Levaram um pastor de igreja, dias depois,
para celebrar um culto. A intenção era reunir alguns poucos
moradores que frequentavam eventualmente igrejas no dia de feira na
cidade, e já tinham seu rol de orações e pecados. Era costume de
quase todos participar das cerimônias ou viajar para as romarias,
mas era a primeira vez que se celebrava algo que não fosse o jarê
dentro da fazenda. Depois da morte de Zeca Chapéu Grande, quem pôde
foi para outra casa de jarê, procurar um novo curador para retirar a
mão do velho e colocar a nova sobre sua cabeça. Nos últimos anos,
depois do fim das celebrações de jarê na fazenda, duas famílias
haviam se convertido ao evangelismo, mas continuavam a conviver com
as demais sem conflitos aparentes, ainda que renegassem, em privado,
as práticas antigas.
Antes do culto, Estela seguiu com o
pastor de casa em casa, para convidá-los à celebração. Se
deslocaram no veículo da família. Ela usava um vestido branco com
flores e sua pele parecia avermelhada, não pelo excesso de sol, mas
como se tivesse comido algo que a deixou com placas de irritação no
pescoço e braços. O pastor era um homem conhecido, chegavam
notícias de que seria candidato a vereador, e realizava visitas às
fazendas e povoados da região com a intenção de pedir votos para a
eleição de outubro.
“Eles agora querem posar de bons
cristãos. Aliás, sempre fingiram que eram bons”, disse Bibiana,
ao saber do culto por dona Tonha.
“Engraçado essa notícia de pastor
hoje por aqui”, interveio Salustiana. “Acordei pensando em Bom
Jesus. Nas histórias que contavam e que já contei para vocês
muitas vezes”, disse apontando para Bibiana, enquanto Belonísia
aguava o quintal, “mas acho que não contei para você, Inácio,
nem sei se sua mãe contou”.
“O quê, minha mãe?”
“A história lá do Bom Jesus, em Lagoa
Funda”, disse abrindo uma vagem de feijão, enquanto o neto
suspendia o reparo de uma malha de peixe pendurada entre a porta e
uma estaca de cerca, no terreiro de casa. “Minha avó contava que
os negros de Lagoa Funda chegaram num tempo que ninguém sabia dizer.
Cada um tinha sua tapera, tinham suas roças, plantavam na vazante do
rio São Francisco. Os filhos iam nascendo e iam fazendo suas
casinhas e botando suas roças onde os pais já tinham. Durante muito
tempo, não houve nada nem ninguém por aquelas bandas. Eram só o
povo e Deus. Depois chegou a igreja e disse que as terras da cidade
lhe pertenciam. Não demorou muito e chegou até Lagoa Funda e tudo o
que estava em volta da cidade. Disse que nossa terra pertencia à
igreja também.”
“O povo teve que sair de lá?”,
Inácio parou por um tempo o trançado da malha para ouvir o resto da
história.
“Não. A igreja marcou com ferro as
árvores com um B e um J de Bom Jesus. Marcou tudo o que podia. Disse
que as terras pertenciam à igreja e nós éramos escravos do Bom
Jesus. Bom, o povo estranhou, porque não se falava em escravidão em
Lagoa Funda. Minha avó disse que sabiam de escravos em outros
lugares, mas não ali. Nunca houve escravo naquela terra. Todos se
consideravam livres, e hoje eu penso nas coisas que o finado Severo,
seu pai, dizia: se os negros vieram para o Brasil para ser escravos,
Lagoa Funda deve ter começado com o povo que fugiu de alguma fazenda
ou ganhou liberdade de algum fazendeiro. Mas ali, ninguém quis falar
sobre isso. Todo mundo nascia livre, sem dono. Apagaram essa
lembrança do cativeiro.”
“Talvez fosse difícil falar, minha
mãe. Sofreram coisas ruins que não quiseram falar”, disse
Bibiana, enquanto arrumava a sacola que levaria para a cidade.
“Pode ser. Depois que marcaram tudo com
o nome do Bom Jesus – eu vi muito pé de tudo, de jatobá a
oitizeiro, com a marca de ferro do Bom Jesus – e disseram que eram
escravos do Bom Jesus, o povo ainda viveu como antes por muitos anos.
