quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Red procura caminho por um labirinto de ossos


Outros peregrinos vagam por ali, em túnicas cor de açafrão ou feitas de juta. Sandálias se arrastam nas pedras e ventos fortes sibilam pelos cantos das cavernas. Pergunte aos peregrinos como o labirinto se formou e eles oferecerão respostas tão variadas como seus pecados. Gigantes o construíram, um deles declara, antes de os deuses acabarem com os gigantes e abandonarem a Terra à própria sorte nas mãos dos mortais. (Sim, isso é a Terra — muito antes da Era do Gelo e dos mamutes, muito antes do que os acadêmicos muitos séculos fio abaixo pensarão que é possível o planeta ter gerado peregrinos ou labirintos. Terra.) A primeira cobra construiu o labirinto, diz outro, se contorcendo pelas rochas para se esconder do julgamento do sol. Foi a erosão, diz um terceiro, e o grande e silencioso movimento das placas tectônicas, forças grandiosas demais para as baratas compreenderem, lentas demais para seres efêmeros observarem.
Eles passam entre os mortos, sob lustres feitos de escápulas, janelas rosadas emolduradas por costelas. Flores intrincadas delineando metacarpos.
Red não pergunta nada aos outros peregrinos. Ela tem sua missão. Ela toma cuidado. Não deve encontrar qualquer oposição ao torcer ligeiramente aquele ponto tão fio acima. No coração do labirinto há uma caverna, e lá de dentro logo soprará uma rajada de vento, e se esse vento assoviar nos ossos flauteados corretos, um peregrino ouvirá o lamento como um agouro que o fará renunciar a todos os bens mundanos e se retirar para construir um eremitério no cume de uma montanha distante, de maneira que o eremitério irá existir dali a duzentos anos para abrigar uma mulher em fuga com uma criança durante uma tempestade, e por aí vai. Começa com uma pedra rolando, então em três séculos se tem uma avalanche. Não há muita graça em uma missão dessas, poucos desafios, desde que ela siga o roteiro. Nenhuma provocação que perturbe seu caminho.
Será que sua adversária — Blue — leu sua carta? Red gostou de escrevê-la — a vitória tem um gosto doce, porém mais doce é triunfar e provocar. Em cada operação desde então, ela vem sendo mais cautelosa, esperando o troco, ou que a Comandante descubra sua pequena violação de disciplina e lhe dê a punição. Red tem suas justificativas prontas: desde sua desobediência, ela tem sido uma agente melhor, mais meticulosa.
Mas nenhuma resposta veio.
Talvez estivesse enganada. Talvez sua inimiga não se importe, afinal.
Os peregrinos seguem guias pelo caminho da sabedoria. Red avança e percorre passagens estreitas e tortuosas no escuro.
A escuridão não a incomoda. Seus olhos não funcionam como olhos normais. Ela fareja o ar e análises olfativas se iluminam em seu cérebro, oferecendo uma trilha. Em um nicho específico, ela retira da bolsa um pequeno tubo que lança luz vermelha sobre os esqueletos dispostos ali dentro. Da primeira vez que faz isso, ela não encontra nada. Da segunda vez, sua luz cintila em uma listra pulsante em um fêmur aqui, em uma mandíbula ali.
Satisfeita, ela coleta o fêmur e a mandíbula em sua bolsa, depois apaga a luz e se aprofunda mais na caverna.
Imagine-a na noite total, invisível. Imagine os passos, um após o outro, que nunca se cansam, nunca escorregam na poeira da caverna ou no cascalho. Imagine a precisão com que sua cabeça gira sobre o pescoço grosso, movendo-se em um arco calculado de um lado para outro. Ouça (dá para ouvir, por pouco) os giroscópios zumbirem em suas entranhas, lentes clicando sob a gelatina de camuflagem daqueles olhos totalmente negros.
Ela se move tão rápido quanto possível, dentro dos parâmetros operantes.
