domingo, 26 de dezembro de 2021

Fêmea alfa

Entre os seres humanos, as fêmeas alfa são abundantes, variando de Cleópatra a Angela Merkel. Mas estou impressionado com um exemplo ordinário presente na autobiografia de Bruce Springsteen, Born to Run, de 2016. Quando jovem guitarrista, Springsteen se apresentou com os Castiles em muitos clubes sórdidos de Nova Jersey, inclusive aqueles dos adolescentes greasers, conhecidos por seu extenso uso de pomada para cabelos. Durante apresentações para garotas de cabelos armados com laquê, a banda descobriu a primazia de Kathy:

Você chegava, montava suas coisas, começava a tocar […] e ninguém se mexia — ninguém. Uma hora muito desconfortável se passava, com todos os olhos em Kathy. Então, quando você tocava a música certa, ela se levantava e começava a dançar, como em transe, arrastando lentamente uma namorada para a frente da banda. Momentos depois, o salão estava lotado e a noite decolava. Esse ritual se repetiu várias vezes. Ela gostava de nós. Nós descobrimos sua música favorita e não paramos de tocá-la.

As hierarquias humanas podem ser bastante aparentes, mas nem sempre as reconhecemos como tais, e os estudiosos geralmente agem como se elas não existissem. Assisti a conferências inteiras sobre comportamento humano adolescente sem nunca ouvir as palavras “poder” e “sexo”, embora para mim elas tenham tudo a ver com a vida adolescente. Quando falo sobre isso, todos costumam balançar a cabeça em concordância e acham que é maravilhosamente original o modo como um primatólogo olha o mundo, depois continuam com o foco na autoestima, na imagem corporal, na regulação emocional, na assunção de riscos e assim por diante. Diante da escolha entre comportamento humano manifesto e construtos psicológicos da moda, as ciências sociais sempre favorecem estes últimos. No entanto, entre os adolescentes não há nada mais óbvio do que a exploração do sexo, a testagem de poder e a busca de estrutura. A banda de Springsteen, por exemplo, tentou desesperadamente agradar

Kathy e ficar amiga dela, mas eles também tiveram de ser extremamente cuidadosos. Como havia gangues circulando por ali, ser amado demais por uma garota era arriscado, porque “um murmúrio, um boato, um sinal de algo mais que amizade não seria bom para a sua saúde”.

Esses são os primatas que conheço!

Entre os chimpanzés, as fêmeas adolescentes também despertam a competição e a proteção masculinas. Antes de chegar a essa idade, elas dificilmente contam: andam com os bebês dos outros e brincam com colegas de ambos os sexos, mas ninguém lhes dá atenção. No entanto, quando seu primeiro pequeno inchaço sexual se desenvolve, os olhos masculinos começam a segui-las. O balão rosa no traseiro cresce a cada ciclo menstrual. Ao mesmo tempo, elas se tornam sexualmente ativas. No início, têm dificuldade em seduzir os machos para o sexo e são bem-sucedidas apenas com chimpanzés de sua idade. Mas quanto maior o inchaço, mais elas intrigam os machos mais velhos.

Toda jovem fêmea logo compreende como isso lhe dá uma vantagem no mundo. Na década de 1920, Robert Yerkes, um pioneiro norte-americano da primatologia, realizou experimentos sobre o que ele chamou de relações “conjugais” (um nome equivocado, pois os chimpanzés não têm laços estáveis entre os sexos). Deixando cair um amendoim entre um macho e uma fêmea, Yerkes notou que os privilégios de uma fêmea inchada superavam os das fêmeas que não tinham aquela ferramenta de barganha. As fêmeas de chimpanzés com inchaço genital invariavelmente levavam o prêmio. Na natureza, após a caçada, os machos compartilham a carne com fêmeas inchadas. Na verdade, quando essas fêmeas estão por perto, os machos caçam com mais avidez devido às oportunidades sexuais que uma caça bem-sucedida proporciona. Um macho de baixa posição social que captura um macaco torna-se automaticamente um ímã para o sexo oposto, o que lhe oferece uma chance de acasalar-se em troca do compartilhamento da carne — até que alguém acima dele na hierarquia o descubra.


