Quando o estado de Mama piorou, sem
esperança de melhora, ela foi sacrificada por um veterinário. Foi
um dia imensamente triste, mas a decisão era inevitável. O
zoológico então fez algo que raramente integra o protocolo da
morte: ofereceu à colônia de símios a chance de ver e tocar o
cadáver, deixando-o no abrigo noturno com as portas abertas. Todas
as idas e vindas foram filmadas.
Os vídeos deixam claro que as fêmeas
estavam mais interessadas que os machos. Os machos bateram no corpo
de Mama algumas vezes e o arrastaram. Esse tratamento grosseiro pode
parecer inadequado, mas já o havíamos visto antes: é provável que
seja uma tentativa de despertar o morto. Como ter certeza de que um
indivíduo está realmente morto, a menos que suas reações tenham
sido exaustivamente testadas? Mesmo em salas de emergência do
hospital uma pessoa só é declarada morta depois que os esforços de
ressuscitação fracassaram. As fêmeas fizeram algo parecido, embora
um pouco mais sutil: levantaram um braço ou um pé e o deixaram
cair, ou olharam dentro da boca, talvez para verificar a ausência de
respiração. Mas, quando uma das fêmeas puxou o corpo para movê-lo,
levou uma bronca de Geisha, a filha adotiva de Mama. Ao contrário
das outras, Geisha não fez nenhuma pausa para comer ou interagir com
os outros chimpanzés e ficou com o cadáver o tempo todo. Ela agiu
como as pessoas fazem num velório, durante o qual, originalmente, as
pessoas mantinham vigília junto à pessoa morta, em casa. É
provável que os seres humanos tenham criado o velório na esperança
de que seu ente querido voltasse à vida, ou então para ter certeza
de que ele estava morto antes de ser enterrado.
Geisha é filha de Kuif. Mama passara a
cuidar dela após a morte da mãe. Isso era lógico, tendo em vista a
relação íntima de Mama com Kuif. Agora, depois da morte de Mama,
foi Geisha quem passou a maior parte do tempo com o cadáver, mais
ainda do que a filha biológica e a neta de Mama. Todas as fêmeas
visitaram o recinto em silêncio total, estado incomum para os
chimpanzés. Elas cheiraram e inspecionaram o cadáver de várias
maneiras, ou passaram um tempo catando o corpo morto de Mama.
Elas também trouxeram um cobertor de
outro lugar, deixando-o perto de Mama. Isso foi mais difícil de
interpretar, mas me lembrou de outra morte de chimpanzé.
Um dia, na Estação de Campo do Centro
Nacional Yerkes de Pesquisas sobre Primatas, Amos, um popular
ex-macho alfa, estava ofegando a uma velocidade de sessenta
respirações por minuto. O suor escorria de seu rosto. Não tínhamos
percebido seu estado de saúde precário antes porque, como a maioria
dos machos, ele o escondera o máximo possível. Os machos evitam
mostrar vulnerabilidades. Somente após sua morte, alguns dias
depois, foi que soubemos que ele estava com o fígado enormemente
inchado e tinha múltiplos cânceres. Uma vez que ele se recusava a
sair com os outros, nós o mantivemos separado e entreabrimos uma
porta para seu abrigo noturno. Sua amiga Daisy vinha frequentemente
visitá-lo. Ela estendia o braço através da abertura para catar
ternamente o ponto macio atrás das orelhas. Em algum momento, foi
buscar maravalha e começou a empurrar grandes quantidades dela para
Amos. Chimpanzés gostam de construir ninhos com esse material. Daisy
empurrou várias vezes a maravalha entre as costas de Amos e a parede
contra a qual ele estava encostado, como se percebesse que o amigo
estava com dor e seria melhor se apoiar em algo macio. Parecia o
jeito como arrumamos os travesseiros nas costas de um paciente no
hospital.
Então, mesmo que não saibamos como
aquele cobertor acabou perto dos restos mortais de Mama, não podemos
descartar que alguém estava tentando fazê-la se sentir confortável,
talvez em reação ao seu corpo gelado. O estudo de como os símios e
outros animais reagem à morte de outros faz parte da tanatologia,
nome derivado de Tânatos, o deus grego da morte não violenta. O
luto após a morte é difícil de definir, porém a antropóloga
norte-americana Barbara King propõe que um requisito mínimo é que
os indivíduos próximos ao falecido alterem significativamente o
comportamento, comendo menos, tornando-se apáticos ou guardando o
local onde o morto foi visto pela última vez. Se o falecido é um
filhote, a mãe pode ficar com o cadáver malcheiroso até que ele se
desfaça, como já se observou muitas vezes. Numa floresta da África
Ocidental, a mãe chimpanzé carregou seu bebê morto por nada menos
que 27 dias. Essa reação é bastante natural nos primatas, que
transportam filhotes na barriga ou nas costas, mas também foi
observada em golfinhos. A mãe golfinho pode manter o corpo de seu
filhote morto flutuando durante muitos dias.
