A faca ressurgiu, rutilante, entre as
coisas que Belonísia levava em sua sacola de palha. Por um instante,
Bibiana não acreditou se tratar da mesma peça que havia
desaparecido da casa antiga, provavelmente pelas mãos de Donana.
Caminhou até a frente da casa da mãe, as filhas chamavam do lado de
fora para que visse o batizado de bonecas que Ana estava preparando.
Se aproximou, muda, e retornou para a cadeira velha onde pendia a
lâmina. Estendeu os dedos e sentiu que estava quente ao seu toque,
quase candente, quando confirmou do que se tratava. Sentiu vergonha
por estar espiando a sacola da irmã, mas não conseguiu disfarçar a
surpresa ao ver o que julgava soterrado em sua memória. A cicatriz
de sua língua se ressentiu da recordação, formigou, e lançou
Bibiana de novo ao dia do acidente. A mão da avó, por um instante,
desabou sobre sua cabeça, que se tornou pesada com as interrogações
que surgiram com a imagem. Puxou o objeto pela ponta até que se
revelasse por inteiro: a empunhadura de marfim bem acabada; pomos e
guarda de um metal mais embaçado; lâmina brilhante, sem envelhecer.
E um fio de corte que parecia vibrar, prestes a rasgar o pequeno
campo de atmosfera em seu entorno, como se dividisse com um talhar um
pequeno lenço de seda.
Belonísia entrou no cômodo e parou,
como se retornasse trinta anos no tempo e visse, de novo, Bibiana
retirar o objeto do tecido encardido de sangue. Há muito não havia
mais o tecido. Mas o silêncio com que viu a irmã devolver seu olhar
a deixou suspensa no tempo, como se nada mais pudesse avançar antes
que se esclarecesse o que aquela presença significava.
Tão habituada que estava a se locomover
com a faca, agora se contrapunha de forma inevitável à perplexidade
que os olhos de Bibiana lhe devolviam. O rútilo se tornou mais
intenso no objeto, e, ao redor das irmãs surgiu uma sombra fria,
projetada por uma nuvem que encobriu o sol. Belonísia deu duas
pancadas leves no queixo e desceu com o polegar pela face para dizer
que sim, era da avó. Cruzou os dedos das duas mãos, deslizando uns
sobre os outros para comunicar, sim, é faca. Repetiu o gesto com as
pancadas no queixo e o polegar descendo a face. Não precisava
confirmar, Bibiana já havia entendido. Perguntou se Salu sabia.
Negação foi a resposta. Para quê? Se preocuparia de forma
desnecessária. Ela apenas continuaria a ser tratada como a criança
irrequieta que havia se mutilado. E por que a carregava consigo? Para
trabalhar, claro, para se proteger – veja o que aconteceu a Severo,
seus indicadores deslizaram no ar em direção à irmã – e porque
havia perdido a língua. O objeto havia chegado às suas mãos de
novo, havia um sinal naquele assombro. Guardava por sentimentos que,
por mais que vivesse, não saberia explicar. E onde estava esse tempo
todo, perguntou. Você não acreditaria, disse negando com a cabeça
e colocando uma mão sobre a outra com as palmas voltadas para cima.
Ao se mudar para a casa de Tobias,
naquela manhã em que saiu com a trouxa de coisas e seguiu para a
margem do Santo Antônio no mesmo cavalo, naquela manhã em que
sentiu seu ventre vibrar na caminhada do animal até a casa onde
moraria, não imaginou que seria surpreendida com uma montanha de
entulho que o marido guardava em casa. Àquela visão inicial se
seguiu o desânimo, ao pensar o que teria que fazer para tornar a
casa habitável, que teria muito trabalho, já que havia trocado a
casa dos pais por uma morada árida de tudo. Não conseguiu arrumar
tudo no mesmo dia, após a primeira organização se seguiram muitos
dias de trabalho, separando lixo, garrafas vazias e tudo que se
amontoava pelo casebre.
