“Quem mói no asp’ro não fantasêia”,
declara Riobaldo, a certa altura de Grande sertão: veredas,
rememorando a vida aventurosa e violenta que levara quando jagunço.
O sentido é claro: as tribulações não deixam tempo para o
devaneio, a imaginação, a fantasia; toda atenção deve se voltar
para o real, presente ou iminente – para a ameaça. Em tempos como
os que correm, tão obscuros e tão decisivos para o nosso devir,
seria difícil discordar. Ainda assim, releiamos mais de perto o dito
de Riobaldo: a concisão verbal é admirável; o verbo moer é usado
em modulação metafórica, com feição intransitiva, e o verbo
seguinte, fantasiar, conjugado caprichosamente, dá vontade de
sorrir; o tom é lapidar, sentencioso, quase proverbial, como tantas
vezes Riobaldo sabe ser e, mais que isso, gosta de ser; e, por
último, os provérbios não são, como sugeria Walter Benjamin, uma
forma de narrativa em miniatura? Se for assim, haverá mais em jogo
na frase do que a camada evidente deixa ver de primeira. Como se,
numa espécie de paradoxo performativo, o gesto verbal de declarar a
moratória da fantasia não saberia ou não poderia dispensar a
mesma; como se, afinal, as tais tribulações não tivessem como
anular o exercício da fantasia, antes a nutrissem e a solicitassem:
na ausência dela, não haveria como formular o sentido do real.
Se me detenho sobre esse quase-provérbio
tirado do romance de Guimarães Rosa, é porque ele me parece
propiciar uma chave valiosa para a leitura de Rosa & Rónai.
Quando chegou ao Brasil, em 1941, Paulo Rónai deixara quase tudo
para trás: a família e a noiva, a carreira docente que já iniciara
e as ambições literárias que nutria em sua Budapeste natal. Não
terá sido o único letrado judeu a sofrer tal destino: para citar um
único exemplo da mesma geração, basta lembrar de Anatol Rosenfeld,
que abandonou um doutorado na Alemanha para salvar a pele e ganhar a
vida como fosse possível no Brasil. Mas decerto foram muitos os
anônimos e as anônimas que, uma vez deste lado do oceano, viram-se
obrigados a cuidar apenas da mais estrita urgência material, não
encontrando forças para reatar com o élan intelectual ou criativo
que os movia anteriormente. Seja como for, não foi esse o caso de
Rónai. Numa terra em que “as vocações se improvisavam”, não
se desviou de sua própria vocação de homme de lettres. Mal tocou
terra, começou a escrever, lecionar, compilar, anotar, traduzir –
e basta ler os ensaios de Como aprendi o português e outras
aventuras para atestar que, com os anos, chegou a ser um notável
estilista em português do Brasil. É difícil imaginar quanta
energia e determinação foram necessárias para tudo isso. Mas, além
da história de superação do imigrante, o que nos interessa aqui é
que Rónai tenha sabido fazer o muito que fez sem nunca tirar a
literatura do centro de suas atenções e de sua vida. Vale
sublinhar: não num espírito de negação do vivido ou de adesão
cega a um universo familiar mas devoluto, e sim num espírito de
encontro, de um Encontro com o Brasil mediado pelas letras. Rónai
“moeu no asp’ro”, viveu “no meio do redemunho”, mas, longe
de se calar (e o silêncio é um elemento recorrente em muitas
histórias de imigrantes, particularmente entre os que escaparam ao
genocídio), porfiou em recriar, pelo exercício da fantasia e da
imaginação, um mundo habitável e dotado de sentido.
Se não me equivoco, isso não teria sido
possível sem a certeza íntima de que a língua e a literatura não
são em nada “acessórias” face a um real tido, ele sim, por
“substancial”. Sem jamais descambar para mistificação, Rónai
viveu a linguagem como um poder propriamente demiúrgico, e não é
de surpreender que cite Vilém Flusser (outro imigrante transplantado
para o Brasil) a propósito da capacidade da linguagem de criar o
real. Desde muito jovem, aprender línguas estrangeiras deve ter lhe
parecido idêntico a adentrar mundos antes insuspeitos – e não
aprender uma língua deve ter sido sinônimo de renunciar a todo um
âmbito da vida, cerrado para sempre. Essa vertente da sensibilidade
de Rónai explica sua adesão precoce e longeva à obra e à figura
de Balzac, tema de sua tese de doutorado na Hungria e objeto de seus
esforços editoriais no Brasil, onde coordenou nossa primeira edição
integral d’A comédia humana. Com efeito, para fazer a crônica e
capturar as linhas de força da sociedade francesa pós-napoleônica,
o romancista francês lançava-se não ao registro factual, mas à
criação de um universo vasto e populoso, em cuja dinâmica
alucinada os leitores de largo fôlego haveriam de descobrir a cifra
do real. Ora, esse mesmo traço também explica, a meu ver, muito do
interesse de Rónai por um outro escritor-demiurgo, em princípio
muito distinto e distante de Balzac, mas talvez pas tant que ça –
refiro-me, já se adivinha, a Guimarães Rosa.
Não há dúvida de que havia muito mais
a aproximar os dois homens, como a leitura vasta e o talento para as
(muitas) línguas. Havia em Rónai, por exemplo, uma espécie de
talento para a amizade, que o tornou muito próximo e querido de
figuras muito variadas da cena literária de então. Mas quero crer
que, no centro de tudo, havia uma confluência fundamental no que diz
respeito às potências da linguagem e da imaginação mitopoética.
Rosa fez do sertão mineiro e nordestino um universo tanto familiar
como singular – mas, decisivamente, um universo a que só se ganha
acesso por meio de uma invenção verbal sem par, que exerce
encantamento na mesma medida em que clama por decifração miúda e
graúda. No centro da invenção rosiana, por sua vez, há um
poderoso veio alusivo, que cita sem avisar, mistura línguas e
convoca as tradições e os estratos literários mais diversos para a
composição de suas narrativas, e por meio do qual o vasto mar de
histórias da tradição universal vem alimentar o curso d’água, a
vereda sertaneja.
Vistas as coisas a essa luz, Rosa parece
encontrar em Rónai seu leitor ideal, ao mesmo tempo que a formação
e os acidentes “asp’ros” da vida deste último parecem se
encaixar e ganhar razão de ser: o filho do livreiro de Budapeste, o
leitor onívoro, o filólogo formado na escola da estilística, o
literato poliglota que um dia resolveu aprender português, o judeu
cosmopolita e fugitivo – todas as facetas de Rónai confluem e
contribuem para essa nova persona. O resultado desse encontro é a
admirável sequência de ensaios críticos, escritos ao longo de três
décadas, quase sempre no calor da hora, e agora reunidos num volume
único graças aos bons cuidados de duas mulheres de letras,
Zsuzsanna Spiry e Ana Cecilia Impellizieri Martins. Os leitores e as
leitoras deste livro formarão, naturalmente, as mais diversas
opiniões sobre este ou aquele ensaio, esta observação ou aquela
interpretação; mas estou seguro de que todos e todas estarão de
acordo em conceder a Rónai o lugar que lhe cabe como um dos grandes
leitores da obra de Rosa, como um desses que – à maneira de
Antonio Candido, Manuel Cavalcanti Proença, Walnice Galvão,
Benedito Nunes ou Davi Arrigucci Jr. – fazem vibrar mais forte e
ressoar mais alto a obra do escritor brasileiro.
Samuel Titan Jr., in Rosa & Ronái: O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador (Org. Ana Cecília Impellizieri Martins e Zsuzsanna Spiry)
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