A atração dos chimpanzés machos por inchaços genitais pode nos parecer estranha, uma vez que a maioria de nós sente repulsa por esses corpos inchados rosa brilhante. Mas isso é de fato diferente do modo como os homens em nossa cultura “comem com os olhos” os seios femininos? A atração de protuberâncias frontais carnudas é, na verdade, mais intrigante, porque elas não anunciam fertilidade, ao contrário dos inchaços das chimpanzés. À medida que os seios de uma mulher jovem crescem, muitas vezes auxiliados por sutiãs e enchimentos, ela também se torna um ímã para a atenção masculina, aprende o poder do decote, o que lhe dá uma influência que nunca tivera antes, ao mesmo tempo que a expõe aos ciúmes e comentários desagradáveis de outras mulheres. Esse período complexo na vida de uma garota, com seus enormes transtornos emocionais e inseguranças, reflete a mesma interação entre poder, sexo e rivalidade que as fêmeas adolescentes de símios vivenciam.

Uma fêmea jovem de chimpanzé aprende da maneira mais difícil que a proteção masculina é efêmera, pois só funciona quando os machos estão por perto e se sentem atraídos. Um exemplo típico dessa curva de aprendizado envolveu Mama e Oortje, quando esta última estava passando pelos primeiros ciclos menstruais. Durante uma briga por comida, Mama deu um tapa nas costas de Oortje. Esta então correu para Nikkie, o macho alfa, e se esgoelou, fazendo um barulho totalmente desproporcional à pequena reprimenda que havia recebido. Ela até apontou a mão acusadora na direção de Mama.

Mas Oortje tinha um inchaço sexual, motivo pelo qual Nikkie estava por perto dela o dia todo. Em resposta a seu protesto, ele passou correndo por Mama, a fêmea alfa, com todo o pelo eriçado. Mama não aceitou quieta esse aviso. Gritando e urrando, foi atrás de Nikkie. Mas não houve agressão física entre os dois, e poucos minutos depois Oortje e Mama fizeram contato visual à distância. Mama assentiu com a cabeça, Oortje se aproximou imediatamente e elas se abraçaram. Tudo parecia bem, especialmente quando Mama também se reconciliou com Nikkie.

Naquela mesma noite, os chimpanzés foram levados para dentro do abrigo, como de costume, e a colônia foi dividida em grupos menores para passar a noite. Mas, depois de um tempo, ouvi uma grande briga. Acontece que, logo que se viu sozinha com Oortje numa área sem machos, Mama atacou a jovem fêmea em termos inequívocos. A reconciliação anterior fora apenas para consumo do público. Não significava que o incidente fora esquecido.

Os períodos de atração das fêmeas adolescentes, por mais empoderadores que sejam, são breves e transitórios, e elas são ignoradas assim que uma fêmea mais velha fica inchada. Isso não parece óbvio, já que estamos acostumados a ver os machos humanos serem atraídos por parceiras jovens. Mas não é assim que as coisas funcionam entre os chimpanzés. Em nossa espécie, a atração pela juventude faz sentido evolutivo pelos nossos vínculos conjugais, por formarmos núcleos familiares estáveis. As mulheres jovens são mais disponíveis e valiosas graças à vida reprodutiva que têm à sua frente. Daí a eterna busca das mulheres por parecerem jovens, lançando mão de tinturas nos cabelos, maquiagem, implantes, plásticas faciais etc. Nossos parentes primatas, no entanto, não conhecem parcerias de longo prazo, e os machos são mais atraídos por parceiras maduras. Se várias fêmeas estão inchadas ao mesmo tempo, os machos invariavelmente cobiçam as mais velhas. Isso também foi relatado a respeito dos chimpanzés que vivem em liberdade. Eles praticam uma discriminação reversa da idade, talvez preferindo companheiras com um histórico de filhotes saudáveis.