Mais luzes vermelhas. Mais ossos se juntam aos outros na bolsa. Ela não precisa conferir seu relógio. Um temporizador tiquetaqueia no canto de sua vista.
Quando ela acha que encontrou os ossos de que precisa, ela desce.
Bem mais abaixo no caminho da sabedoria, os criadores desse lugar escuro esgotaram seus cadáveres. Os nichos permanecem, esperando — talvez por Red.
Mesmo os nichos acabam, em certo ponto.
Logo depois disso, os guardas se lançam sobre ela: gigantes sem olhos cultivados pelas senhoras de dentes afiados desse lugar. As unhas dos gigantes são amarelas, grossas e rachadas, e seus hálitos não fedem tanto quanto o esperado.
Red os derruba rápida e silenciosamente. Ela não tem tempo para a abordagem menos violenta.
Quando já não consegue mais ouvir seus gemidos, ela chega na caverna.
Sabe, pela mudança no eco de seus passos, que encontrou o lugar certo. Quando ela se ajoelha e estende a mão, sente dez centímetros remanescentes de chão, e então o abismo. Golpes de vento forte e frio passam por ela: o hálito da própria Terra, ou de algum monstro nas profundezas. Uiva. O som chacoalha os móbiles de ossos que as freiras fabricam ali embaixo, para se lembrarem da impermanência da carne. Os ossos cantam e giram, pendurados por fios de medula na escuridão.
Red tateia seu caminho pela borda até encontrar um dos grandes troncos de árvore ancorados, de onde pendem os móbiles. Ela desliza pelo tronco até chegar aos ossos de uma antiga freira, pendurados por alguma outra.
A contagem regressiva em seu olho a avisa de que resta pouco tempo.
Ela liberta os velhos ossos com suas unhas afiadas feito diamantes e pega as reposições em sua bolsa. Pendura-os um por um no fio de medula, conectando o crânio e a fíbula, mandíbula e esterno, cóccix e processo xifoide.
A contagem regressiva continua. Sete. Seis.
Ela dá os nós rapidamente, guiada pelo toque. Seus membros a informam de que estão doloridos nos pontos onde se agarram a esse velho tronco sobre uma queda incomensurável.
Três. Dois.
Ela deixa os ossos caírem sobre o abismo.
Zero.
Uma rajada de vento divide a terra, um rugido na escuridão. Red se agarra ao tronco petrificado como se a uma amante. O vento atinge o pico, grita, lança ossos por todo lado. Uma nova nota se eleva acima do barulho do ossuário, despertada pelo vento da caverna assobiando em sulcos específicos dos ossos que Red pendurou. A nota cresce, muda e se avoluma em voz.
Red escuta, mostrando os dentes em uma expressão que, se visse no espelho, não saberia nomear. Há assombro, sim, e fúria. O que mais?
Ela escaneia a caverna sem luz. Não detecta qualquer sinal de calor, qualquer movimento, nem zunido de radar nem emissões eletromagnéticas ou rastro de nuvem — é claro que não. Ela se sente gloriosamente exposta. Pronta para o tiro ou para o momento da verdade.
Cedo demais, o vento morre, e a voz com ele.
Red xinga no silêncio. Lembrando-se da era, ela invoca deidades locais da fertilidade, estrutura métodos inventivos para suas cópulas. Ela exaure seu arsenal invectivo e rosna, sem palavras, e cospe no abismo.
Depois de tudo isso, como profetizado, ela ri. Frustrada, amarga, mas ainda assim há humor em seu riso.
Antes de partir, Red serra os ossos que pendurou, libertando-os. O peregrino que ela queria moldar se foi, e o eremitério será desconstruído. Agora Red tem que arrumar a bagunça usando toda a sua habilidade.
Os ossos abandonados rolam e rolam e caem e caem.
Mas não se preocupe. A rastreadora os pega antes que cheguem ao chão.

Amal El-Mohtar & Max Gladstone, in É assim que se perde a guerra do tempo

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