quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

O criador de abelhas (trecho)

No dia de S. Valentim de 1989, último dia da sua vida, a lendária cantora pop Vina Apsara acordou a soluçar de um sonho sobre um sacrifício humano em que ela era a vítima. Homens de tronco nu, todos parecidos com o ator Christopher Plummer, tinham-na agarrado pelos pulsos e pelos tornozelos. O corpo dela estava esparramado, nu, e contorcia-se sobre uma laje polida que tinha gravada a imagem do pássaro-serpente Quetzalcoatl. A boca aberta da serpente emplumada era o contorno de um buraco negro escavado na pedra e embora ela tivesse igualmente a boca escancarada para gritar, os únicos ruídos que ela ouvia eram os plops dos flashes; mas antes que pudessem rasgar-lhe a garganta, antes que o seu sangue vivo fosse borbulhar na terrível taça, Vina acordou ao meio-dia na cidade de Guadalajara, no México, numa cama de hotel ao lado de um desconhecido nas vascas da agonia, um mestiço completamente nu, de vinte e poucos anos, identificado pela exaustiva cobertura de imprensa que seguiu a catástrofe como Raúl Páramo, o playboy herdeiro de um famoso barão da construção civil que, entre muitas outras coisas, era dono do hotel. Vina transpirara abundantemente e os lençóis encharcados tresandavam à tristeza sem sentido daquele encontro noturno. Raúl Páramo estava inconsciente, tinha os lábios lívidos e o seu corpo era periodicamente sacudido por espasmos que ela reconheceu como sendo idênticos às suas próprias convulsões durante o sonho. Passados momentos ele começou a emitir uns ruídos medonhos pela traqueia, como se alguém estivesse a degolá-lo, como se o seu sangue estivesse a jorrar do sorriso escarlate de uma ferida invisível para uma taça irreal. Vina, em pânico, saltou da cama e apanhou as suas roupas, as calças de cabedal e o top de lantejoulas douradas com que acabara o seu número na noite anterior, no palco do Centro de Convenções da cidade. Completamente desesperada, entregara-se desdenhosamente àquele João-Ninguém, àquele rapaz com menos de metade da sua idade, escolhera-o quase ao acaso entre a chusma que enchia os corredores dos camarotes, os lagartos de átrio de hotel, os pretendentes com o seu ramo de flores, os capitães de indústria, a aristotrampa, os barões da droga, os príncipes da tequila, todos com limousines e champanhe e cocaína e talvez até diamantes para oferecer à estrela da noite.
O rapaz tinha-se apresentado, com muitos rapapés e bajulações, mas ela não estava interessada em saber o nome dele, nem o montante da sua conta no banco. Colhera-o como se fosse uma flor para pôr entre os dentes, mandara-o vir com o seu apetite feroz, começando a devorá-lo assim que se fechara a porta da limousine e antes que o motorista tivesse tempo de fazer subir o vidro que garantia a privacidade dos passageiros. Mais tarde o motorista, afogado em tequila pelos jornalistas, falara num murmúrio reverente dela e do seu corpo nu, daquela sua nudez invasora e predatória que era como um milagre, quem havia de dizer que ela já ia nos quarenta e tal, parecia que Alguém lá de Cima a queria deixar ficar sempre na mesma. Eu faria tudo por aquela mulher, gemia o motorista, iria a duzentos quilômetros à hora se ela quisesse andar depressa, teria ido contra um muro de betão, se fosse seu desejo morrer.
Só quando se achou no corredor do undécimo andar do hotel, cambaleante e seminua, tropeçando nos jornais da manhã ainda não recolhidos pelos hóspedes com cabeçalhos gritantes acerca dos ensaios nucleares dos franceses no Pacífico e dos tumultos na província de Chiapas cuja tinta fresca lhe sujou os pés nus, só então é que ela percebeu que os aposentos que abandonara eram a sua própria suite no hotel e que fechara a porta deixando a chave dentro e que a sua sorte, naquele momento de máxima vulnerabilidade, fora ter esbarrado em mim, o senhor Umeed Merchant, fotógrafo, mais conhecido como “Rai”, seu amigo — por assim dizer — dos velhos tempos de Bombaim, e o único profissional do mundo que não sonharia fotografá-la naquele preparo deliciosamente escandaloso, toda ela momentaneamente desfocada, e — pior que tudo — aparentando a idade que tinha, eu, o único caçador de imagens que nunca lhe apanharia aquele ar acossado e gasto, aquele desamparo, aqueles olhos inchados e olheirentos, aquela cascata emaranhada de cabelos tingidos de vermelho, arames tremelicantes no alto da cabeça como o penacho de um pica-pau, aquela lindíssima boca trémula e hesitante, de bordos já sulcados pelos minúsculos fiordes dos anos implacáveis, o próprio arquétipo da deusa selvagem do rock a caminho da decadência. Ela decidira tornar-se ruiva para aquela tournée porque, aos quarenta e quatro anos, resolvera começar de novo, iniciar uma carreira a solo sem Ele e pela primeira vez há muitos anos viajara sozinha sem Ormus: não era pois de admirar que se sentisse desorientada e perdida a maior parte do tempo. E muito só. Há que admiti-lo: na vida pública como na privada, a verdade é que quando não estava com ele, estivesse com quem estivesse, ela estava só.
Desorientação: perda dó Oriente. E do seu sol, Ormus Cama.
Não fora por pura sorte que ela chocara comigo. Eu andava sempre por perto. Sempre no seu encalço, sempre à espera que ela me chamasse. Se ela quisesse, haveria dezenas de outros como eu, centenas, milhares. Mas estou convencido de que só havia eu. E a última vez que ela pediu auxílio, não pude dar-lho e ela morreu Acabou a meio da sua vida, foi uma canção incompleta abandonada no meio da ponte, privada do direito de continuar o poema, de encontrar a rima final.

