— Tem
paciência, filhinha, já decidi. Hoje vamos ao cinema de qualquer
maneira.
— Mas,
Dago, ainda não preparei os sanduíches para o aniversário do
Guilherme…
— O
Guilherme que pare de fazer anos e de dar festa com sanduíches
divinos-maravilhosos. Ao cinema!
— E
o Barriga? A gente vai deixar o garoto sozinho em casa? Ele é de
morte.
— Chame
o Italianinho do 301 para fazer companhia a ele. Assim o Barriga
sossega. Ao ci-ne-ma!
D.
Neusa sempre achando razões para ficar em casa, trabalhando. Cinema
ali pertinho, inaugurado há um mês, filme de Buñuel chamando,
marido insistindo. E quando marido escande sílabas, mesmo sendo
ótimo como aquele, paira ameaça sobre o casamento. Ela cedeu.
Italianinho
acudiu pressuroso ao chamado. No 301, também os pais haviam saído,
e a patota de adolescentes curtia uma festinha à base de som
incrementado e luzes psicodélicas, de que, obviamente, estavam
excluídos os menores de doze anos.
— Que
que a gente vai fazer?
— Atirar
setas e bolinhas na rua. Bolinhas nos carecas, e setas nas perucas
das coroas.
— Só
nos carecas e nas coroas, não. Em todo mundo.
— Tá.
Subiram
os dois, de mansinho, pela escada de serviço, munidos de
zarabatanas, bolinhas, setas e muita disposição. A chuvinha
ranzinza peneirava, eles nem sentiam. E começou o ataque silencioso
na noite. Não tão silencioso, pois corriam de um lado para outro,
esbarrando aqui e ali, emitindo ruídos abafados de prazer quando
atingiam o alvo — dava para perceber que alguma coisa de estranho
se passava no terraço.
Juju,
de ouvido afiado, num instante em que o som amortecia na festa,
correu ao apartamento de seu Ivo:
— Está
na hora da batida.
— Que
batida? Vocês prometeram que só haveria chopinho. E o síndico não
permite festa de brotos com batida.
— O
senhor não morou. Batida para pegar ladrão. Tem gente mexendo no
terraço. Escute.
Escutou.
Mexiam e paravam. Mexiam e paravam. Ladrões, na certa. Havia dias
que vinham frequentando os terraços de edifícios daquele trecho de
rua, “limpando” antenas, canos, torneiras, roupas, tudo.
Alertados, síndicos e condôminos planejaram um serviço de
vigilância. Ao menor sinal suspeito, os próprios moradores de
cobertura dariam caça aos larápios, já que os vigias noturnos,
como se sabe, têm sono pesado.
Seu
Ivo achou prudente telefonar para os moradores das coberturas
vizinhas, que compareceram imediatamente. Subiram os três, cada um
de calibre 45 em punho. Entreaberta a porta do terraço, detiveram-se
no penúltimo degrau, à espreita. Sentindo aproximação de gente
(ladrões, sem dúvida), Barriga e Italianinho, tomados de pânico,
meteram-se na casa de máquinas. Ladrões avançando, ladrões se
escondendo dos outros ladrões — era a situação, debaixo de chuva
mansa, durante um silêncio de dez minutos.
— Não
vão ficar a noite inteira na casa de máquinas — ponderou seu Ivo.
— Esperemos.
E
continuaram os três, respiração suspensa, mão no gatilho,
aguardando.
Concluindo
que se tratava de alarme falso, Italianinho e Barriga foram saindo de
leve, pé ante pé, agachados junto à mureta.
— É
agora — comandou baixinho seu Ivo. — Vamos atirar pra valer, mas
nos pés.
As
armas foram baixando lentamente, para a pontaria. Súbito, seu Ivo
exclamou, trêmulo, gago:
— Não
atirem! Não é o que nós pensamos!
— Está
doido, seu…?
— Doido
nada. São os moleques!
Seu
Ivo reconhecera o Barriga, pelo volume abdominal característico.
Entraram rápido no terraço, em direção contrária à dos meninos,
para pegá-los desprevenidos. Os dois tentaram fugir, no passo de ema
selvagem. Mas Italianinho sentiu uma coisa úmida e cálida
escorrer-lhe pelo short, e quedou-se, desamparado, enquanto Barriga
dava no pé.
Os
homens estavam pálidos.
— Quase
que nós matávamos esses diabos!
Voltando
do cinema, d. Neusa comentou:
— Viu,
Dago? Viu no que dá essa mania de ir ao cinema? A gente paga para
ver Catherine Deneuve de perna cortada, e na volta, por pouco pouco,
encontra nosso filhinho defunto!
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
Nenhum comentário:
Postar um comentário