terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Um pastorzinho

Soprava nesse dia um vento rude do sul, escaldante, vindo do outro lado do mar, das terras africanas. Nuvens de areia fina rodopiavam no ar, penetrando na garganta e nos pulmões. Os dentes rangiam, os olhos queimavam; para se comer um pedaço de pão sem areia era preciso aferrolhar portas e janelas.
A atmosfera estava pesada. Nesses dias em que a seiva sobe nas plantas, eu também me sentia tomado pelo mal-estar da primavera. Uma preguiça, uma palpitação, um formigamento pelo corpo, o desejo — desejo ou lembrança? — de uma felicidade simples e grande.
Tomei o caminho pedregoso da montanha. De repente me deu vontade de ir até a pequena cidade minuana que brotara do chão a três ou quatro milênios e de novo se aquecia ao sol bem-amado de Creta. Talvez, pensava eu, a fadiga de uma caminhada de três ou quatro horas me acalmasse a indisposição.
Pedras cinzentas e lisas, uma luminosa nudez, a montanha áspera e deserta como eu gosto. Empoleirada numa pedra, cega pela claridade, uma coruja de olhos muito redondos e amarelos, grave, admirável, cheia de mistério. Eu andava devagar, mas assustei-a, e levantando voo por entre as pedras ela desapareceu silenciosa.
O ar recendia a tomilho. Já se abriam entre os espinhos as primeiras flores amarelas e tenras dos juncos marinhos. Quando cheguei à cidadezinha em ruínas, quedei-me surpreendido. Devia ser meio-dia, a luz caía a prumo, inundando os escombros. É a hora perigosa das velhas cidades em ruínas. O ar se enche de barulhos e espíritos. Um galho que se quebre, um lagarto que se mexa, uma nuvem que passe fazendo sombra — e ficamos em pânico. Cada polegada de terra em que se pise é um túmulo e os mortos gemem.
Pouco a pouco os olhos se habituaram à claridade. No meio daquelas pedras, eu distinguia agora a mão do homem: duas ruas largas e pavimentadas de lajes brilhantes. Uma praça circular ao centro, a agora, e bem ao lado, numa condescendência toda democrática, o palácio do rei, com a dupla colunata, escadarias de pedra e numerosas dependências.
No coração da cidade, onde as pedras do chão foram gastas ao máximo pelos pés dos homens, devia erguer-se o santuário; lá estava a Grande Deusa, de seios fartos e afastados, os braços cheios de serpentes.
Por toda parte, minúsculas lojas e oficinas — lagares de azeite, forjas, marcenarias, cerâmicas. Um formigueiro, habilmente construído, bem administrado, que as formigas abandonaram há milhares de anos. Numa loja, um artífice esculpia uma ânfora, em pedra estriada, mas não pudera terminá-la: o cinzel caíra-lhe das mãos. E milhares de anos mais tarde aí o vemos, perto da obra inacabada.
As perguntas eternas, inúteis, insensatas: Por quê? Para quê? Vêm ainda uma vez envenenar-nos o coração. Esta ânfora inacabada, contra a qual se lançara o ardor jovem e firme do artista, enchia-me de pesar.
De súbito, surgiu em cima de uma pedra, ao lado do palácio em ruínas, um pastorzinho, bronzeado pelo sol, joelhos negros, lenço de franjas nos cabelos crespos.
Olá, amigo! — chamou.
Eu queria estar só. Finjo que não ouço. Mas o pastorzinho ri, zombeteiro.
Eh! Está bancando o surdo? Você tem cigarros? Me dá um; aqui, nesse deserto, fico chateado.
O acento patético das últimas palavras me deixou penalizado.
Não tinha cigarros, quis dar-lhe dinheiro. Mas o pastorzinho ficou zangado.
Não tenho — falei desesperado, — não tenho!
Você não tem! — gritou o pastorzinho fora de si, batendo com força o cajado no chão. — você não tem! E então, os seus bolsos? Estão cheios.
Um livro, um lenço, papel, um lápis e um canivete — respondi, tirando um a um os objetos que tinha no bolso. — você quer o canivete?
Já tenho um. Eu tenho tudo: pão, queijo, azeitonas, uma faca, uma sovela para minhas botas e uma cabaça d’água, tudo, tudo! Mas não tenho cigarros: é como se não tivesse nada! E que é que você procura nas ruínas?
Eu contemplo as antiguidades.
E entende alguma coisa?
Nada!
Eu também não. Estes aí estão mortos, e nós vivemos. Ande, vá embora!
Dir-se-ia que o espírito daqueles lugares me enxotava.
Já me vou — disse, obediente.
Tomei depressa a estrada, preso de ligeira ansiedade.
Olhei para trás um momento e vi o pastorzinho que se chateava, ainda trepado na pedra. Seus cabelos anelados escapavam do lenço preto, voando ao vento sul. A luz banhava-o dos pés à cabeça. Parecia ter diante de mim uma estátua de efebo em bronze.
Agora, tinha posto o cajado aos ombros e assoviava.
Tomei um outro caminho e desci para a praia.
De quando em quando passavam por cima de mim bafos quentes e perfumes vindos dos jardins próximos. A terra recendia, o mar ria, o céu estava azul, brilhante como aço.
O inverno encolhe-nos o corpo e a alma, mas basta vir o calor que nos dilata o peito. Enquanto andava, ouvi de repente vozes roucas nos ares. Levantando a cabeça, vi o maravilhoso espetáculo que desde a infância me impressiona: as gruas, formadas como um exército em ordem de batalha, chegavam dos países quentes e, como na lenda, traziam andorinhas nas asas e nos sulcos profundos dos corpos ossudos.
O ritmo infalível do ano, a roda do mundo que gira, as quatro faces da terra que, uma após outra o sol ilumina, a vida que se extingue, tudo de novo me oprimia confusamente. E de novo soava em mim, como o grito das gruas, o aviso terrível de que esta vida é a única para o homem, não há nenhuma outra, e tudo o que pudermos desfrutar, será aqui mesmo. Nenhuma outra chance nos será dada na eternidade.
Um espírito que capta este aviso impiedoso — e ao mesmo tempo cheio de piedade — toma a decisão de vencer suas mesquinharias e fraquezas, a preguiça, as grandes esperanças inúteis e se apega, firme, a cada segundo que foge para sempre.
Vêm-nos à memória grandes exemplos, e então vemos claramente que não passamos de homens perdidos, que a vida se esbanja em pequenas alegrias, em pequenas tristezas e em fúteis propósitos. Mordendo os lábios a gente tem vontade de gritar para dentro: “Que vergonha!”
As gruas cruzaram o céu, e se foram em direção ao norte, mas nas minhas têmporas, ainda grasnam e voam sem cessar.
Cheguei à praia. Andei a beira d’água, a passos apressados.
Que angústia é andar só a beira do mar! Cada onda, cada pássaro no céu nos chama e nos lembra o dever. Quando se está acompanhado, rimos e conversamos, e por isso não ouvimos as ondas e os pássaros. Pode ser que eles não digam nada. Veem-nos passar, ocupados em nossas conversas, e se calam.
Deitei-me na areia e fechei os olhos. “Que será então a alma, pensei, e que oculta correspondência haverá entre a terra e o mar, as nuvens, os perfumes? Como se a alma fosse, ela também, mas, nuvens, perfumes...”

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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