Os indivíduos que não têm vínculo com
o falecido não têm motivos para serem afetados por sua morte.
Muitos animais de estimação, por exemplo, dificilmente reagem
quando outro da mesma casa morre. O luto exige apego. Quanto mais
forte o laço, mais forte a reação quando ele é cortado. Isso é
válido para todos os mamíferos e aves, inclusive os corvídeos
(membros da família dos corvos). Quando a fêmea de uma de minhas
gralhas desapareceu, por razões desconhecidas, seu companheiro a
chamou por dias a fio enquanto esquadrinhava o céu. Uma vez que ela
não voltou, ele desistiu e morreu alguns dias depois. Então, foi a
minha vez de lamentar a perda de duas aves que tinham me dado tanto
afeto e alegria, e que me ensinaram que a vida emocional das aves
está em pé de igualdade com a dos mamíferos.
O eminente etólogo austríaco Konrad
Lorenz idealizava os vínculos de casal vitalícios de seus gansos.
Quando uma de suas alunas disse que havia notado algumas
infidelidades, ela suavizou o golpe acrescentando que isso tornava os
gansos “humanos”. O vínculo de casal ou monogamia é mais típico
das aves que dos mamíferos. Na verdade, pouquíssimos primatas são
monogâmicos, e é discutível se os seres humanos o são de verdade.
No entanto, as emoções associadas podem ser semelhantes entre as
espécies, pois a oxitocina está envolvida em todos os mamíferos.
Esse antigo neuropeptídio é liberado pela glândula pituitária
durante o sexo, a amamentação e o parto (é administrado
rotineiramente nas maternidades para induzir o parto), mas também
serve para promover os laços entre os adultos. As pessoas que
acabaram de se apaixonar têm mais oxitocina no sangue do que os
solteiros, e sua alta concentração dura se o relacionamento durar.
Mas a oxitocina também protege os casais monogâmicos de aventuras
sexuais com estranhos. Quando se administra esse hormônio, em forma
de spray nasal, a homens casados, eles se sentem desconfortáveis
perto de mulheres atraentes e preferem manter distância.
Mesmo se considerarmos o amor romântico
humano especial, as semelhanças neurais com outras espécies são
impressionantes. Larry Young, um colega neurocientista da
Universidade Emory, é conhecido por seus estudos de duas espécies
de ratos silvestres. A ratazana do prado leva uma vida promíscua, ao
passo que o arganaz do campo, de aparência semelhante, forma pares
nos quais macho e fêmea se acasalam exclusivamente entre si e criam
filhotes juntos. Os arganazes do campo possuem muito mais receptores
de oxitocina nas vias de recompensa de seus cérebros do que as
ratazanas do prado. Em consequência, têm uma associação
intensamente positiva com o sexo, o que os torna “viciados” no
parceiro com o qual o fazem. A oxitocina garante que eles se
vincularão. Se perdem o(a) parceiro(a), esses ratos apresentam
mudanças cerebrais químicas que sugerem estresse e depressão;
tornam-se também passivos diante do perigo, como se viver ou morrer
não lhes importasse mais. Portanto, até esses minúsculos roedores
parecem conhecer o pesar da morte.
A zoóloga norte-americana Patricia
McConnell descreve como sua cadela Lassie reagiu à morte do melhor
amigo, o cão Luke. Os dois se adoravam e estavam sempre juntos. Após
a morte de Luke, Lassie ficou um dia inteiro no quarto onde o corpo
estivera, deitada de cabeça baixa, com os olhos melancolicamente
tristes e as sobrancelhas franzidas. No dia seguinte, ela regrediu ao
comportamento estereotipado de sua juventude, girando como louca,
lambendo e chupando os brinquedos como se estivesse mamando.
McConnell concluiu que Lassie havia compreendido o caráter
definitivo da morte de Luke. Caso contrário, por que mudaria tão
drasticamente de disposição?
