sábado, 11 de dezembro de 2021

Poética e política

Passei quase todo o ano de 1969 em Isla Negra. Desde cedo o mar começa a se avolumar de forma fantástica. Parece estar amassando um pão infinito. É branca como farinha a espuma derramada, impulsionada pelo fermento frio da profundidade.
O inverno é estático e brumoso. Ao seu encanto acrescentamos todo dia o fogo da lareira. A brancura das areias na praia nos oferece um mundo sempre solitário, como era antes de existirem habitantes ou veranistas na terra. Mas não se pense que eu detesto a multidão estival. Mal se aproxima o verão, as moças se aproximam do mar, homens e crianças entram nas ondas com precaução e saem saltitando do perigo. Assim consumam a dança milenar do homem diante do mar, talvez a primeira dança dos seres humanos.
No inverno as casas de Isla Negra vivem envoltas pela escuridão da noite. Somente a minha se acende. Às vezes penso que há alguém na casa defronte. Vejo uma janela iluminada, É só um reflexo. Não tem ninguém na casa do Capitão. É a luz da minha janela que se reflete na sua.
Todos os dias do ano escrevi no meu canto de trabalho. Não é fácil chegar ali nem se manter nele. No entanto há algo que atrai meus dois cães, Panda e Chou Tu. É uma pele de tigre de Bengala que serve de tapete no pequeno quarto. Trouxe-a da China há muitíssimos anos. Caíram-lhe as garras e os pêlos, além de certa ameaça de traça que Matilde e eu conjuramos.
Meus cães gostam de se estender sobre o velho inimigo. Como se fossem vence-dores de uma contenda, dormem de maneira instantânea, extenuados pelo combate. Estendem-se atravessados diante da porta como obrigando-me a não sair, a prosseguir meu trabalho.
A cada momento acontece algo na casa. Do telefone distante mandam um recado. O que devem responder? Não estou. Logo mandam outro recado. O que devem responder? Estou.
Não estou. Estou. Estou. Não estou. Esta é a vida de um poeta para quem o lugar remoto de Isla Negra deixou de ser remoto.
Sempre me perguntam, especialmente os jornalistas, que obra estou escrevendo, que coisa estou fazendo. Esta pergunta sempre me surpreendeu pela superficialidade. Porque a verdade é que sempre estou fazendo a mesma coisa. Nunca deixei de fazer a mesma coisa. Poesia?
Só soube muito depois que o que eu escrevia se chamava poesia. Nunca tive mteresse pelas definições, pelos rótulos. Aborrecem-me mortalmente as discussões estéticas. Sem desfazer dos que as sustentam, apenas me sinto alheio tanto do ponto de vista da gênese como do part mortem da criação literária. “Que nada exterior se imponha a mim”, disse Walt Whitman. E a parafernália da literatura, com todos seus méritos, não deve substituir a pura criação.
Mudei de caderno várias vezes no ano. Esses cadernos andam por aí, amarrados com o fio verde da minha caligrafia. Enchi muitos deles, que foram se tornando livros, como se passassem de uma metamorfose para outra, da imobilidade para o movimento, de larvas para vagalumes.

A vida política veio como uma tempestade para me tirar de meu trabalho. Voltei uma vez mais para a multidão.
A multidão tem sido para mim a lição de minha vida. Posso chegar a ela com a inerente timidez do poeta, com o temor do tímido, mas – uma vez em seu seio – sinto-me transfigurado. Sou parte da maioria essencial, sou mais uma folha da grande árvore humana.
Solidão e multidão continuarão sendo deveres elementares do poeta de nosso tempo. Na solidão, minha vida se enriqueceu com o marulhar no litoral chileno. Intrigaram-me e me apaixonaram as águas que arremetiam e os penhascos fustigados, a multiplicação da vida oceânica, a formação impecável dos pássaros migradores, o esplendor da espuma marinha.
Mas aprendi muito mais da grande maré das vidas, da ternura vista em milhares de olhos que me olharam ao mesmo tempo. Esta mensagem pode não estar ao alcance de todos os poetas, mas quem a sentiu a guardará em seu coração, desenvolvendo-a em sua obra.
É memorável e dilacerador para o poeta ter encarnado para muitos homens, durante um minuto, a esperança.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Nenhum comentário:

Postar um comentário