Outros peregrinos vagam por ali, em
túnicas cor de açafrão ou feitas de juta. Sandálias se arrastam
nas pedras e ventos fortes sibilam pelos cantos das cavernas.
Pergunte aos peregrinos como o labirinto se formou e eles oferecerão
respostas tão variadas como seus pecados. Gigantes o construíram,
um deles declara, antes de os deuses acabarem com os gigantes e
abandonarem a Terra à própria sorte nas mãos dos mortais. (Sim,
isso é a Terra — muito antes da Era do Gelo e dos mamutes, muito
antes do que os acadêmicos muitos séculos fio abaixo pensarão que
é possível o planeta ter gerado peregrinos ou labirintos. Terra.) A
primeira cobra construiu o labirinto, diz outro, se contorcendo pelas
rochas para se esconder do julgamento do sol. Foi a erosão, diz um
terceiro, e o grande e silencioso movimento das placas tectônicas,
forças grandiosas demais para as baratas compreenderem, lentas
demais para seres efêmeros observarem.
Eles passam entre os mortos, sob lustres
feitos de escápulas, janelas rosadas emolduradas por costelas.
Flores intrincadas delineando metacarpos.
Red não pergunta nada aos outros
peregrinos. Ela tem sua missão. Ela toma cuidado. Não deve
encontrar qualquer oposição ao torcer ligeiramente aquele ponto tão
fio acima. No coração do labirinto há uma caverna, e lá de dentro
logo soprará uma rajada de vento, e se esse vento assoviar nos ossos
flauteados corretos, um peregrino ouvirá o lamento como um agouro
que o fará renunciar a todos os bens mundanos e se retirar para
construir um eremitério no cume de uma montanha distante, de maneira
que o eremitério irá existir dali a duzentos anos para abrigar uma
mulher em fuga com uma criança durante uma tempestade, e por aí
vai. Começa com uma pedra rolando, então em três séculos se tem
uma avalanche. Não há muita graça em uma missão dessas, poucos
desafios, desde que ela siga o roteiro. Nenhuma provocação que
perturbe seu caminho.
Será que sua adversária — Blue —
leu sua carta? Red gostou de escrevê-la — a vitória tem um gosto
doce, porém mais doce é triunfar e provocar. Em cada operação
desde então, ela vem sendo mais cautelosa, esperando o troco, ou que
a Comandante descubra sua pequena violação de disciplina e lhe dê
a punição. Red tem suas justificativas prontas: desde sua
desobediência, ela tem sido uma agente melhor, mais meticulosa.
Mas nenhuma resposta veio.
Talvez estivesse enganada. Talvez sua
inimiga não se importe, afinal.
Os peregrinos seguem guias pelo caminho
da sabedoria. Red avança e percorre passagens estreitas e tortuosas
no escuro.
A escuridão não a incomoda. Seus olhos
não funcionam como olhos normais. Ela fareja o ar e análises
olfativas se iluminam em seu cérebro, oferecendo uma trilha. Em um
nicho específico, ela retira da bolsa um pequeno tubo que lança luz
vermelha sobre os esqueletos dispostos ali dentro. Da primeira vez
que faz isso, ela não encontra nada. Da segunda vez, sua luz cintila
em uma listra pulsante em um fêmur aqui, em uma mandíbula ali.
Satisfeita, ela coleta o fêmur e a
mandíbula em sua bolsa, depois apaga a luz e se aprofunda mais na
caverna.
Imagine-a na noite total, invisível.
Imagine os passos, um após o outro, que nunca se cansam, nunca
escorregam na poeira da caverna ou no cascalho. Imagine a precisão
com que sua cabeça gira sobre o pescoço grosso, movendo-se em um
arco calculado de um lado para outro. Ouça (dá para ouvir, por
pouco) os giroscópios zumbirem em suas entranhas, lentes clicando
sob a gelatina de camuflagem daqueles olhos totalmente negros.
Ela se move tão rápido quanto possível,
dentro dos parâmetros operantes.