Tudo indica que ao menos alguns animais
percebem que um companheiro morto nunca se moverá de novo. Quando um
chimpanzé macho adulto caiu de uma árvore e quebrou o pescoço, uma
fêmea adolescente selvagem fitou seu corpo imóvel por mais de uma
hora, sem interrupção, enquanto os machos ao redor se abraçavam
com sorrisos nervosos. Não haveria razão para essas reações
dramáticas se os símios considerassem passageira a situação do
outro. Além disso, a percepção da irreversibilidade implica uma
expectativa em relação ao futuro. Temos muitas provas científicas
da orientação para o futuro em primatas, baseadas no modo como eles
planejam suas viagens ou preparam ferramentas para uma tarefa, mas
raramente consideramos a previsão ligada à vida e à morte. Por
razões óbvias, nos faltam experimentos sobre essa habilidade. Se
chamarmos a consciência da própria morte de senso de mortalidade —
de cuja existência não temos provas fora de nossa própria espécie
—, podemos chamar o reconhecimento de Lassie de que Luke não
retornará de senso de finitude. Este difere do senso de mortalidade,
pois diz respeito ao outro, e não ao eu.
Há muitas histórias de luto
semelhantes, também de gatos e, evidentemente, entre animais de
estimação e seus donos. Sabe-se de cães que passam anos perto do
túmulo de seu companheiro humano ou que voltam todos os dias à
estação de trem onde costumavam buscá-lo. Em Edimburgo e Tóquio
vi estátuas em homenagem a cães leais, chamados Bobby e Hachiko. A
mesma lealdade post mortem pode vigorar entre outros animais. Os
elefantes juntam o marfim ou os ossos de um membro da manada morto,
seguram os pedaços com a tromba e os passam para os outros. Alguns
elefantes retornam durante anos ao local onde um parente morreu,
apenas para tocar e inspecionar as relíquias.
Um indício diferente do senso de
finitude ocorreu um dia depois que uma víbora-do-gabão, uma cobra
venenosa, entrou num santuário africano. A cobra despertou um medo
intenso entre os bonobos, e todos saltaram para trás diante de seus
movimentos. Os bonobos a cutucaram cautelosamente com uma vara, até
que finalmente a fêmea alfa agarrou a cobra, ergueu-a no ar e bateu
com ela contra o chão. Depois que a matou, ninguém deu qualquer
indicação de esperar que a cobra voltasse à vida. O que está
morto, está morto. Os jovens arrastaram alegremente o corpo sem vida
como um brinquedo, enrolando-o no pescoço e até abrindo-lhe a boca
para estudar as enormes presas. Esses símios devem ter considerado a
morte da cobra irreversível.
Raramente testemunhamos o momento da
morte de um membro de uma colônia de símios, mas isso aconteceu no
Zoológico Burgers, quando Oortje literalmente caiu morta. Ela era
uma das minhas preferidas, com seu caráter sempre despreocupado.
Oortje estava tossindo e seu estado de saúde continuava a se
deteriorar, apesar dos antibióticos que lhe demos. Um dia, vimos
Kuif olhando de perto nos olhos de Oortje. Então, sem nenhuma razão
aparente, Kuif começou a gritar com uma voz histérica enquanto se
batia em movimentos espasmódicos dos braços, como fazem os
chimpanzés frustrados. Ela parecia perturbada com algo que vira nos
olhos de Oortje. A própria Oortje ficara em silêncio até aquele
momento, mas passou a gritar fracamente em resposta. Ela tentou se
deitar, caiu do tronco em que estava sentada e ficou imóvel no chão.
Em outra parte, uma fêmea soltou gritos semelhantes aos de Kuif,
embora não pudesse ter visto o que havia acontecido. Depois disso,
25 chimpanzés ficaram completamente silenciosos. O cuidador tirou
todos os outros símios do caminho, depois tentou ressuscitar Oortje
fazendo respiração boca a boca, sem sucesso. A autópsia revelou
que Oortje tinha uma enorme infecção no coração e no abdômen.
Os primatas, como os que rodearam o corpo
de Mama, reagem à morte da mesma maneira que os humanos cuidam dos
mortos: tocando, lavando, untando e catando os corpos antes de
deixá-los. Mas nós vamos além, pois enterramos os mortos e muitas
vezes lhes damos algo para levar em sua “viagem”. Os antigos
egípcios enchiam os túmulos dos faraós de comida, vinho, cães de
caça, babuínos de estimação e embarcações a vela de grande
porte. Para tornar uma perda suportável e para acalmar nosso próprio
terror da mortalidade, os seres humanos frequentemente encaram a
morte como transição para uma vida diferente. Não temos indícios
dessa notável inovação mental em nenhum outro animal.
