sábado, 18 de dezembro de 2021

O rebento

Até na mania de pôr apelidos nas pessoas, Ángel Arturo se parece com o Avô; foi Arturo quem o batizou assim, do mesmo jeito que fez com o gato, ambos com o mesmo nome. É uma satisfação pensar que o Avô sofreu na própria carne o que sofreram outros por culpa dele. Em mim, pôs Rascunho, no meu irmão, Trapo, e em minha cunhada, Empregadinha, para humilhá-la, mas Ángel Arturo o marcou para sempre com o nome Avô. Este, de algum modo, projetou sobre o rebento inocente traços, expressões, personalidade: foi a última e a mais perfeita vingança.
Até sermos adultos, meu irmão e eu vivemos na casa da Calle Tacuarí, dividindo o mesmo quarto. A casa era enorme, mas, segundo a opinião do Avô, não convinha que ocupássemos dormitórios diferentes. Era preciso viver no desconforto para virar homem. Minha cama, detalhe inexplicável, ficava encostada no armário. Nosso quarto ainda por cima se transformava, durante a semana, em oficina de costura para uma cigana que reformava camisas esgarçadas para nós dois, e, aos domingos, em depósito de empanadas e salgadinhos (que a cozinheira, por ordem do Avô, não nos deixava provar), dados de presente a duas ou três senhoras da vizinhança.
Para mal dos meus pecados, eu era canhoto. Quando tomava o lápis com a mão esquerda para escrever ou segurava a faca para cortar carne na hora das refeições, o Avô me dava uma bofetada e me mandava para a cama sem comer. Cheguei a perder dois dentes graças a esses tabefes e, por causa dessa penitência, que tanto me debilitou, no verão tremia de frio sob agasalhos de inverno. Para me curar, o Avô me deixou passar uma noite inteira debaixo de chuva, de camisolão, descalço sobre o piso frio. Se não morri, é porque Deus é grande ou porque somos mais fortes do que pensamos.
Só depois do casamento de Arturo (meu irmão), ocupamos, ele e eu, cômodos diferentes. Por ironia do destino, foi minha infelicidade que me permitiu alcançar o que tanto tinha esperado: um quarto próprio. Arturo ocupou um quarto nos fundos mais inóspitos da casa, com sua mulher (meu sangue gela quando digo isso, como se não tivesse me acostumado); e eu, outro, que com suas varandas feitas de estuque e mármore dava para a rua. Por razões insondáveis, não era permitido entrar em um banheiro que ficava ao lado do meu dormitório, de modo que, para ir ao sanitário, eu tinha que atravessar dois pátios. Foi por causa dessas manias, para não congelar no inverno ou para não passar urinando ou ensaboando as orelhas, as mãos ou os pés na torneira perto do quarto do meu irmão casado, que queimei dois pés de jasmim que ninguém regava, a não ser eu.
Mas agora voltarei a recordar minha infância, que se não foi alegre, foi menos sombria que minha adolescência. Por muito tempo todo mundo acreditava que o Avô era o porteiro da casa. Aos sete anos, eu mesmo achava isso. Numa entrada luxuosa, com porta intermediária, onde brilhavam vitrais azuis como safiras e vermelhos como rubis, aquele homem, sentado em uma cadeira vienense, sempre lendo algum jornal, em mangas de camisa e calças risca de giz surradas, não podia ser outro senão o porteiro. O Avô vivia sentado naquele saguão para impedir que saíssemos ou para fiscalizar o motivo de nossa saída. O pior de tudo é que dormia de olhos abertos: mesmo roncando, mergulhado no mais profundo dos sonos, via o que fazíamos ou o que faziam as moscas ao seu redor. Ludibriá-lo era difícil, para não dizer impossível. Às vezes fugíamos pela varanda. Um dia meu irmão recolheu da rua um cachorro perdido e, para não enfrentar responsabilidades, me deu de presente. Atrás do armário foi onde o escondemos. Seus latidos logo me delataram. O Avô, com um só balaço, estourou-lhe os miolos, para provar sua pontaria e minha fraqueza. Não contente com isso, me obrigou a passar a língua pelo lugar onde o cachorro tinha dormido.