Um pote de cerâmica – como as panelas
antigas – com pequenos torrões de terra ao redor estava esquecido,
como quase tudo, num canto da cozinha. Belonísia resistiu a abri-lo
com receio de encontrar um rato, uma aranha ou ossada de gente, como
já havia ouvido em relatos do povo da região. Faltava um pedaço da
boca do pote. Ela adiou essa abertura até esbarrar nele de forma
acidental e terminar por quebrar mais um pedaço grande da boca. Ao
levantar o objeto sentiu que algo balançava com o movimento. Deixou
o pote no chão e se afastou. Mas o raio do sol da manhã alcançou o
pote e refletiu no que quer que fosse que estivesse guardado. O
brilho chegou aos seus olhos. Um diamante. Era a primeira coisa que
alguém pensaria, considerando as histórias da Chapada. Todo mundo
espera, um dia, encontrar ou ser encontrado pelo brilho da pedra.
Retirou o tampo. A ponta de uma faca reluziu de forma mais intensa
exposta à luz. Belonísia a retirou do pote para fazer como havia
feito com tudo até aquele momento: jogar o que não prestava fora e
dar novo destino ao que tinha utilidade.
O cabo de marfim tocou sua mão. Estava
morno como o pote exposto ao sol em que se abrigava. Mas a boca
formigou como no dia em que encontrou a faca da avó. O brilho
intenso, as intrigas, o desejo de descobrir seu gosto e a disputa nas
brincadeiras com a irmã a levaram ao desfecho que a silenciou para o
mundo. A lembrança de Donana depois do evento surgiu viva em seu
pensamento. A velha vagando pelo quintal, chamando a filha de quem
não tinha notícias, pedindo que tomassem cuidado com a onça, dona
Tonha dizendo quando chegaram do hospital que ela havia saído para a
beira do rio levando um embrulho. O embrulho, a faca, o pote de
cerâmica que desconhecia. Era a lâmina aquecida por estar no sol,
fria quando estava na mala debaixo da cama. Era o fio de corte
preservado que rasgava o véu do passado e chegava ao seu presente
para fazê-la recordar aquele dia.
Tobias entrou e encontrou seu semblante
de espanto e distante no tempo. Belonísia colocou um pano de prato
sobre a faca em cima da mesa. Ele havia esquecido a vara de pesca,
traria peixe para os dois quando terminasse as tarefas.
“Não devolverei a Tobias”, foi o que
passou por seus pensamentos, “pertence à minha família”.
Encontrou um lugar seguro para colocar a faca, entre o armário
empenado e a parede, onde apenas sua mão e o objeto cabiam. Depois
que ficou viúva, retirou-a do lugar em que a havia escondido. Passou
a andar com ela para a roça, para o rio, levou para defender Maria
Cabocla, dobrou o homem da vizinha que se acovardou diante da lâmina
e dos seus olhos de fúria. Mas nada disso Bibiana saberia. Ela
colocou um ponto final na história antes que a memória lhe
retornasse desordenada. Ouviu da irmã apenas que, olhando para a
faca tantos anos depois, ela parecia ter sido retirada naquele mesmo
instante da mala velha de Donana. A mala que havia levado consigo e
com a qual havia regressado, também. E alertou: “Cuidado com Ana,
não deixe à toa”, devolveu a faca a Belonísia, “ela é curiosa
como nós éramos”.
Saiu em direção ao terreiro, mas, antes
de chegar à porta, retornou.
“Belô”, disse para a irmã, “o que
será que fez minha avó guardar essa faca como um tesouro?”.
Belonísia fez a linha de sua boca ganhar a forma de um arco. “Sabe,
não sei se você lembra, mas uma coisa me intrigou, não naquele
tempo, éramos muito meninas, mas anos depois, quando me lembrava
disso tudo”, disse, enquanto a irmã terminava de guardar a faca na
sacola. O dedo indicador arqueado voltou ao corpo de Belonísia. “Por
que a faca estava envolta naquele tecido sujo de sangue? Aquela
mancha escura era sangue”, suspirou. “E por que minha avó
guardava essa faca com tanto medo? Ela não temia outras coisas que
podiam nos machucar da mesma forma, como um caco de espelho ou
qualquer outra coisa.”
“Medo?”, o polegar e o dedo do meio
tocaram o lugar do coração. Belonísia queria entender aonde a irmã
queria chegar.
“Minha avó tinha mais medo do que essa
faca significava. Ela temia mais o segredo que guardava do que o que
pudesse nos ferir.”
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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