quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

O retorno de Zorba

Assim que avistei a praia da linhita, parei bruscamente: havia luz no barracão.
Zorba deve ter chegado, pensei todo alegre.
Estive a ponto de correr, mas contive-me. “Preciso esconder minha alegria, disse para comigo. Preciso mostrar-me aborrecido, e começar enganando-o. mandei-o lá para negócios urgentes e ele jogou pela janela o dinheiro, andou com cantoras e chega com doze dias de atraso. É preciso tomar um ar furioso, é preciso...”
Pus-me a caminho a passos lentos, para dar tempo de me encolerizar. Esforçava-me para ficar irritado, franzia a testa, cerrava os punhos, fazia todos os gestos do homem irritado, para me zangar, mas nada conseguia. Ao contrário, mais diminuía a distancia, mais minha alegria aumentava.
Aproximei-me na ponta dos pés e olhei pela janelinha iluminada. Zorba estava de joelhos, acendera o fogo e fazia o café.
Meu coração amoleceu e gritei:
Zorba!
Abriu-se a porta de um só golpe. Zorba, descalço, sem camisa, jogou-se para fora. Esticou o pescoço na obscuridade, viu-me e abriu os braços, mas logo se conteve, deixando-os cair.
Contente por estar de novo com você, patrão! — disse num tom hesitante, imóvel diante de mim, o rosto exprimindo desgraça.
Procurei fazer uma voz forte:
Contente que você se tenha dado ao trabalho de voltar — disse eu, zombeteiro. — não se aproxime, você recende a sabonete.
Ah! Se soubesse como me lavei, patrão — murmurou. — eu me poli, raspei a maldita pele antes de me apresentar a você. Mas este cheiro infernal... mas que mal pode ele fazer? Não é a primeira vez, ele vai desaparecer, por bem ou por mal.
Vamos entrar — disse eu, prestes a estourar numa gargalhada.
Entramos. O barracão recendia a perfume, a pó-de-arroz, a sabonete, a mulher.
Diga lá, que coisas são estas, hein? — perguntei, vendo, em cima de um caixote, bolsas de mulher, sabonetes, meias, uma sombrinha vermelha e um minúsculo frasco de perfume.
Presentes — murmurou Zorba de cabeça baixa.
Presentes? — fiz eu, esforçando-me para dar a voz um tom zangado. — presentes?
Presentes, patrão, não se aborreça, para a pobre Bubulina. A Páscoa vem aí, coitada dela...
Ainda uma vez consegui conter minha vontade de rir.
O mais importante, você não lhe trouxe... — disse.
O quê?
Mas vejamos! As coroas de casamento!
Contei-lhe então a história que tinha forjado para a sereia enamorada.
Zorba coçou a cabeça e refletiu um instante.
Você fez mal, patrão — disse enfim, — fez mal, com o devido respeito. Brincadeiras como essa, patrão... a mulher é uma criatura fraca, delicada, quantas vezes é preciso dizer? Um vaso de porcelana a gente segura nele com cuidado.
Senti-me envergonhado. Eu também estava arrependido, mas era muito tarde. Mudei a conversa.
E o cabo? — perguntei. — e as ferramentas?
Trouxe tudo, tudo, não se atormente! “O pastel está inteiro e o cão satisfeito.” Teleférico, Lola, Bubulina, patrão... está tudo em regra.
Tirou o brik do fogo, encheu-me a xícara, deu-me biscoitos de gergelim que trouxera, e sálvia com mel que ele sabia ser o meu fraco.
Trouxe-lhe de presente uma caixa grande de sálvia! — disse-me com ternura. — não me esqueci de você. Olhe, comprei também um saquinho de amendoim para o papagaio. Não me esqueci de ninguém. Você vê, patrão, que eu estou com a cabeça bem no lugar.
Comi os biscoitos e a salva, bebi o café, sentado no chão. Zorba degustava também o seu café, fumava, olhava para mim e seus olhos me fascinavam como os de uma serpente.
Resolveu o problema que o preocupava, velho sacripanta? — perguntei-lhe adoçando a voz.
Que problema, patrão?
Se a mulher é ou não um ser humano.
Ora! Isso acabou! — respondeu Zorba, agitando a enorme pata. — ela é também um ser humano como nós... e pior! Quando vê a nossa carteira, tem vertigem, se gruda na gente, perde a liberdade — e fica encantada por perdê-la — porque, você vê, por trás está a carteira brilhando. Mas, bem depressa… Deixe isso para lá, patrão!
Levantou-se e jogou o cigarro pela janela.
Agora, falemos como homens — disse ele. — a semana Santa está chegando, temos o cabo, é tempo de subir ao mosteiro, conversar com aqueles toucinhos gordos e assinar os contratos da floresta... antes que eles vejam o teleférico e lhes suba a cabeça, compreende? O tempo passa, patrão, não é coisa que se faça, ficar aí flanando; é preciso colher já alguma coisa, é preciso que os navios venham carregar, para compensar a despesa... esta viagem a Cândia custou os tubos. O Diabo, como você vê...
Calou-se. Tive pena dele. Era como uma criança que, tendo feito tolices e não sabendo como repará-las, treme todo o coraçãozinho.
Que vergonha para você, protestei comigo, então se deixa tremer de medo uma alma como essa? Acorde, onde encontrará algum dia outro Zorba? Acorde, peque na esponja e apague tudo!
Zorba, estourei eu, — deixe pra lá o Diabo, não precisamos dele! Coisas passadas, coisas esquecidas. Pega o santuri!
Abriu os braços, como se quisesse de novo abraçar-me. Mas tornou a fechá-lo, ainda hesitante.
Numa pernada, chegou até a parede. Ficou na ponta dos pés e apanhou o santuri. Ao se aproximar da luz da lamparina, olhei para seus cabelos: estavam pretos como graxa.
Desembuche lá, seu velhaco — falei, — que cabelos são esses? Onde você foi buscar isso?
Zorba começou a rir.
Pintei-os, patrão, não se aflija, eu os pintei, os traidores...
Por quê?
Por amor-próprio, juro! Um dia, passeava com Lola de braços dados. Isto é, não... espere, só segurava as pontas dos dedos! Pois passa um maldito garoto, um tiquinho de guri, e começa a nos chatear. “Eh! Velho, grita o filho da mãe, eh! Velho! Onde é que você vai levar sua neta?” — Lola, você compreende, ficou envergonhada e eu também. E para ela não ter mais vergonha de mim, fui no mesmo dia ao barbeiro para tingir a cabeleira.
Pus-me a rir. Zorba encarou-me, sério.
Você acha engraçado, patrão? Entretanto, preste bem atenção que coisa gozada a gente é. Depois desse dia virei homem. Parecia que eu tinha os cabelos pretos de verdade, eu mesmo acreditava nisso — você vê, a gente se esquece facilmente o que não convém — e eu lhe juro que até as minhas forças aumentaram. Lola também percebeu isso. Lembra a pontada que eu tinha aqui nos rins? Sumiu, você nem acredita. Essas coisas, você vê, seus livrecos não contam...
Teve um riso irônico, mas logo se arrependeu:
Desculpe, patrão. O único livro que eu li na minha vida, foi Simbad o
Marinheiro, e para o proveito que dele tirei...
Pegou o santuri, despiu-o ternamente, lentamente.
Vamos lá para fora — disse. — aqui, entre quatro paredes, o santuri não fica à vontade. É um animal selvagem, precisa de espaço.
Saímos, as estrelas cintilavam. A Via-Láctea corria de uma ponta a outra no céu. O mar fervia.
Sentamos na areia. As ondas vinham lamber-nos a planta dos pés.
Quando se está na miséria a gente precisa se distrair — disse Zorba. — como é então! Ela pensa que vai fazer a gente se entregar?
Venha cá, meu santuri.
Uma ária macedônica, da sua terra, Zorba — disse eu. Cantar um versinho que me ensinaram em Cândia. Desde que o aprendi a minha vida mudou.
Refletiu um instante:
Não, ela não mudou, mas agora compreendo que eu tinha razão.
Pousou os dedos os dedos grossos no santuri e aprumou o pescoço. Sua voz selvagem, rouca, dolorosa, elevou-se:

