domingo, 2 de janeiro de 2022

Colhões

Como qualquer um pode lhe dizer, não sou um homem muito bom. Não sei que palavra usar para me definir. Sempre admirei o vilão, o fora da lei, o filho da puta. Não gosto dos garotos bem-barbeados com gravatas e bons empregos. Gostos dos homens desesperados, homens com dentes rotos e mentes arruinadas e caminhos perdidos. São os que me interessam. Sempre cheios de surpresas e explosões. Também gosto de mulheres vis, cadelas bêbadas que não param de reclamar, que usam meias-calças grandes demais e maquiagens borradas. Estou mais interessado em pervertidos do que em santos. Posso relaxar com os imprestáveis, porque sou um imprestável. Não gosto de leis, morais, religiões, regras. Não gosto de ser moldado pela sociedade.
Certa noite, eu estava bebendo com Marty, o ex-presidiário, no meu quarto. Eu não tinha emprego e não queria ter um emprego. Queria tão-somente ficar sentado sem os meus sapatos e beber vinho e falar e rir, se possível. Marty era um pouco estúpido, mas tinha mãos de trabalhador, um nariz quebrado, olhos de toupeira, nada que lhe pesasse muito, ele tinha enfrentado de tudo.
Gosto de você, Hank – disse Marty –, você é um homem de verdade, um dos poucos homens de verdade que já conheci.
É – eu disse.
Você tem colhões.
É.
Uma vez trabalhei minerando pedra...
É?
Entrei em uma briga com um sujeito. Usamos machadinhas. Ele quebrou o meu braço esquerdo com seu primeiro golpe. Fui em frente para encará-lo. Afundei a porra da cabeça dele. Quando se recuperou daquela pancada, estava fora de si. Eu tinha esmagado seu cérebro. Mandaram ele pro hospício.
Isso é legal – eu disse.
Escute – disse Marty –, quero brigar com você.
Dê o primeiro soco. Vá em frente, me acerte.
Marty estava sentado em uma cadeira verde com encosto reto. Eu estava caminhando para a pia para me servir outro copo de vinho da garrafa. Virei e acertei um soco de direita bem na cara dele. Ele virou uma cambalhota para trás na cadeira, se levantou e veio em minha direção. Eu não estava esperando por um golpe de esquerda. Acertou-me no alto da testa e me derrubou. Espichei a mão para o saco cheio de vômito e garrafas vazias, tirei uma, me ergui sobre os joelhos e arremessei-a. Marty se esquivou e parti para cima dele com a cadeira que estava atrás de mim. Tinha-a sobre minha cabeça, quando a porta se abriu. Era nossa senhoria, uma loira jovem e bonita, na casa dos vinte. O que ela fazia gerenciando um lugar como aquele, nunca consegui descobrir. Coloquei a cadeira no chão.
Vá pro seu quarto, Marty.
Marty parecia envergonhado, como um menininho. Ele caminhou pelo corredor para o seu quarto, entrou e fechou a porta.
Sr. Chinaski – ela disse –, quero que você saiba...
Quero que você saiba – eu disse – que isso não adianta nada.
O que não adianta?
Você não faz o meu tipo. Não quero trepar com você.
Escute – ela disse –, quero lhe dizer algo. Vi você mijando no pátio na noite passada e, se fizer isso outra vez, vou expulsá-lo daqui. Alguém mijou no elevador também. Foi você?
Não mijo em elevadores.
Bem, esse negócio do pátio, na noite passada, foi você. Eu estava olhando.
Porra, claro que não!
Você estava muito bêbado para lembrar. Não faça mais isso.
Ela fechou a porta e se foi.
Eu estava sentado lá, tranquilamente, bebendo vinho alguns minutos mais tarde e tentando me lembrar se eu tinha mijado no vizinho, quando bateram à porta.
Entre – eu disse.
Era Marty.
Tenho que lhe dizer uma coisa.
Claro. Sente.
Servi um copo para Marty, e ele sentou.
Estou apaixonado – ele disse.
Não respondi. Fechei um cigarro.
Você acredita no amor? – ele perguntou.
Tenho que acreditar. Aconteceu comigo uma vez.
Onde ela está?
Ela se foi. Morreu.
Morreu? Como?
Álcool.
Essa também bebe. Isso me preocupa. Ela sempre bebe. Ela não consegue parar.
Nenhum de nós consegue.
Vou às reuniões dos Alcoólicos Anônimos com ela. Quando ela vai, está bêbada. Metade dos sujeitos que vão às reuniões dos Alcoólicos Anônimos está bêbada. Dá para sentir o cheiro saindo deles.
Não respondi.
Deus, ela é jovem. E que corpo! Eu amo ela, cara, realmente amo essa mulher!
Ah, que caralho, Marty, isso é só sexo.
Não, eu amo ela, Hank, realmente sinto que a amo.
Bem, talvez seja possível.
Cristo, eles a puseram num quarto no porão. Ela não consegue pagar o aluguel.
No porão?
Sim, próximo da caldeira e da sujeira.
Difícil de acreditar.
É, ela está lá embaixo. E eu amo ela, cara, e não tenho nenhum dinheiro pra ajudá-la.
Isso é triste. Já estive na mesma situação. Dói.
Se eu conseguisse me endireitar, se conseguisse parar de beber por dez dias e recuperasse a minha saúde... posso arranjar um emprego em algum lugar, posso ajudá-la.
Bem – eu disse –, você está bebendo agora. Se a ama, vai parar. Bem agora.
Por Deus – ele disse. – Vou! Vou derramar esse copo na pia!
Não seja melodramático. Passe esse copo pra cá.

