[baseado numa história real]
Oswaldo, o amigo de colégio, filósofo,
me conta que escrevi há décadas no seu mural: “Marcelo ama
resto.” Lindo... Mas não tenho a menor ideia do que significa.
Algumas interpretações metafísicas
possíveis: “o foco não me interessa, mas sim o que escapa pelas
bordas”; “o sol aquece pelo reflexo, não pela luz”; “prefiro
a última do lado B”; “olhe e admire a mais bonita, mas repare
naquela mais interessante sentadinha no canto e interaja com ela”;
“existe arte no rascunho”; “a beleza está no erro”.
Espere! Investigando mais esse Marcelo de
décadas atrás, estudante duro, lembrei: o cara, eu, almoçava em
casas de amigos e parentes que estavam na rota da USP. Oswaldo morava
no Butantã. Talvez Marcelo fizesse um pit stop proposital bem na
hora do rango e se satisfazia com a sobra. Marcelo amava o resto do
almoço da família de Oswaldo? Um fato: Marcelo amava filar boia.
Outro: Marcelo era um tremendo cara de pau.
Ele (eu) tinha uma rede de fornecedores
de rango caseiro. Voltando da faculdade, calculava quem estaria
almoçando, denominado “a vítima”. E aparecia. Claro que o
ataque ocorria no front de lares bem-estruturados, com empregadas,
rotina alimentar etc.
Na casa do meu primo Ricardo, eu sabia:
quinta era dia de feira, portanto, a mesa estaria com frutas e
verduras. No Olhar Eletrônico, antiga produtora do Fernando
Meirelles, com quem trabalhei, o almoço era dos mais disputados
entre os filadores profissionais. E pontual.
Na casa do Maurício, roteirista e
diretor de TV, o cardápio era único: arroz, feijão, bife à
milanesa e batata frita. Todo santo dia. O suco era laranjada (suco
de laranja mais água e muito açúcar). Uma vez por semana, eu
aparecia. Era um rango bom, mas de colesterol alto. Portanto,
aprendi, é preciso equilibrar dietas e balancear visitas. Casa com
colesterol alto, uma vez por semana.
A construção da rede gastronômica
caseira do pão-duro começa pelas empregadas. Fundamental ganhar
simpatia e compaixão. Porque em muitas vezes que se chega de
surpresa bem na hora do rango o patrão ou a patroa está no banho, e
são elas quem nos fazem companhia e, o mais importante, abrem a
porta. Em segundo lugar, é fundamental ampliar a amizade com a
família da vítima. Porque você pode aparecer sem a presença do
amigo.
Quando Estela parou de almoçar na casa
da sua mãe na Cidade Jardim, pois se casou e se mudou para
Higienópolis, sem problemas, continuei aparecendo para almoçar com
a caçula Renata, para a alegria das empregadas, íntimas já. E dos
cães.
Outra prática importante: ganhar a
amizade dos animais de estimação, pois, se implicarem com você,
perde-se a boquinha. Por outro lado, se fizerem festa quando você
chega, beleza, comida garantida por um tempo. E se o gato se sentar
no seu colo então, você já é da casa.
Esqueça amigos metidos a gourmets. Você
só irá almoçar lá pelas 15h. É preciso ser objetivo, sem parecer
oportunista: chegar e papear. O bicão, como o carona, tem um preço
a pagar: umas piadas a contar e uns assuntos relevantes a levantar.
Lógico, não levante polêmicas desnecessárias e conheça a
ideologia do amigo. Não vá elogiar a política social do governo
Lula na casa de um tucano. No máximo, pergunte se não teria sido
melhor o PSDB ir de Serra. Almoçar com um amigo que cozinha é pra
fim de semana, em que a agenda é mais flexível. Tem outra. Amigo
gourmet sempre te coloca pra picar cebola ou descascar batatas. E
outra. Amigos gourmet experimentam receitas novas com o bicão. Pode
ser um desastre.
Uma casa em que se pode comer bem e
rápido é na de ex-mulher. É rápido, porque afinal ela tem outro,
que tem ciúmes exatamente de você. Ela cozinha melhor, porque
mulher quando te larga sempre fica mais gata, mais magra, mais
interessante e cozinha melhor. E ela sabe exatamente como você gosta
do café. É claro que você esqueceu que ela gosta sem açúcar.
Rola neste ínterim um diálogo rico e emocionante como:
“Você está saindo com alguém?”
“Com a sua prima.”
“Que legal! Você gosta dela. Não pise
na bola, não seja ranzinza, nem maleta.”
“Se você estiver inseguro, não
agrida. Fale, conte, chore, sei lá, mas não seja grosso. Não
desconte. Desculpa a sinceridade. Nem sei se você queria esse tipo
de comentário. Você é muito exigente com você e com os outros. Se
você se deixar levar, ficar mais largado, menos exigente com você
mesmo, se cobrar menos, talvez admita bobagens dos outros. Já eu não
tenho filtro entre o que eu penso e o que falo. Me arrependo pacas.
Mas aí eu já falei. E fico me remoendo.”
“Já que estamos nos abrindo... Não
acho que seu problema seja falta de filtro.
“Você é muito sensata. Isso é o que
eu mais gostava em você. Além do corpinho que Deus lhe deu.”
“Que amor...”
“Seu problema é...”
“Falo demais? Tá na mesa. Você quer
pimenta?”
“Você emagreceu, sua pele melhorou,
seus cabelos, então...”
Elogie! Para garantir o retorno. Já que
o atual só a critica, como você, quando era “o atual”.
Sim, com a mãe ou irmãos só se almoça
aos domingos. Você não irá desperdiçar uma tarde de dia útil
discutindo problemas familiares, vai?
Faltou dizer que Marcelo já há dez anos
faz feira, supermercado e tem uma cozinheira ótima. E almoça em
casa quase todos os dias. Virou vítima. Não vem folgar. Avise
antes…
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola
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