Soprava nesse dia um vento rude do sul,
escaldante, vindo do outro lado do mar, das terras africanas. Nuvens
de areia fina rodopiavam no ar, penetrando na garganta e nos pulmões.
Os dentes rangiam, os olhos queimavam; para se comer um pedaço de
pão sem areia era preciso aferrolhar portas e janelas.
A atmosfera estava pesada. Nesses dias em
que a seiva sobe nas plantas, eu também me sentia tomado pelo
mal-estar da primavera. Uma preguiça, uma palpitação, um
formigamento pelo corpo, o desejo — desejo ou lembrança? — de
uma felicidade simples e grande.
Tomei o caminho pedregoso da montanha. De
repente me deu vontade de ir até a pequena cidade minuana que
brotara do chão a três ou quatro milênios e de novo se aquecia ao
sol bem-amado de Creta. Talvez, pensava eu, a fadiga de uma caminhada
de três ou quatro horas me acalmasse a indisposição.
Pedras cinzentas e lisas, uma luminosa
nudez, a montanha áspera e deserta como eu gosto. Empoleirada numa
pedra, cega pela claridade, uma coruja de olhos muito redondos e
amarelos, grave, admirável, cheia de mistério. Eu andava devagar,
mas assustei-a, e levantando voo por entre as pedras ela desapareceu
silenciosa.
O ar recendia a tomilho. Já se abriam
entre os espinhos as primeiras flores amarelas e tenras dos juncos
marinhos. Quando cheguei à cidadezinha em ruínas, quedei-me
surpreendido. Devia ser meio-dia, a luz caía a prumo, inundando os
escombros. É a hora perigosa das velhas cidades em ruínas. O ar se
enche de barulhos e espíritos. Um galho que se quebre, um lagarto
que se mexa, uma nuvem que passe fazendo sombra — e ficamos em
pânico. Cada polegada de terra em que se pise é um túmulo e os
mortos gemem.
Pouco a pouco os olhos se habituaram à
claridade. No meio daquelas pedras, eu distinguia agora a mão do
homem: duas ruas largas e pavimentadas de lajes brilhantes. Uma praça
circular ao centro, a agora, e bem ao lado, numa condescendência
toda democrática, o palácio do rei, com a dupla colunata,
escadarias de pedra e numerosas dependências.
No coração da cidade, onde as pedras do
chão foram gastas ao máximo pelos pés dos homens, devia erguer-se
o santuário; lá estava a Grande Deusa, de seios fartos e afastados,
os braços cheios de serpentes.
Por toda parte, minúsculas lojas e
oficinas — lagares de azeite, forjas, marcenarias, cerâmicas. Um
formigueiro, habilmente construído, bem administrado, que as
formigas abandonaram há milhares de anos. Numa loja, um artífice
esculpia uma ânfora, em pedra estriada, mas não pudera terminá-la:
o cinzel caíra-lhe das mãos. E milhares de anos mais tarde aí o
vemos, perto da obra inacabada.
As perguntas eternas, inúteis,
insensatas: Por quê? Para quê? Vêm ainda uma vez envenenar-nos o
coração. Esta ânfora inacabada, contra a qual se lançara o ardor
jovem e firme do artista, enchia-me de pesar.
De súbito, surgiu em cima de uma pedra,
ao lado do palácio em ruínas, um pastorzinho, bronzeado pelo sol,
joelhos negros, lenço de franjas nos cabelos crespos.
— Olá, amigo! — chamou.
Eu queria estar só. Finjo que não ouço.
Mas o pastorzinho ri, zombeteiro.
— Eh! Está bancando o surdo? Você tem
cigarros? Me dá um; aqui, nesse deserto, fico chateado.
O acento patético das últimas palavras
me deixou penalizado.
Não tinha cigarros, quis dar-lhe
dinheiro. Mas o pastorzinho ficou zangado.
— Não tenho — falei desesperado, —
não tenho!
— Você não tem! — gritou o
pastorzinho fora de si, batendo com força o cajado no chão. —
você não tem! E então, os seus bolsos? Estão cheios.
— Um livro, um lenço, papel, um lápis
e um canivete — respondi, tirando um a um os objetos que tinha no
bolso. — você quer o canivete?
— Já tenho um. Eu tenho tudo: pão,
queijo, azeitonas, uma faca, uma sovela para minhas botas e uma
cabaça d’água, tudo, tudo! Mas não tenho cigarros: é como se
não tivesse nada! E que é que você procura nas ruínas?
— Eu contemplo as antiguidades.
— E entende alguma coisa?
— Nada!
— Eu também não. Estes aí estão
mortos, e nós vivemos. Ande, vá embora!
Dir-se-ia que o espírito daqueles
lugares me enxotava.
— Já me vou — disse, obediente.
Tomei depressa a estrada, preso de
ligeira ansiedade.
Olhei para trás um momento e vi o
pastorzinho que se chateava, ainda trepado na pedra. Seus cabelos
anelados escapavam do lenço preto, voando ao vento sul. A luz
banhava-o dos pés à cabeça. Parecia ter diante de mim uma estátua
de efebo em bronze.
Agora, tinha posto o cajado aos ombros e
assoviava.
Tomei um outro caminho e desci para a
praia.
De quando em quando passavam por cima de
mim bafos quentes e perfumes vindos dos jardins próximos. A terra
recendia, o mar ria, o céu estava azul, brilhante como aço.
O inverno encolhe-nos o corpo e a alma,
mas basta vir o calor que nos dilata o peito. Enquanto andava, ouvi
de repente vozes roucas nos ares. Levantando a cabeça, vi o
maravilhoso espetáculo que desde a infância me impressiona: as
gruas, formadas como um exército em ordem de batalha, chegavam dos
países quentes e, como na lenda, traziam andorinhas nas asas e nos
sulcos profundos dos corpos ossudos.
O ritmo infalível do ano, a roda do
mundo que gira, as quatro faces da terra que, uma após outra o sol
ilumina, a vida que se extingue, tudo de novo me oprimia
confusamente. E de novo soava em mim, como o grito das gruas, o aviso
terrível de que esta vida é a única para o homem, não há nenhuma
outra, e tudo o que pudermos desfrutar, será aqui mesmo. Nenhuma
outra chance nos será dada na eternidade.
Um espírito que capta este aviso
impiedoso — e ao mesmo tempo cheio de piedade — toma a decisão
de vencer suas mesquinharias e fraquezas, a preguiça, as grandes
esperanças inúteis e se apega, firme, a cada segundo que foge para
sempre.
Vêm-nos à memória grandes exemplos, e
então vemos claramente que não passamos de homens perdidos, que a
vida se esbanja em pequenas alegrias, em pequenas tristezas e em
fúteis propósitos. Mordendo os lábios a gente tem vontade de
gritar para dentro: “Que vergonha!”
As gruas cruzaram o céu, e se foram em
direção ao norte, mas nas minhas têmporas, ainda grasnam e voam
sem cessar.
Cheguei à praia. Andei a beira d’água,
a passos apressados.
Que angústia é andar só a beira do
mar! Cada onda, cada pássaro no céu nos chama e nos lembra o dever.
Quando se está acompanhado, rimos e conversamos, e por isso não
ouvimos as ondas e os pássaros. Pode ser que eles não digam nada.
Veem-nos passar, ocupados em nossas conversas, e se calam.
Deitei-me na areia e fechei os olhos.
“Que será então a alma, pensei, e que oculta correspondência
haverá entre a terra e o mar, as nuvens, os perfumes? Como se a alma
fosse, ela também, mas, nuvens, perfumes...”
Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego
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