Peguei o elevador e desci para o primeiro andar com uma garrafa de uísque barato que eu tinha roubado da loja de bebidas do Sam, uma semana antes. Então tomei a escada para o porão. Havia uma pequena vela queimando lá embaixo. Caminhei pelo lugar procurando por uma porta.
Finalmente encontrei uma. Devia ser uma ou duas da madrugada. Bati na porta. Uma fresta se abriu, e lá estava uma mulher realmente bonita vestindo um roupão de dormir. Eu não esperava por isso. Jovem e com cabelos loiros avermelhados. Enfiei meu pé na porta, então forcei a minha entrada, fechei a porta e olhei ao redor. Não era um lugar de todo mau.
Quem é você? – ela perguntou. – Saia daqui.
Você arranjou um bom lugar aqui. É melhor do que o meu apartamento.
Saia daqui! Saia! Saia!
Puxei a garrafa de uísque do saco de papel. Ela a olhou.
Como você se chama? – perguntei.
Jeanie.
Olhe, Jeanie, onde você guarda os copos?
Ela apontou para uma prateleira na parede, caminhei até lá e peguei dois copos altos de água. Havia uma pia. Botei um pouco de água em cada um, caminhei de volta, coloquei-os sobre a mesa, abri o uísque e o misturei nos copos. Sentamos na ponta da cama dela e bebemos. Ela era jovem, atraente. Eu não podia acreditar. Esperei por uma crise neurótica, por um surto psicótico. Jeanie parecia normal, até mesmo saudável. Mas ela realmente gostava de uísque. Acompanhou-me bem. Eu tinha descido até ali em um ímpeto de ansiedade, mas agora não sentia mais essa ansiedade. Quero dizer, se ela fosse muito feia ou tivesse algo de indecente ou uma deficiência (lábio leporino, qualquer coisa), teria sentido mais vontade de fazer algo. Lembrei-me de uma história que eu tinha lido uma vez em Programa de corridas sobre um garanhão que ninguém conseguia fazer com que acasalasse com éguas. Trouxeram as éguas mais bonitas que puderam encontrar, mas o garanhão as refugava. Então alguém, que sabia das coisas, teve uma ideia. Cobriu de lama uma das belas éguas, e o garanhão imediatamente a montou. A teoria era de que o garanhão se sentia inferior a toda aquela beleza, mas que, diante da fêmea enlameada, pôde ao menos se sentir em pé de igualdade, quando não superior a ela, e assim funcionar. A mente dos cavalos e dos homens pode ser muito parecida.
De qualquer forma, Jeanie serviu o próximo copo e perguntou meu nome e onde eu dormia. Disse-lhe que eu estava em alguma parte dos andares de cima e que só queria beber com alguém.
Vi você no Clamber numa noite dessas, uma semana atrás – ela disse –, você estava muito engraçado, todos estavam rindo, você pagou bebidas para todo mundo.
Não me lembro.
Eu lembro. Você gosta do meu roupão?
Claro.
Por que você não tira as calças e fica mais confortável?
Tirei-as e me sentei outra vez na cama com ela. A coisa andava muito lentamente. Lembro de dizer-lhe que ela tinha peitos bonitos e logo eu estava mamando em um deles. A próxima coisa de que me lembro era que estávamos trepando. Eu estava por cima. Mas algo não estava dando certo, então rolei para o lado.
Sinto muito – eu disse.
Está tudo bem – ela disse –, ainda gosto de você.
Ficamos lá sentados, falando vagamente, liquidando com a garrafa de uísque.