*

Duas horas após eu a ter salvo do abismo daquele corredor do hotel, um helicóptero levava-nos até Tequila, onde Don Angel Cruz, proprietário de uma das maiores plantações de piteira azul e da célebre destilaria Angel, um cavalheiro célebre pela amplitude da sua doce voz de contratenor, pela rotundidade da sua barriga e pela sua pródiga hospitalidade, tinha organizado um banquete em sua honra. Entretanto, o jovem playboy amante de Vina fora conduzido ao hospital, fulminado por uma série de ataques produzidos pelo abuso de droga, tão graves que acabaram por ser fatais; e, devido ao que aconteceu a Vina, durante os dias seguintes o mundo teve direito a análises detalhadas do sangue do morto, e do conteúdo do seu estômago, intestinos, escroto, cavidades oculares, do seu apêndice, do cabelo, em suma, de tudo menos do cérebro cujo conteúdo foi julgado sem interesse, e fora completamente alterado pela droga a tal ponto que ninguém foi capaz de entender as suas últimas palavras, pronunciadas durante o delírio final. Contudo, uns dias mais tarde, quando a informação já tinha circulado na Internet, um amador de ficção fantasista designado por <elrond@rivendel.com> proveniente do bairro Castro de São Francisco explicava que Raúl Páramo estivera a falar orcish, o linguajar infernal inventado pelo escritor Tolkien para uso da criadagem de Sauron, o Senhor das Trevas: Ash nazg durbatulûk, ash nazg gimbatul, agsh thrakatulûk, agsh burzum-ishi krimpatul. Logo a seguir, boatos de práticas satânicas, ou talvez saurônicas, espalharam-se imparavelmente por toda a Net. Lançou-se a ideia de que o amante mestiço fora adorador do Diabo, um criado-de-sangue do submundo e que tinha dado a Vina Apsara um precioso mas maléfico anel que provocara a subsequente catástrofe e a arrastara para o Inferno. Por essa altura Vina já se estava transformando em mito, tornando-se num vaso de eleição onde qualquer idiota podia colocar as suas idiotices ou, digamos, um espelho cultural: podemos perceber melhor a natureza dessa cultura se dissermos que o seu espelho mais fiel seria um cadáver.
Um anel para os governar a todos, um anel para os encontrar, um anel para os prender a todos e encerrá-los nas trevas. Sentei-me ao lado de Vina Apsara no helicóptero para Tequila, e não vi nos seus dedos nenhum anel a não ser a pedra lunar que ela nunca tirava, a sua ligação com Ormus, o preito do seu amor.
Vina tinha mandado toda a sua equipa pela estrada, escolhendo-me a mim como único companheiro da viagem aérea, “entre todos vocês, seus sacanas, ele é o único em quem posso confiar”, rosnou ela. A equipa tinha arrancado uma hora à nossa frente, todo aquele maldito jardim zoológico dela, o seu reptiliano chefe de tournée, a hiena do seu assistente particular, os gorilas da segurança, o pavão do cabeleireiro, o dragão da publicidade. Mas quando o helicóptero sobrevoava o cortejo dos automóveis, a sombra que a tinha envolvido desde a nossa partida pareceu levantar-se e ela ordenou ao piloto que fizesse uma série de passagens por sobre os carros, cada vez mais baixo. Vi os olhos do homem esgazeados de pavor, as pupilas eram como pontas de alfinetes mas, tal como todos nós, estava completamente enfeitiçado por ela e cumpriu as ordens. Era eu que gritava “Sobe, sobe!” no microfone incorporado no capacete que nos protegia a cabeça enquanto o riso dela estralejava aos meus ouvidos como uma porta a bater ao vento, mas quando me virei para lhe dizer que tinha medo vi que ela estava a chorar. A polícia fora surpreendentemente amável com ela quando chegara ao local da overdose de Raúl Páramo, contentando-se em avisá-la de que poderia vir ela própria a ser objecto de um inquérito. Os seus advogados tinham intervindo nessa altura para terminar a conversa, mas desde então ela parecia tensa e instável, com um brilho excessivo como uma lâmpada antes de explodir, como uma supernova, como o universo.
