sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Um leitor ideal

Quem mói no asp’ro não fantasêia”, declara Riobaldo, a certa altura de Grande sertão: veredas, rememorando a vida aventurosa e violenta que levara quando jagunço. O sentido é claro: as tribulações não deixam tempo para o devaneio, a imaginação, a fantasia; toda atenção deve se voltar para o real, presente ou iminente – para a ameaça. Em tempos como os que correm, tão obscuros e tão decisivos para o nosso devir, seria difícil discordar. Ainda assim, releiamos mais de perto o dito de Riobaldo: a concisão verbal é admirável; o verbo moer é usado em modulação metafórica, com feição intransitiva, e o verbo seguinte, fantasiar, conjugado caprichosamente, dá vontade de sorrir; o tom é lapidar, sentencioso, quase proverbial, como tantas vezes Riobaldo sabe ser e, mais que isso, gosta de ser; e, por último, os provérbios não são, como sugeria Walter Benjamin, uma forma de narrativa em miniatura? Se for assim, haverá mais em jogo na frase do que a camada evidente deixa ver de primeira. Como se, numa espécie de paradoxo performativo, o gesto verbal de declarar a moratória da fantasia não saberia ou não poderia dispensar a mesma; como se, afinal, as tais tribulações não tivessem como anular o exercício da fantasia, antes a nutrissem e a solicitassem: na ausência dela, não haveria como formular o sentido do real.
Se me detenho sobre esse quase-provérbio tirado do romance de Guimarães Rosa, é porque ele me parece propiciar uma chave valiosa para a leitura de Rosa & Rónai. Quando chegou ao Brasil, em 1941, Paulo Rónai deixara quase tudo para trás: a família e a noiva, a carreira docente que já iniciara e as ambições literárias que nutria em sua Budapeste natal. Não terá sido o único letrado judeu a sofrer tal destino: para citar um único exemplo da mesma geração, basta lembrar de Anatol Rosenfeld, que abandonou um doutorado na Alemanha para salvar a pele e ganhar a vida como fosse possível no Brasil. Mas decerto foram muitos os anônimos e as anônimas que, uma vez deste lado do oceano, viram-se obrigados a cuidar apenas da mais estrita urgência material, não encontrando forças para reatar com o élan intelectual ou criativo que os movia anteriormente. Seja como for, não foi esse o caso de Rónai. Numa terra em que “as vocações se improvisavam”, não se desviou de sua própria vocação de homme de lettres. Mal tocou terra, começou a escrever, lecionar, compilar, anotar, traduzir – e basta ler os ensaios de Como aprendi o português e outras aventuras para atestar que, com os anos, chegou a ser um notável estilista em português do Brasil. É difícil imaginar quanta energia e determinação foram necessárias para tudo isso. Mas, além da história de superação do imigrante, o que nos interessa aqui é que Rónai tenha sabido fazer o muito que fez sem nunca tirar a literatura do centro de suas atenções e de sua vida. Vale sublinhar: não num espírito de negação do vivido ou de adesão cega a um universo familiar mas devoluto, e sim num espírito de encontro, de um Encontro com o Brasil mediado pelas letras. Rónai “moeu no asp’ro”, viveu “no meio do redemunho”, mas, longe de se calar (e o silêncio é um elemento recorrente em muitas histórias de imigrantes, particularmente entre os que escaparam ao genocídio), porfiou em recriar, pelo exercício da fantasia e da imaginação, um mundo habitável e dotado de sentido.
Se não me equivoco, isso não teria sido possível sem a certeza íntima de que a língua e a literatura não são em nada “acessórias” face a um real tido, ele sim, por “substancial”. Sem jamais descambar para mistificação, Rónai viveu a linguagem como um poder propriamente demiúrgico, e não é de surpreender que cite Vilém Flusser (outro imigrante transplantado para o Brasil) a propósito da capacidade da linguagem de criar o real. Desde muito jovem, aprender línguas estrangeiras deve ter lhe parecido idêntico a adentrar mundos antes insuspeitos – e não aprender uma língua deve ter sido sinônimo de renunciar a todo um âmbito da vida, cerrado para sempre. Essa vertente da sensibilidade de Rónai explica sua adesão precoce e longeva à obra e à figura de Balzac, tema de sua tese de doutorado na Hungria e objeto de seus esforços editoriais no Brasil, onde coordenou nossa primeira edição integral d’A comédia humana. Com efeito, para fazer a crônica e capturar as linhas de força da sociedade francesa pós-napoleônica, o romancista francês lançava-se não ao registro factual, mas à criação de um universo vasto e populoso, em cuja dinâmica alucinada os leitores de largo fôlego haveriam de descobrir a cifra do real. Ora, esse mesmo traço também explica, a meu ver, muito do interesse de Rónai por um outro escritor-demiurgo, em princípio muito distinto e distante de Balzac, mas talvez pas tant que ça – refiro-me, já se adivinha, a Guimarães Rosa.
Não há dúvida de que havia muito mais a aproximar os dois homens, como a leitura vasta e o talento para as (muitas) línguas. Havia em Rónai, por exemplo, uma espécie de talento para a amizade, que o tornou muito próximo e querido de figuras muito variadas da cena literária de então. Mas quero crer que, no centro de tudo, havia uma confluência fundamental no que diz respeito às potências da linguagem e da imaginação mitopoética. Rosa fez do sertão mineiro e nordestino um universo tanto familiar como singular – mas, decisivamente, um universo a que só se ganha acesso por meio de uma invenção verbal sem par, que exerce encantamento na mesma medida em que clama por decifração miúda e graúda. No centro da invenção rosiana, por sua vez, há um poderoso veio alusivo, que cita sem avisar, mistura línguas e convoca as tradições e os estratos literários mais diversos para a composição de suas narrativas, e por meio do qual o vasto mar de histórias da tradição universal vem alimentar o curso d’água, a vereda sertaneja.
Vistas as coisas a essa luz, Rosa parece encontrar em Rónai seu leitor ideal, ao mesmo tempo que a formação e os acidentes “asp’ros” da vida deste último parecem se encaixar e ganhar razão de ser: o filho do livreiro de Budapeste, o leitor onívoro, o filólogo formado na escola da estilística, o literato poliglota que um dia resolveu aprender português, o judeu cosmopolita e fugitivo – todas as facetas de Rónai confluem e contribuem para essa nova persona. O resultado desse encontro é a admirável sequência de ensaios críticos, escritos ao longo de três décadas, quase sempre no calor da hora, e agora reunidos num volume único graças aos bons cuidados de duas mulheres de letras, Zsuzsanna Spiry e Ana Cecilia Impellizieri Martins. Os leitores e as leitoras deste livro formarão, naturalmente, as mais diversas opiniões sobre este ou aquele ensaio, esta observação ou aquela interpretação; mas estou seguro de que todos e todas estarão de acordo em conceder a Rónai o lugar que lhe cabe como um dos grandes leitores da obra de Rosa, como um desses que – à maneira de Antonio Candido, Manuel Cavalcanti Proença, Walnice Galvão, Benedito Nunes ou Davi Arrigucci Jr. – fazem vibrar mais forte e ressoar mais alto a obra do escritor brasileiro.

Samuel Titan Jr., in Rosa & Ronái: O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador (Org. Ana Cecília Impellizieri Martins e Zsuzsanna Spiry)

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