemente encaram a morte como transição para uma vida diferente. Não temos indícios dessa notável inovação mental em nenhum outro animal.
Uma discussão sobre essas distinções surgiu em torno da descoberta, em 2015, do Homo naledi, um parente humano primitivo. Seus restos fósseis foram encontrados dentro de uma caverna na África do Sul. Esse primata tinha quadris semelhantes aos dos australopitecos, porém pés e dentes mais típicos de nosso próprio gênero. É muito provável que o Homo naledi pertença a uma das dezenas de ramos laterais da gigantesca árvore que é a nossa ancestralidade, mas os paleontólogos não gostam dessa proposta. Eles sempre preferem que suas descobertas estejam assentadas no pequeno ramo que chega até nós, mesmo que as chances de isso ser verdade sejam mínimas. Desse modo, eles podem alegar que encontraram um ancestral humano. Mas como poderiam defender essa alegação no que dizia respeito ao Homo naledi, que tinha o cérebro do tamanho do de um chimpanzé? Quando descobriram restos fósseis numa parte quase inacessível do mesmo sistema de cavernas, os cientistas acharam que tinham a prova de que precisavam, pois aqueles restos deveriam ter sido colocados lá deliberadamente. Somente seres humanos seriam tão atenciosos com seus mortos, alegaram eles. A proposta era ao mesmo tempo altamente especulativa e fruto da ignorância sobre como outras espécies tratam os defuntos.
Como os chimpanzés e outros primatas nunca ficam em um lugar por muito tempo, eles não têm motivo para cobrir ou enterrar um cadáver. Se ficassem em um mesmo lugar, sem dúvida notariam que a carniça atrai carniceiros, inclusive predadores terríveis, como as hienas. De forma alguma excederia a capacidade mental de um símio resolver o problema cobrindo um cadáver malcheiroso ou movendo-o para fora do caminho. Esse comportamento dificilmente exigiria a crença em uma vida após a morte. O mesmo tipo de necessidade prática pode ter impulsionado o Homo naledi. A essa altura, nós simplesmente não sabemos se moveram seus mortos com cuidado e preocupação ou os jogaram sem cerimônia numa caverna distante para se livrar deles. Pode até ser pior: quem disse que os restos descobertos estavam mortos no momento em que foram parar na caverna?
É uma estranha coincidência que a palavra naledi (que significa “estrela” nas línguas sotho-tswana) seja um anagrama de denial [“negação”, em inglês]. Os descobridores do fóssil estavam ansiosos demais para enfatizar sua humanidade, ao mesmo tempo que negavam o quanto nossos ancestrais tinham em comum com os símios. Os seres humanos divergiram dos símios há tanto tempo quanto o elefante africano divergiu do asiático, e são geneticamente tão próximos ou distantes. No entanto, chamamos livremente essas duas espécies de “elefantes”, enquanto temos uma obsessão com o ponto específico em que a nossa própria linhagem mudou de símio para humano. Temos até palavras especiais para esse processo, como “hominização” e “antropogênese”. É uma ilusão generalizada que tenha havido tal momento no tempo, como tentar encontrar o comprimento de onda exato no espectro da luz em que o laranja se transforma em vermelho. Nosso desejo por divisões nítidas está em desacordo com o hábito da evolução de fazer transições extremamente suaves.
Não se sabe quão difundido é o senso de finitude e quanto ele se baseia numa projeção mental do futuro. Mas membros de pelo menos algumas espécies parecem perceber, depois de se assegurarem por olfato, tato e tentativas de reavivamento, que um ente querido se foi, que a relação entre eles migrou de forma permanente do presente para o passado. Como eles chegam a essa percepção é intrigante. Baseiam-se na experiência? Ou sabem intuitivamente que a morte faz parte da vida? Isso também nos lembra que todas as emoções estão misturadas com o conhecimento — elas não existiriam de outra forma. Quando os animais fazem algo interessante, os cientistas da cognição às vezes dizem que “isso é apenas uma emoção”, mas as emoções nunca são simples e nunca se separam de uma avaliação da situação. O luto, em particular, é muito mais complexo do que se sugere ao chamá-lo de emoção. Ele representa o avesso triste do laço social: a perda. Ele pode penetrar tão profundamente na alma de alguns animais quanto nas nossas, baseado em processos neurais compartilhados, como o sistema da oxitocina, e talvez uma consciência similar da vida e de suas vulnerabilidades.
Para mim, as visitas à colônia de Burgers nunca mais serão as mesmas. A morte de Mama deixou um buraco gigantesco para os chimpanzés, assim como para Jan, para mim e para seus outros amigos humanos. Ela representava o coração da colônia. A vida continua, como deve, mas os indivíduos são únicos. Não imagino que eu vá algum dia encontrar uma personalidade símia tão impressionante e inspiradora quanto a de Mama.

Frans de Waal, in O último abraço da matriarca

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