Cães no canil, nas jaulas ou no mundo de lá — costumava dizer.
Mas no campo, quando saía a cavalo, uma matilha, que ele levava a pontapés ou a chicotadas, o acompanhava. Outro dia, ao saltar da varanda para a calçada durante a sesta, torci o tornozelo. Da cadeira onde estava, o Avô me avistou. Não falou nada, mas na hora do jantar, me fez subir pela escada de madeira que leva ao sótão para pegar tijolos amontoados, até que desmaiei. Para que ele amontoava tijolos?
Não se notava a riqueza da minha família a não ser em detalhes incongruentes: em abóbadas, com colunas de mármore e estátuas, em adegas bem sortidas, em legados que iam passando de geração em geração, em álbuns de couro em relevo com célebres retratos de família; em um sem-fim de criados, todos aposentados, que de quando em quando traziam de presente ovos frescos, laranjas, frangos ou junquilhos, e na casa de campo de Azul, cujos potreiros adornavam, em fotografias, as paredes do pátio dos fundos, onde sempre havia gaiolas com galinhas, canários, de que nós tínhamos que cuidar, e mesas de ferro com plantas de folhas amareladas, sempre à beira da morte, como se pedissem ajuda.
Quando eu quis estudar francês, o Avô queimou meus livros, porque para ele todo livro francês era indecente.
Meu irmão e eu não gostávamos do trabalho no campo. Aos quinze anos, tivemos que abandonar a cidade para nos enterrarmos naquela fazenda de Azul. O Avô nos obrigou a trabalhar junto com os peões, o que teria sido divertido, não fosse seu regozijo em nos castigar por sermos ignorantes ou lentos demais para cumprir as tarefas.
Nunca ganhamos roupas novas: se ganhávamos, vinham de liquidações das piores lojas: ficavam apertadas ou muito largas e eram daquela cor de café com leite que tanto nos deprimia; éramos obrigados a usar os sapatos velhos do Avô, prontos para ir para o lixo, com a ponta preenchida com papel. Tomar café também não nos era permitido. Fumar? Só se fosse no banheiro, fechados à chave, até que o Avô nos tomou a chave. Mulheres? Conseguíamos sempre as piores e, no melhor dos casos, podíamos estar com elas por cinco minutos. Bailes, teatros, diversões, amigos, tudo estava proibido. Ninguém vai acreditar: jamais fui a um corso de Carnaval nem tive uma máscara nas mãos. Em Buenos Aires, vivíamos como num claustro, baldeando pátios, esfregando pisos duas vezes por dia; na fazenda, como num deserto, sem água para tomar banho e sem luz para estudar, comendo carne de ovelha, bolachas e nada mais.
Se você tem tantos dentes sem cáries, é por não comer doces — achava a cigana, que não tinha nenhum.
O Avô não queria que nos casássemos, e se tivesse permitido, nossa vestimenta teria sido um sério impedimento. Ficava doente de raiva por não conseguir adivinhar nossos segredos de garotos. Quem não tem namorada naquela idade? O Avô se escondeu debaixo da minha cama uma noite, para escutar meu irmão e eu conversando. Falávamos de Leticia. Será que foi a surdez ou a maldade que o fez pensar que ela era amante do meu irmão? Nunca saberei. Ao se mexer para não ser visto, um chumaço de sua barba se enganchou numa dobradiça do armário, onde mantinha apoiada a cabeça, e soltou um grunhido que, naquele momento de intimidade, nos aterrorizou. Quando o vi de quatro, como um animal qualquer, não perdi o medo dele, mas sim o respeito, para sempre.
