Eram dezoito ou dezenove horas em uma
noite de início de primavera em 1968. Eu estava sentada no piso de
vinil frio de um estúdio de som no Sunset Boulevard, assistindo a
uma banda chamada The Doors gravar uma faixa instrumental. De modo
geral, minha atenção se voltava o mínimo possível para bandas de
rock (já tinha ouvido falar de ácido como uma fase de transição e
também de Maharishi e de Amor Universal. Depois de um tempo, tudo
isso soava como céu de marmelada para mim), mas The Doors era
diferente. O grupo me interessava. Não parecia convencido de que o
amor era irmandade e Kama Sutra. A música deles insistia que amor
era sexo e sexo era morte, e aí salvação secular. The Doors era o
Norman Mailer da parada de sucessos, missionário do sexo
apocalíptico. Break on through, a letra deles exortava, e
light my fire, assim como:
Come on baby, gonna take a little ride
Goin’ down by the ocean side
Gonna get real close
Get real tight
Baby gonna drown tonight
Goin’ down, down, down.
Naquela noite, em 1968, o grupo estava
reunido em uma simbiose inquieta para produzir seu terceiro álbum.
Estava frio demais no estúdio, as luzes eram muito fortes e havia um
monte de fios e botões do circuito eletrônico piscante e sinistro
com o qual os músicos vivem tão facilmente. Eram três dos quatro
Doors. Havia um baixista emprestado de uma banda chamada Clear Light.
Havia o produtor, o engenheiro de som, o empresário, umas garotas e
um husky-siberiano chamado Nikki, com um olho cinzento e outro
dourado. Havia sacos de papel cheios até a metade com ovos cozidos,
fígado de galinha, hambúrgueres e garrafas vazias de suco de maçã
e rosé californiano. Havia tudo e todos de que a banda precisava
para lapidar o restante daquele terceiro álbum, exceto por um
detalhe: o quarto Door, o vocalista Jim Morrison, um ex-estudante da
UCLA de 24 anos que usava calça preta de vinil sem cueca e tendia a
sugerir uma gama de possibilidades para além de um pacto suicida.
Foi Morrison quem descreveu a banda como “política e erótica”.
Foi Morrison quem definiu os interesses do grupo como “qualquer
coisa sobre revolta, desordem, caos, sobre a atividade que aparenta
não ter sentido”. Foi Morrison quem foi detido em Miami em
dezembro de 1967 por uma apresentação “indecente”. Foi Morrison
quem escreveu a maior parte das letras do The Doors, cujo caráter
peculiar estava em retratar uma paranoia ambígua ou uma insistência
bastante inequívoca no amor-morte como ápice. E era Morrison que
estava faltando. Eram Ray Manzarek, Robby Krieger e John Densmore que
faziam o som do The Doors ser o que era, e talvez fossem Manzarek,
Krieger e Densmore que faziam dezessete de vinte entrevistados da
American Bandstand preferir o The Doors a todas as outras
bandas, mas foi Morrison que chegou até ali com sua calça preta de
vinil sem cueca e lançou a ideia, e era por Morrison que estavam
esperando agora.
“Ei, olhem só”, disse o engenheiro.
“Estava escutando rádio no caminho até aqui. Tocaram três
músicas do The Doors. Primeiro ‘Black Door Man’, depois
‘Love Me Two Times’ e aí ‘Light My Fire’.”
“Eu ouvi”, murmurou Densmore. “Eu
ouvi.”
“E aí, qual é o problema de alguém
tocar três das nossas músicas?”
“O cara dedicou à família dele.”
“É? À família?”
“À família. Bem idiota.”
Ray Manzarek estava curvado sobre um
teclado Gibson.
“Será que o Morrison vai
voltar?”, perguntou para ninguém em particular.
Ninguém respondeu.
“Então a gente pode fazer alguns
vocais?”, perguntou Manzarek.
O produtor estava trabalhando com a fita
da faixa instrumental que tinham acabado de gravar.
“Espero que sim”, respondeu ele sem
olhar para cima.
“É”, disse Manzarek. “Eu também.”
Minha perna estava dormente, mas não me
levantei. O clima tenso deixava todos no estúdio meio catatônicos.
O produtor tocou a faixa instrumental de novo. O engenheiro disse que
queria fazer os exercícios de respiração dele. Manzarek comeu um
ovo cozido.
“Tennyson fez um mantra com o próprio
nome”, disse ele para o engenheiro. “Não sei se dizia ‘Tennyson,
Tennyson, Tennyson’ ou ‘Alfred, Alfred, Alfred’ ou ‘Alfred
Lord Tennyson’. De qualquer forma, ele fez isso. Talvez só
dissesse ‘Lord, Lord, Lord’.”
“Legal”, disse o baixista da Clear
Light. Ele era empolgado e amável, nada tinha do espírito Door.
“Eu me pergunto o que Blake disse”,
ponderou Manzarek. “Que pena o Morrison não estar aqui. O
Morrison ia saber.”
Um bom tempo depois, Morrison chegou.
Estava com a calça preta de vinil, sentou-se em um sofá de couro na
frente dos quatro grandes alto-falantes e fechou os olhos. O aspecto
curioso da chegada de Morrison era o seguinte: ninguém reparou.
Robby Krieger continuou a praticar uma passagem de guitarra. John
Densmore estava na bateria. Manzarek se sentou no painel de controle,
torceu um saca-rolhas e deixou uma garota massagear os ombros dele. A
garota não olhou para Morrison, embora ele estivesse no campo de
visão dela. Uma hora ou mais se passou, e ninguém tinha falado com
Morrison ainda. Então Morrison falou com Manzarek. Falou quase em um
sussurro, como se estivesse lutando com as palavras por detrás de
alguma afasia incapacitante.
“É uma hora até West Covina”,
falou. “Fiquei pensando que talvez a gente devesse passar a noite
por aqui depois de tocar.”
Manzarek largou o saca-rolhas.
“Por quê?”
“Em vez de voltar.”
Manzarek deu de ombros.
“A gente está planejando voltar.”
“Bom, eu fiquei pensando, a gente podia
ensaiar por aqui.”
Manzarek não respondeu.
“A gente podia começar a ensaiar, tem
um hotel aqui do lado.”
“A gente podia fazer isso”, disse
Manzarek. “Ou a gente podia ensaiar domingo na cidade.”
“Acho que sim.” Morrison fez uma
pausa. “O lugar vai ficar pronto para ensaiar no domingo?”
Manzarek olhou para ele por um tempo.
“Não”, respondeu por fim.
Contei os botões de controle no painel
eletrônico. Eram 76. Não tinha certeza quem venceu a discussão, ou
se havia sido resolvida de algum jeito. Robby Krieger pegou a
guitarra e falou que precisava de um pedal de efeito. O produtor
sugeriu que pegasse um emprestado do Buffalo Springfield, que estava
gravando no estúdio ao lado. Krieger deu de ombros. Morrison se
sentou de novo no sofá de couro e se inclinou para trás. Acendeu um
fósforo. Estudou a chama por um tempinho e então, bem devagar, de
forma bastante deliberada, abaixou o fósforo até a braguilha da
calça preta de vinil. Manzarek ficou olhando. A garota que estava
massageando os ombros de Manzarek não olhou para nenhum de nós.
Havia uma sensação de que ninguém ia deixar o estúdio. Nunca
mais. Ia demorar algumas semanas até o The Doors terminar de gravar
o álbum. Não fiquei até o fim.
Joan Didion, in O álbum branco
Nenhum comentário:
Postar um comentário