Mais luzes vermelhas. Mais ossos se
juntam aos outros na bolsa. Ela não precisa conferir seu relógio.
Um temporizador tiquetaqueia no canto de sua vista.
Quando ela acha que encontrou os ossos de
que precisa, ela desce.
Bem mais abaixo no caminho da sabedoria,
os criadores desse lugar escuro esgotaram seus cadáveres. Os nichos
permanecem, esperando — talvez por Red.
Mesmo os nichos acabam, em certo ponto.
Logo depois disso, os guardas se lançam
sobre ela: gigantes sem olhos cultivados pelas senhoras de dentes
afiados desse lugar. As unhas dos gigantes são amarelas, grossas e
rachadas, e seus hálitos não fedem tanto quanto o esperado.
Red os derruba rápida e silenciosamente.
Ela não tem tempo para a abordagem menos violenta.
Quando já não consegue mais ouvir seus
gemidos, ela chega na caverna.
Sabe, pela mudança no eco de seus
passos, que encontrou o lugar certo. Quando ela se ajoelha e estende
a mão, sente dez centímetros remanescentes de chão, e então o
abismo. Golpes de vento forte e frio passam por ela: o hálito da
própria Terra, ou de algum monstro nas profundezas. Uiva. O som
chacoalha os móbiles de ossos que as freiras fabricam ali embaixo,
para se lembrarem da impermanência da carne. Os ossos cantam e
giram, pendurados por fios de medula na escuridão.
Red tateia seu caminho pela borda até
encontrar um dos grandes troncos de árvore ancorados, de onde pendem
os móbiles. Ela desliza pelo tronco até chegar aos ossos de uma
antiga freira, pendurados por alguma outra.
A contagem regressiva em seu olho a avisa
de que resta pouco tempo.
Ela liberta os velhos ossos com suas
unhas afiadas feito diamantes e pega as reposições em sua bolsa.
Pendura-os um por um no fio de medula, conectando o crânio e a
fíbula, mandíbula e esterno, cóccix e processo xifoide.
A contagem regressiva continua. Sete.
Seis.
Ela dá os nós rapidamente, guiada pelo
toque. Seus membros a informam de que estão doloridos nos pontos
onde se agarram a esse velho tronco sobre uma queda incomensurável.
Três. Dois.
Ela deixa os ossos caírem sobre o
abismo.
Zero.
Uma rajada de vento divide a terra, um
rugido na escuridão. Red se agarra ao tronco petrificado como se a
uma amante. O vento atinge o pico, grita, lança ossos por todo lado.
Uma nova nota se eleva acima do barulho do ossuário, despertada pelo
vento da caverna assobiando em sulcos específicos dos ossos que Red
pendurou. A nota cresce, muda e se avoluma em voz.
Red escuta, mostrando os dentes em uma
expressão que, se visse no espelho, não saberia nomear. Há
assombro, sim, e fúria. O que mais?
Ela escaneia a caverna sem luz. Não
detecta qualquer sinal de calor, qualquer movimento, nem zunido de
radar nem emissões eletromagnéticas ou rastro de nuvem — é claro
que não. Ela se sente gloriosamente exposta. Pronta para o tiro ou
para o momento da verdade.
Cedo demais, o vento morre, e a voz com
ele.
Red xinga no silêncio. Lembrando-se da
era, ela invoca deidades locais da fertilidade, estrutura métodos
inventivos para suas cópulas. Ela exaure seu arsenal invectivo e
rosna, sem palavras, e cospe no abismo.
Depois de tudo isso, como profetizado,
ela ri. Frustrada, amarga, mas ainda assim há humor em seu riso.
Antes de partir, Red serra os ossos que
pendurou, libertando-os. O peregrino que ela queria moldar se foi, e
o eremitério será desconstruído. Agora Red tem que arrumar a
bagunça usando toda a sua habilidade.
Os ossos abandonados rolam e rolam e caem
e caem.
Mas não se preocupe. A rastreadora os
pega antes que cheguem ao chão.
Amal El-Mohtar & Max Gladstone, in É assim que se perde a guerra do tempo
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