Ameaçado pelo juiz e pelos pais de Leticia, que ficou grávida em uma de nossas mais inesquecíveis excursões a Palermo, em um ônibus panorâmico, meu irmão teve que se casar. Ninguém quis escutar justificativas. Por um estranho acaso, Leticia não confessou que era eu o pai do filho que ia nascer. Fiquei solteiro. Sofri essa paulada como uma das tantas fatalidades da minha vida. Cheguei a achar natural que Leticia dormisse com meu irmão? Natural de jeito nenhum, mas sim obrigatório e inevitável.
Nos primeiros tempos de minha desgraça, eu lhe deixava, sob o capacho da porta, cartas acaloradas, ou esperava que ela saísse de seu quarto para lhe dirigir duas ou três palavras, mas o terror de ser descoberto e Ángel Arturo, que nos espiava, paralisaram meus ímpetos.
Quando Ángel Arturo nasceu, oh, vãs ilusões, achávamos que tudo ia mudar. Como lhe faltavam a barba e os óculos, não percebemos que era a cara do Avô. No berço azul-celeste, o choro do pequenino abrandou um pouquinho nossos corações. Foi uma ilusão convencional. Mesmo assim mimávamos o menino, o afagávamos. Quando fez três anos, já era um rapazinho. Fotografaram-no nos braços do Avô.
Na casa, tudo era para Ángel Arturo. O Avô não lhe negava nada, nem o telefone, que não nos deixava usar por mais de cinco minutos, às oito da manhã, nem o banheiro trancado, nem a luz elétrica dos veladores, que não nos permitia acender depois da meia-noite. Se Ángel Arturo pedia meu relógio ou minha caneta-tinteiro para brincar, o Avô me obrigava a dá-los. Perdi, assim, relógio e caneta-tinteiro. Quem me dará outros?
O revólver, descarregado, com cabo de marfim, que o Avô guardava na gaveta da escrivaninha, também serviu de brinquedo para Ángel Arturo. A fascinação que o revólver exerceu sobre ele o fez deixar de lado todos os outros objetos. Foi uma alegria naqueles dias escuros.
Quando vimos pela primeira vez Ángel Arturo brincando com o revólver, nós três, meu irmão, Leticia e eu, nos olhamos, certamente pensando a mesma coisa. Sorrimos. Nenhum sorriso foi tão compartilhado nem tão eloquente.
No dia seguinte, um de nós comprou na loja de brinquedos um revólver de mentira (não gastávamos com brinquedos, mas nesse revólver gastamos uma fortuna): assim fomos familiarizando Ángel Arturo com a arma, fazendo-o apontá-la contra nós.
Quando Ángel Arturo atacou o Avô com o revólver verdadeiro, de um modo magistral (tão inusitado para sua idade), este riu como se lhe fizessem cosquinhas. Por azar, por maior que fosse a habilidade do menino em apontar e apertar o gatilho, o revólver estava descarregado.
Corríamos o risco de morrer, todos nós, mas o que era esse insignificante perigo comparado à nossa atual miséria? Tivemos um momento feliz, de união. Tínhamos que carregar o revólver: Leticia prometeu fazer isso antes da hora em que neto e avô brincavam de mocinho e bandido. Leticia cumpriu a palavra.
No quarto frio (estávamos em julho), tiritando, sem nos olharmos, esperamos o disparo enquanto esfregávamos o piso, pois a cisterna do pátio, junto com toda Buenos Aires, tinha sido inundada. Aquilo demorou mais que nossa vida inteira. Mas até mesmo o que mais tarda um dia chega! Ouvimos o disparo. Foi um momento feliz, ao menos para mim.
Agora Ángel Arturo tomou posse desta casa e nossa vingança talvez não seja outra senão a vingança do Avô. Nunca pude viver com Leticia como marido e mulher. Ángel Arturo, com sua enorme cabeça grudada na porta intermediária, assistiu, vitorioso, às nossas desventuras e ao fim do nosso amor. Por isso, e desde então, o chamamos de Avô.

Silvina Ocampo, in A fúria

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