Uma discussão sobre essas distinções
surgiu em torno da descoberta, em 2015, do Homo naledi, um
parente humano primitivo. Seus restos fósseis foram encontrados
dentro de uma caverna na África do Sul. Esse primata tinha quadris
semelhantes aos dos australopitecos, porém pés e dentes mais
típicos de nosso próprio gênero. É muito provável que o Homo
naledi pertença a uma das dezenas de ramos laterais da
gigantesca árvore que é a nossa ancestralidade, mas os
paleontólogos não gostam dessa proposta. Eles sempre preferem que
suas descobertas estejam assentadas no pequeno ramo que chega até
nós, mesmo que as chances de isso ser verdade sejam mínimas. Desse
modo, eles podem alegar que encontraram um ancestral humano. Mas como
poderiam defender essa alegação no que dizia respeito ao Homo
naledi, que tinha o cérebro do tamanho do de um chimpanzé?
Quando descobriram restos fósseis numa parte quase inacessível do
mesmo sistema de cavernas, os cientistas acharam que tinham a prova
de que precisavam, pois aqueles restos deveriam ter sido colocados lá
deliberadamente. Somente seres humanos seriam tão atenciosos com
seus mortos, alegaram eles. A proposta era ao mesmo tempo altamente
especulativa e fruto da ignorância sobre como outras espécies
tratam os defuntos.
Como os chimpanzés e outros primatas
nunca ficam em um lugar por muito tempo, eles não têm motivo para
cobrir ou enterrar um cadáver. Se ficassem em um mesmo lugar, sem
dúvida notariam que a carniça atrai carniceiros, inclusive
predadores terríveis, como as hienas. De forma alguma excederia a
capacidade mental de um símio resolver o problema cobrindo um
cadáver malcheiroso ou movendo-o para fora do caminho. Esse
comportamento dificilmente exigiria a crença em uma vida após a
morte. O mesmo tipo de necessidade prática pode ter impulsionado o
Homo naledi. A essa altura, nós simplesmente não sabemos se
moveram seus mortos com cuidado e preocupação ou os jogaram sem
cerimônia numa caverna distante para se livrar deles. Pode até ser
pior: quem disse que os restos descobertos estavam mortos no momento
em que foram parar na caverna?
É uma estranha coincidência que a
palavra naledi (que significa “estrela” nas línguas
sotho-tswana) seja um anagrama de denial [“negação”, em
inglês]. Os descobridores do fóssil estavam ansiosos demais para
enfatizar sua humanidade, ao mesmo tempo que negavam o quanto nossos
ancestrais tinham em comum com os símios. Os seres humanos
divergiram dos símios há tanto tempo quanto o elefante africano
divergiu do asiático, e são geneticamente tão próximos ou
distantes. No entanto, chamamos livremente essas duas espécies de
“elefantes”, enquanto temos uma obsessão com o ponto específico
em que a nossa própria linhagem mudou de símio para humano. Temos
até palavras especiais para esse processo, como “hominização”
e “antropogênese”. É uma ilusão generalizada que tenha havido
tal momento no tempo, como tentar encontrar o comprimento de onda
exato no espectro da luz em que o laranja se transforma em vermelho.
Nosso desejo por divisões nítidas está em desacordo com o hábito
da evolução de fazer transições extremamente suaves.
Não se sabe quão difundido é o senso
de finitude e quanto ele se baseia numa projeção mental do futuro.
Mas membros de pelo menos algumas espécies parecem perceber, depois
de se assegurarem por olfato, tato e tentativas de reavivamento, que
um ente querido se foi, que a relação entre eles migrou de forma
permanente do presente para o passado. Como eles chegam a essa
percepção é intrigante. Baseiam-se na experiência? Ou sabem
intuitivamente que a morte faz parte da vida? Isso também nos lembra
que todas as emoções estão misturadas com o conhecimento — elas
não existiriam de outra forma. Quando os animais fazem algo
interessante, os cientistas da cognição às vezes dizem que “isso
é apenas uma emoção”, mas as emoções nunca são simples e
nunca se separam de uma avaliação da situação. O luto, em
particular, é muito mais complexo do que se sugere ao chamá-lo de
emoção. Ele representa o avesso triste do laço social: a perda.
Ele pode penetrar tão profundamente na alma de alguns animais quanto
nas nossas, baseado em processos neurais compartilhados, como o
sistema da oxitocina, e talvez uma consciência similar da vida e de
suas vulnerabilidades.
Para mim, as visitas à colônia de
Burgers nunca mais serão as mesmas. A morte de Mama deixou um buraco
gigantesco para os chimpanzés, assim como para Jan, para mim e para
seus outros amigos humanos. Ela representava o coração da colônia.
A vida continua, como deve, mas os indivíduos são únicos. Não
imagino que eu vá algum dia encontrar uma personalidade símia tão
impressionante e inspiradora quanto a de Mama.
Frans de Waal, in O último abraço da matriarca
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