Em consequência, Mama se tornou a maior atração sexual do grupo quando, quatro anos depois de dar à luz Moniek, desenvolveu novo inchaço. Uma multidão de machos, jovens e velhos, reuniu-se para se envolver em “barganhas sexuais”. Em vez de competir abertamente, o que também faziam às vezes, os machos em geral catavam-se uns aos outros. Eles permitiriam que um deles se acasalasse sem ser perturbado em troca de uma longa sessão de catação, especialmente com o macho alfa. Superficialmente, a cena parecia calma: o objeto de desejo observava enquanto todos aqueles dom-juans cuidavam dos pelos uns dos outros. Mas havia uma grande tensão subjacente. Qualquer macho que tentasse se aproximar de Mama pulando o protocolo certamente teria problemas.

 

O que mais me interessa nessas cenas é o óbvio autocontrole dos machos. Tendemos a olhar os animais como seres emocionais que não possuem os freios que aplicamos. Alguns filósofos até argumentaram que o que diferencia nossa espécie é a capacidade de suprimir impulsos, uma ideia ligada ao livre-arbítrio. Mas, como tantas outras propostas sobre a singularidade humana, essa é completamente equivocada. Nada poderia ser menos adaptativo para um organismo do que seguir cegamente suas emoções. Quem quer ser um bólido desenfreado? Se um gato cedesse imediatamente à sua vontade de correr atrás do esquilo, em vez de se esgueirar lentamente até a presa, ele fracassaria sempre. Se Mama não tivesse esperado o momento certo para atacar Oortje, nunca teria conseguido enfatizar sua posição. Se os machos se acasalassem sempre que tivessem vontade, teriam constantemente problemas com a competição. Eles precisam apaziguar os superiores, pagando um preço em catação, ou contorná-los, arranjando um encontro secreto atrás dos arbustos — técnica comum, que requer a cooperação da fêmea. Tudo isso depende de um controle dos impulsos altamente desenvolvido, que é parte integrante da vida social. Treinadores de cavalos, cães e mamíferos marinhos estão intimamente familiarizados com essa capacidade de seus animais, pois é seu ganha-pão.

Certa vez, num zoológico japonês, vi que tinham montado uma estação para os chimpanzés quebrarem suas nozes. O lugar tinha uma pesada pedra-bigorna e uma pequena pedra-martelo presa a ela por uma corrente. Os cuidadores jogavam grande quantidade de macadâmias no recinto, e todos os chimpanzés as juntavam com mãos e pés, depois se sentavam. As macadâmias são um dos poucos tipos de nozes que os chimpanzés não conseguem rachar com os dentes: eles precisavam daquela estação. Primeiro, o macho alfa rachou as nozes dele, depois a fêmea alfa fez o mesmo, e assim por diante. O resto esperou pacientemente. Tudo era extremamente pacífico e ordeiro, e todos conseguiram quebrar suas macadâmias sem problemas. Mas subjacente a essa ordem estava a violência: se um deles tivesse tentado violar o arranjo estabelecido, teria ocorrido o caos. Embora fosse basicamente invisível, essa violência estruturava a sociedade. A sociedade humana não é montada desse modo também? Ela é ordenada na superfície, mas se sustenta sobre punição e coerção para aqueles que não obedecem às regras. Tanto entre os seres humanos quanto entre outros animais, ceder às emoções sem levar em conta as consequências é a decisão mais estúpida que alguém pode tomar.

Mama vivia numa sociedade complexa que ela entendia melhor que qualquer outro, inclusive eu, o observador humano que precisava me esforçar para desvendar suas complexidades. Como ela chegou ao topo não está totalmente claro, mas das muitas colônias de chimpanzés que conheci ao longo de minha carreira, e de observações na natureza, sabemos que idade e personalidade são os principais fatores. As fêmeas de chimpanzés raramente competem pela hierarquia e estabelecem posições com surpreendente rapidez. Sempre que os zoológicos colocam chimpanzés de diferentes origens juntos, em poucos segundos as fêmeas estabelecem hierarquias. Uma fêmea caminha até outra, que se submete curvando-se, arfando-grunhindo ou saindo do seu caminho, e isso é tudo. A partir de então, uma dominará a outra. Altercações ocorrem, mas apenas numa minoria de casos. É bem diferente com os machos, que tentam intimidar um ao outro, o que pode provocar uma briga física, ou aguardam para lutar alguns dias depois. Em certo momento, há sempre uma testagem de força. Mesmo quando o lugar na hierarquia é estabelecido, ele nunca está garantido e permanece sempre aberto ao desafio. É por isso que os machos mais vigorosos, frequentemente entre as idades de vinte e trinta anos, ocupam os primeiros lugares. Eles superam os mais velhos, que perdem o poder pouco a pouco após sua carreira ter atingido o pico.