Por fim ultrapassamos os veículos e voamos sobre colinas e vales cobertos do azul acinzentado das plantações de cactos; mudando de novo de disposição, ela começou a falar e a rir nervosamente para o seu microfone, insistindo em que estávamos a levá-la para um lugar que não existia, um sítio imaginário, um país das maravilhas: como era possível haver um sítio chamado Tequila? “é o mesmo que dizer que o whisky vem de Whisky ou o gin é fabricado em Gin”, gritava ela, “será o vodka algum rio da Rússia? Será em Rum que se fabrica o rum?” E depois, de novo sombria, a voz dela ficou quase inaudível com o ruído dos rotores: “e a heroína vem dos heróis e o crack é a trombeta do Juízo Final.” É possível que eu estivesse a assistir ao nascer de uma nova canção. Mais tarde, interrogados acerca daquela viagem de helicóptero, tanto o piloto como o co-piloto se recusaram, por pura lealdade, a divulgar quaisquer detalhes daquele monólogo em que ela baloiçava a todo o momento entre a exaltação e o desespero. “Estava muito animada”, disseram eles, “além de que falava em inglês, por isso não percebemos nada”.
Em inglês, mas não só. Como só estava eu, ela podia tagarelar no calão mais popular de Bombaim, Mumbai ki kachrapati baat-cheet, em que uma frase pode começar numa língua, continuar numa segunda e até numa terceira e voltar de novo à primeira. Chamávamos-lhe Hug-me, do seu acrônimo: Hindi-Urdu-Gujarati-Marathi-English. Os naturais de Bombaim da minha espécie eram gente que falava cinco línguas mal e nenhuma bem.
Separada de Ormus Cama naquela tournée, Vina descobrira as limitações tanto verbais como musicais do seu próprio material. Tinha escrito novas canções para pôr em relevo a sua voz celestial de múltiplas oitavas, que lembrava a de Yma Sumac, que era como que uma escada até ao firmamento e que Vina afirmava agora não ter sido suficientemente explorada pela música de Ormus; mas nesta tournée, tanto em Buenos Aires como em São Paulo, na Cidade do México ou em Guadalajara ouvira apenas umas mornas reações do público a essas canções, apesar da presença de três bateristas brasileiros loucos e da parelha de guitarristas argentinos que travavam um duelo tão a sério que cada número ameaçava acabar com uma luta à navalhada. Nem sequer o artista convidado, a velha super-vedete mexicana, Chico Estefan conseguira entusiasmar as audiências; pelo contrário, a sua face ultraplastificada, o seu sorriso de dentes falsos apenas chamava a atenção para a juventude em declínio da própria Vina, cruelmente refletida no espelho da média de idade dos espectadores: a malta jovem não tinha comparecido, pelo menos em número suficiente, nem nada que se parecesse.
Mas rugidos de aplausos saudavam cada um dos grandes sucessos do catálogo mais antigo de V.T.O. e a verdade inegável é que durante esses números a loucura dos batuqueiros tornava-se divina, os duelos dos guitarristas atingiam o sublime e até o velho devasso do Estefan parecia regressar das verdes pastagens do Além. Vina Apsara cantou palavras e músicas de Ormus Cama e, de repente, a multidão minoritária dos jovens começou aos saltos e pareceu endoidecer subitamente, milhares e milhares de mãos a moverem-se em uníssono, formando em linguagem de surdos-mudos o nome da grande banda, ao compasso dos seus gritos atroadores.
V!T!O!
V!T!O!
Volta para ele, diziam os gritos. Precisamos... Precisamos de vocês juntos. Não deitem fora o vosso amor. Não se separem, queremos que façam as pazes.
VTO: “Vertical take off”. Ou “Vina to Ormus”. Or “We to”. Traduzido em Hug-me como “V-TO”. Ou uma referência ao foguetão V2. Ou V para “paz”, o que todos desejavam, e T para “two”, sendo eles os dois e O para Love, o seu amor. Ou uma homenagem a um dos grandes edifícios da cidade natal de Ormus: A Orquestra Terminus. Ou um nome inventado há muito, quando Vina vira um reclame a néon relativo a um refresco de outros tempos, Vimto, que só tinha três letras iluminadas, Vimto sem im.
V...T...Ohh
V...T...Ohh
Dois gritos e um suspiro. O orgasmo do passado, cujo anel ela trazia no dedo. Ao qual ela sabia que tinha de voltar, apesar de mim.

Salman Rushdie, in O Chão Que Ela Pisa

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