sábado, 18 de dezembro de 2021

O som do rugido da onça | VI

Quando o velho avô, no centro da maloca, reunia os mais novos para que escutassem os ensinamentos, ele sempre começava dizendo o quanto a palavra era importante para o povo.
Sem palavra não poderíamos ser gente. Nosso povo recebeu a palavra de vida do criador, e isso nos diferencia dos bichos. A dos bichos é a outra palavra.
Quem não tem a palavra está morto, foi o que Iñe-e e os outros aprenderam. Os mais velhos mascavam a palavra nas folhas de hiibii, a coca, e os mais jovens esperavam que chegasse a sua vez de mascá-la e receber a linguagem do sumo das folhas. Porém, para Iñe-e, o certo é que esse tempo não chegaria nunca. Colocada em uma fila com os órfãos de povos inimigos, de nada adiantaram os pedidos e lamentos da mãe, a briga do avô em sua defesa. Iñe-e foi levada, e a mãe ficou para trás como um bicho tristonho, cabisbaixa e andando em círculos. O avô se entristeceu de morte. Tsittsi se embrenhou na floresta. Sabiam que nunca mais voltariam a ver a menina. Iñe-e se tornara presa do desconhecido.
A travessia do rio foi confusa e dolorosa, as lembranças da vida que ficara para trás deixava o corpo da menina como que dormente, e ela se perguntava se saberia como voltar para casa, porque de algum modo imaginava que conseguiria regressar. Mas, até lá, o que seria dela, sem a mãe, sem os parentes, sem a vida que conhecera? Seu coração se fechava como a noite se fecha sobre a floresta, trazendo medo, uma sensação sombria e aterradora de que ela se extraviara e que daquela vez não haveria uma onça para protegê-la até que estivesse novamente em segurança. Sem proteção, ela sentia que a escuridão a engoliria.
Duas das crianças mais novas choramingaram a viagem inteira. As demais, embora imersas em si mesmas, em silêncio, estavam visivelmente abaladas. Martius, por sua vez, parecia feliz. Ele as olhava como que maravilhado, e seus olhos claros pareciam verdadeiramente os de alguém que fosse bom, e esse era precisamente o engano, sabia a menina.
Como pode ser bom alguém que compra outras pessoas? Que as leva para longe dos seus parentes? Eram as perguntas que Iñe-e remoía dentro de si mesma.
Antes de todos aqueles eventos, é certo que ela não pensava nos inimigos e em seus filhos como iguais, e parecia correto o costume de serem vendidos ou trocados. Era a natureza da guerra. Apenas quando se viu entre eles, dentro de uma canoa cercada de estranhos, rio afora, é que começou a perceber que não havia afinal muitas coisas que os separassem; que se, afinal, dividiam o mesmo destino, outras coisas também poderiam aproximá-los. Estavam todos amedrontados, cansados, confusos. E seus pensamentos não eram exatos como o curso do rio antes da cheia; eram sentimentos que se depositavam uns sobre os outros como cascas de coquinhos amontoadas, coladas pelo grande espanto de que aquilo estivesse mesmo acontecendo.
Sem falar o nheengatu ou o português, apenas as línguas que aprenderam com suas mães, só conseguiam falar entre si as crianças pertencentes ao mesmo povo, de modo que nenhuma delas falava com os homens ou poderia compreendê-los para além dos gestos irritados com que eram tangidas. Iñe-e e um menino do povo juri não tinham com quem falar.
Tão logo chegaram à barra do rio Negro, a menina percebeu que havia outro chefe além de Martius. Spix era seu nome. De olhos claros e cabelo encaracolado, o homem tinha um aspecto quase infantil, mas a infância que restava nele era sem dúvida uma infância fragilizada, abalada por um sofrimento físico intermitente que o deixava todo opaco, como algo novo que se vira precocemente inutilizado. Spix, um homem claramente doente e combalido, tanto que ela pôde enxergá-lo morto antes mesmo que assim estivesse, recebeu-os com uma expressão de espanto e mesmo reprovação. Acariciou a cabeça do menorzinho de todos, um afeto que espantou as outras crianças. Iñe-e não se impressionou com nada, estava cansada e irritada.
Ambos os cientistas eram homens considerados muito sábios pelo povo dela, coisa que Iñe-e não sabia nem conseguiria entender. Entre os seus parentes era preciso ser bem mais velho e experiente para ser considerado alguém com ciência das coisas deste e de outros mundos, o mundo das plantas, dos bichos, dos espíritos e encantados. Aqueles dois, porém, não figuravam aos olhos dela como capazes de grande sabedoria. O juízo que fazia deles não a impediu de perceber que os dois eram gentis, diferentes da maioria dos brancos que conhecera até ali, estúpidos, violentos. Esse era um fato até desconcertante para ela. No entanto, apesar das amabilidades e dos modos suaves, Iñe-e tinha em mente que não passavam mesmo de inimigos impuros.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

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