Quando tomares um decisão, não tenhas medo, para a frente!
Solta a rédea a tua juventude, não a poupes.”

Dissiparam-se as preocupações, os aborrecimentos fugiram, a alma atingiu seu próprio cume. Lola, a linhita, o teleférico, a “eternidade”, as pequenas e as grandes confusões, tudo isso se transformou em fumaça azul que se dissipou nos ares, restando apenas um pássaro de aço, a alma humana que cantava.
Dou-lhe tudo de presente, Zorba! — exclamei, quando terminou a famosa canção; — tudo o que você fez, dou-lhe de presente: a cantora, os cabelos pintados, o dinheiro que gastou; tudo! Tudo! Cante mais.
Esticou de novo o pescoço descarnado:

Coragem, que Diabo, o que vier, virá!
Ou perderás o golpe ou então ganharás.”

Uns dez trabalhadores que dormiam perto da mina ouviram as canções. Levantaram-se, desceram furtivamente, e agacharam-se perto de nós. Ouviram sua música preferida e sentiam formigar as pernas.
E bruscamente, incapazes de se conterem por mais tempo, sugiram na obscuridade, seminus, descabelados, com suas calças bufantes, fizeram círculo em volta de Zorba e do santuri e se puseram a dançar, na areia grossa.
Empolgado, eu os olhava em silêncio:
Ei-lo, pensei, o verdadeiro filho que eu procurava. Não quero nenhum outro.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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