As fêmeas, ao contrário, têm um sistema classificado por idade em que ser velho oferece uma vantagem. Esse sistema é naturalmente mais estável que o dos machos. Uma das senhoras mais velhas é a alfa, apesar da presença de fêmeas mais jovens, que são fisicamente mais fortes. Elas não teriam problemas em derrotá-la numa briga, mas a condição física delas é irrelevante. Décadas de pesquisa sobre chimpanzés selvagens mostraram que as fêmeas competem bem pouco por status, elas apenas aguardam, num processo conhecido como enfileiramento. Se uma fêmea vive tempo o suficiente, está destinada a acabar numa posição alta. Como elas vivem dispersas pela floresta e se alimentam principalmente sozinhas, é provável que alcançar uma alta classificação não produza benefícios suficientes para que as fêmeas corram riscos. Não vale a pena passar pelos problemas que os machos enfrentam.

Uma fêmea na posição de Mama é muitas vezes chamada de matriarca, mas esse termo varia de significado. A posição social dela era bem diferente, por exemplo, da de uma matriarca dos elefantes: a maior e mais antiga fêmea lidera uma manada composta por outras fêmeas e seus filhotes, muitos deles da família. Em contraste, Mama percorria um universo infinitamente mais complexo, no qual machos adultos nunca paravam de disputar posição e em que todas as outras fêmeas não tinham parentesco com ela. Sua conquista do primeiro posto nesse meio nem era o aspecto mais notável de sua posição, porque ela também exercia imenso poder. Poder e hierarquia são coisas diferentes.

Medimos a hierarquia por quem submete quem. Os chimpanzés fazem isso curvando-se e arfando-grunhindo. O macho alfa precisa apenas andar por aí, e os outros correrão em sua direção e literalmente rastejarão na poeira enquanto emitem grunhidos ofegantes. O alfa pode enfatizar sua posição movendo um braço sobre os outros, pulando sobre eles ou simplesmente ignorando uma saudação, como se não se importasse. Ele é cercado por uma enorme deferência. Mama recebia esses rituais com menos frequência que qualquer macho, mas todas as outras fêmeas, ao menos ocasionalmente, prestavam seu respeito a ela, tornando-a a fêmea de mais alto escalão. Esses sinais externos de status refletem a hierarquia formal, do mesmo modo como as insígnias nos uniformes militares nos dizem quem está acima de quem.

O poder é algo completamente diferente: é a influência que um indivíduo exerce nos processos de grupo. Como uma segunda camada, o poder se esconde atrás da ordem formal. Para dar um exemplo humano: a secretária de longa data de um dono ou dona de empresa costuma regular o acesso ao patrão ou à patroa, e toma muitas pequenas decisões por conta própria. Nós reconhecemos o imenso poder dessa secretária e somos espertos o suficiente para nos tornarmos amigos dela, mesmo que formalmente ela ocupe um lugar bem baixo no organograma da empresa. Da mesma forma, os resultados sociais de um grupo de chimpanzés dependem frequentemente de quem é mais central na rede de laços familiares e alianças. Já contei que Nikkie, o novo macho alfa, não era tão respeitado quanto seu parceiro sênior Yeroen. Nikkie detinha o posto mais alto, mas não era muito poderoso, e a colônia periodicamente rejeitava seu mando. Na verdade, eram Yeroen e Mama, o macho e a fêmea mais velhos da colônia, que mandavam no pedaço. Eles tinham tanto prestígio que ninguém se opunha às suas decisões. Com suas excelentes conexões e habilidades de mediação, Mama era extraordinariamente influente. Todos os machos adultos estavam formalmente acima dela, mas se a coisa ficasse feia todos precisavam dela e a respeitavam.

Seu desejo era o desejo da colônia.

Frans de Waal, in O último abraço da matriarca

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