Londres Depois — mesmo dia, mês, ano,
mas um filamento acima — é o tipo de Londres com que as outras
Londres sonham: manchada de sépia, céu cheio de dirigíveis, a
crueldade do império reconhecida apenas como um pano de fundo rosado
com aroma de especiarias e pétalas de açúcar. Rebuscada como um
romance, imunda apenas onde a história exige, repleta de tortas de
carne e monarquia — esse é um lugar que Blue ama, e se odeia por
amá-lo.
Está sentada a um canto de uma casa de
chá em Mayfair, de costas para a parede, com um olho na porta —
algumas regras da espionagem transcendem tanto o tempo quanto o
espaço — e outro em um mapa estilizado do Novo Mundo. Ela o acha
um pouco incongruente — a casa de chá favorece uma estética
decididamente orientalista —, mas o ecletismo é uma das muitas
coisas de que Blue gosta nas fibras desse filamento em particular.
Seu cabelo agora está preto e grosso e
comprido, preso em um coque alto e trançado, cachos cuidadosamente
delineados na nuca, chamando atenção para o comprimento e a
curvatura de seu pescoço. Seu vestido é modesto e impecável, um
pouco fora de moda; faz alguns anos desde que a linha princesa era
novidade, mas ela fica bem em cinza-carvão. Não está ali para
desempenhar um papel; está ali para ser invisível.
Ela observa, com prazer, a excelente
porcelana da qual o estabelecimento se gaba: Meissen Dragão Ming,
sinuoso como artérias, caqui brilhante contra as bordas douradas no
branco-osso. Ela espera o próprio bule, ansiosa pela trilha escura,
defumada e maltada que o chá escolhido percorrerá entre as notas de
rosa açucarada, bergamota suave, moscatel e violeta.
Sua atendente chega, quieta,
silenciosamente dispõe a bandeja Meissen de dois andares para o
bolo, o bule, o pote de açúcar. Enquanto ela arruma a xícara de
chá no pires, no entanto, Blue estende a mão rápido e segura o
pulso dela antes que se afaste. A atendente parece apavorada.
— Esse conjunto — diz Blue, se
ajustando, deixando seu olhar mais bondoso, sua pegada mais carinhosa
— está trocado.
— Eu sinto muito, senhorita — diz a
atendente, mordendo o lábio. — Eu já tinha preparado o bule, mas
a xícara estava lascada, e pensei que você não ia querer esperar
mais tempo pelo chá, e todos os outros conjuntos já estavam sendo
usados, por conta do horário movimentado do dia, mas se você quiser
esperar, eu posso…
— Não — ela diz, e seu sorriso são
como nuvens se abrindo; ela leva a mão de volta ao colo, como se
apagasse tudo, a atendente apenas imaginou, certamente, pois essa
mulher é a imagem perfeita de uma dama. — É muito bonito.
Obrigada.
A atendente baixa a cabeça e se recolhe
à cozinha. Blue olha atentamente para a xícara de chá, seu pires e
colher: azul italiano, figuras clássicas colhendo grãos, carregando
água para sempre abaixo da borda.
Ela serve o chá delicadamente, sem
machucar as folhas. Ergue a colher em direção à luz — dá para
ver que está coberta com uma substância vinda de fio abaixo, que
ela acha que reconhece, mas dá uma cheirada para se certificar. Ela
se obriga a não olhar ao redor, comanda cada átomo do seu corpo a
ficar imóvel, controla a necessidade de correr para a cozinha e
perseguir e caçar e pegar…
Em vez disso, ela mexe a colher vazia
dentro do chá, e assiste às folhas se desgrudarem e se fundirem em
letras. Cada rotação é lenta e ela marca as quebras de parágrafo
com pequenos goles; cada gole desfaz as letras até que Blue as
rodopia a formarem significados novamente.
Brevemente ela se pergunta se o nó em
sua garganta é veneno, se sua incapacidade de engolir é
anafilática. Isso não a assusta.
Ela fecha os olhos contra a alternativa,
que é o que a assusta.
Quando o chá e a carta acabam, a borra
permanece; ela a lê como um pós-escrito. O que é bem fácil,
quando o mapa do Novo Mundo corresponde a ela tão precisamente; é
fácil ler a discrepância como um direcionamento.
Ela seca a boca, ergue a xícara de chá,
coloca-a de cabeça para baixo sob seu calcanhar e a esfarela com
tanta força e rapidez que sua destruição não faz barulho.
Depois que Blue foi embora, a
rastreadora, vestida de garçonete, armada com pá e uma vassoura,
coleta os restos, os recolhe como botões de rosa. Quando está fora
de vista, ela separa a mistura de argila e osso e folha em três
linhas, enrola uma nota de dinheiro e inala com força o suficiente
para sentir a fumaça atrás dos olhos.
Amal El-Mohtar e Max Gladstone, in É assim que se perde a guerra do tempo
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