Então ela se levantou e apagou as luzes. Sentia-me muito triste, então deitei na cama e me encostei em suas costas. Jeanie estava quente, plena, e eu podia sentir sua respiração e seus cabelos contra o meu rosto. Meu pênis começou a se erguer e eu a cutuquei com ele. Senti que ela espichou a mão e o guiou para dentro.
Agora – ela disse –, agora, isso...
Foi bom assim, durou muito e foi bom, e então gozamos e depois dormimos.

Quando acordei, ela ainda estava dormindo e eu me levantei e me vesti. Já estava completamente vestido quando ela se virou e me olhou:
A saideira.
Tudo bem.
Tirei a roupa outra vez e fui para a cama com ela. Ela virou-se de costas para mim e nós transamos de novo, do mesmo jeito. Depois que eu gozei, ela continuou de costas para mim.
Você virá me ver outra vez? – ela perguntou.
Claro.
Você mora lá em cima?
Sim. Trezentos e nove. Posso vir aqui ou você pode subir.
Prefiro que você venha me ver – ela disse.
Tudo bem – eu disse.
Eu me vesti, abri e fechei a porta, subi as escadas, entrei no elevador e apertei o botão com o número três.
Mais ou menos uma semana depois, à noite, eu bebia vinho com Marty. Falávamos de várias coisas sem importância e então ele disse:
Cristo, me sinto péssimo.
Outra vez?
É. Minha garota, Jeanie. Falei a ela sobre você.
Sim. Aquela que vive no porão. Você está apaixonado por ela.
É. Expulsaram ela de lá. Não conseguia pagar o aluguel reduzido.
Para onde ela foi?
Não sei. Ela se foi. Ouvi dizer que a expulsaram. Ninguém sabe o que ela fez, aonde ela foi. Fui na reunião dos Alcoólicos Anônimos. Ela não estava lá. Estou mal, Hank, muito mal. Eu a amava. Estou perdendo a cabeça.
Não respondi.
O que posso fazer, cara? Estou realmente estraçalhado...
Vamos beber à saúde dela, Marty, à saúde dela.
Bebemos um bom e longo gole em homenagem a ela.
Ela era ótima, Hank, você tem de acreditar em mim, ela era ótima.
Acredito em você, Marty.

Uma semana depois, Marty foi expulso por não pagar seu aluguel, e eu arranjei um emprego em uma empresa que empacotava carne, e havia alguns bares mexicanos do outro lado da rua. Eu gostava daqueles bares mexicanos. Depois do trabalho, eu fedia a sangue, mas ninguém parecia se importar. Era só quando entrava no ônibus para voltar ao meu quarto que aqueles narizes começavam a se erguer e eu recebia olhares de reprovação e começava a me sentir novamente um homem mau. Isso ajudava.

Charles Bukowski, in Ao Sul de Lugar Nenhum

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