Mas depois os fazendeiros chegaram mostrando documento, e foram
cercando as terras, o povo resistindo, gente morreu, e terminaram por
ficar espremidos num cantinho. Minha mãe e meu pai foram para
Fazenda Caxangá, onde conheci seu avô, nessa época em que cercaram
as terras”, limpou o suor que descia do rosto com um pano, “se
vivêssemos naquele mundão de terra todo, que os mais velhos diziam
que tínhamos antes de os fazendeiros cercarem, talvez nem eu nem
vocês estivéssemos em Água Negra. Nem seus avós de pai também,
Inácio”.
Salustiana e Belonísia permaneceram em
casa depois que Bibiana e as filhas tinham saído para a cidade.
Inácio havia descido para a vazante, não acompanhou a mãe. Quando
Estela e o convidado chegaram à porta da casa de Salustiana,
primeiro convidaram para uma oração “para os que se foram” no
culto que seria realizado, o que de pronto ela recusou. “Obrigada,
mas estou ocupada.” O pastor, um homem que falava alto como se
estivesse sempre pregando para uma multidão, começou a falar sobre
as imagens de santos depois de ver o pequeno altar da casa. Belonísia
bateu os pés, impaciente, com o rosto transtornado pela presença
dos dois. Se colocou com metade do corpo atrás da porta, alerta para
fechá-la à primeira ofensa. O homem falava enquanto Estela sorria
sem graça, prevendo o fracasso de sua intervenção. Até que ela
tomou a palavra. Falou que ali se praticou jarê por muito tempo. Que
dona Salu tocava tambor, mas que agora todos precisavam ouvir a
palavra de Deus.
Belonísia fez um gesto para empurrar a
porta, mas a mãe segurou antes que ela fosse fechada. Embora
estivessem falando de religião, Salu estava amargurada pela disputa
pela terra que havia tirado a vida de Severo. Pelas ameaças e
proibições que tinham a intenção de fazê-los deixar a fazenda.
Aquela visita era parte da tormenta que sofriam há tempos para
constrangê-los, até não sobrar mais nada. Se pôs com autoridade
diante dos dois para dizer o que a estava sufocando há muito tempo.
“Olha, dona”, interrompeu Salu antes
que a mulher continuasse sua pregação, «eu não tenho muita letra
nem estudo, mas quero que a senhora entenda uma coisa. Eu não sou a
única a morar nesta terra. Muitos destes moradores que vocês querem
mandar embora chegaram muito antes de vocês. Vocês não eram nem
nascidos. Muitos nasceram aqui. Tenho filhos e netos, todos nasceram
em Água Negra. Também não posso dizer o que cada um pensa dela,
tim-tim por tim-tim, porque não estou nos pensamentos de ninguém.
Mas falo por mim: eu nasci em Bom Jesus, mas também nasci de alguma
forma nesta terra. Cheguei aqui moça e jovem. Aqui vivi, criei meus
filhos, labutei com meu marido, vi meus vizinhos e compadres serem
enterrados, lá no cemitério que vocês fecharam. Fui parida, mas
também pari esta terra. Sabe o que é parir? A senhora teve filhos.
Mas sabe o que é parir? Alimentar e tirar uma vida de dentro de
você? Uma vida que irá continuar mesmo quando você já não
estiver mais nessa terra de Deus? Não sei se a senhora sabe, mas eu
peguei em minhas mãos a maioria desses meninos, homens e mulheres
que a senhora vê por aí. Sou mãe de pegação deles. Assim como
apanhei cada um com minhas mãos, eu pari esta terra. Deixa ver se a
senhora entendeu: esta terra mora em mim», bateu com força em seu
peito, “brotou em mim e enraizou”. “Aqui”, bateu novamente no
peito, “é a morada da terra. Mora aqui em meu peito porque dela se
fez minha vida, com meu povo todinho. No meu peito mora Água Negra,
não no documento da fazenda da senhora e seu marido. Vocês podem
até me arrancar dela como uma erva ruim, mas vocês nunca irão
arrancar a terra de mim”.
Estela ficou mais pálida do que se
apresentava geralmente e tentou interromper Salu, sem sucesso.
“E tem mais”, completou, “posso não
ser curadora, mas ainda sei mexer com feitiço. Posso muito bem dar
de comer e beber aos meus guias e pedir pra darem um jeito em muita
coisa errada por aqui”, disse, dando as costas e fechando a porta.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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