[...]
Levantei-me, pus-me a andar, como se
tivesse tomado uma decisão. Qual, eu não sabia.
De repente, ouvi atrás de mim uma voz:
— Onde vai, patrão? Ao mosteiro?
Virei-me. Um velho robusto, atarracado,
sem bastão, lenço preto na cabeça branca, agitava sorrindo as
mãos. Atrás vinha uma velha e mais atrás a filha deles, uma morena
de olhos selvagens e lenço branco.
— Ao mosteiro? — perguntou-me
novamente o velho.
E logo me dei conta de que resolvera ir
junto. Havia meses que desejava ir a este pequeno convento de
freiras, construído junto ao mar, sem contudo me decidir. Meu corpo
tomava agora a resolução, de repente, nessa tarde.
— Sim — respondi, — vou ao mosteiro
ouvir os cânticos à Virgem.
— Sua graça o ajude!
Acelerou o passo e juntou-se a mim.
— Você é o dono da sociedade, como se
diz, para o carvão?
— Sim sou eu.
— Muito bem, que a Santa Virgem lhe dê
bastante lucro!
Você beneficia a aldeia, dá um ganha
pão aos pais de família pobres. Bendito seja!
E ao cabo de um momento, o velho
malicioso que devia saber que os negócios iam mal, juntou essas
palavras de consolo:
— E mesmo se isto não lhe der nada,
meu filho, não ligue. Você sairá ganhando, de qualquer modo. Sua
alma irá direto ao Paraíso...
— É o que espero também, vovô.
— Todos, todos, meu filho. É um grande
pecado dizer: isto é bom, aquilo é mau!
— Por quê? Não se pode escolher?
— Não, claro que não se pode.
— Por quê?
— Por que há gente com fome.
Calei-me envergonhado. Nunca podia meu
coração esperar tanta nobreza e tanta compaixão.
Tocou a sineta do mosteiro, alegre,
travessa, como um riso de mulher.
O velho fez o sinal da cruz.
— que a santíssima degolado nos ajude!
— murmurou. — ela tem um golpe de faca no pescoço por onde corre
o sangue. No tempo dos corsários...
E o velho pôs-se a tecer uma história
sobre os padecimentos da Virgem, como se se tratasse de uma
verdadeira mulher, de uma jovem refugiada perseguida que os infiéis
tivessem apunhalado e que, chorando, houvesse chegado ao Oriente, com
o filho.
— Uma vez ao ano, corre sangue
verdadeiro da chaga, prosseguiu o velho. Eu me lembro que um dia de
festa — eu ainda não tinha bigodes — desceu gente de todas as
aldeias para se prosternar diante de Sua Graça. Era dia 15 de
Agosto. Nós, os homens, nos deitamos no pátio. As mulheres dormiram
no interior. Então, em pleno sono, ouço a Virgem gritar. Levanto
depressa, corro ao ícone,apalpo-lhe a garganta e que vejo eu? Meus
dedos estavam cheios de sangue...
O velho se benzeu, voltou-se e olhou para
as mulheres.
— Vamos, mulheres! — falou —
coragem, estamos chegando!
Baixou a voz:
— Eu não era ainda casado. Jogo-me ao
chão, prostrado diante de Sua Graça, e decido deixar este mundo de
mentiras e me fazer monge...
E se pôs a rir.
— Por que está rindo, vovô?
— Tenho cá meus motivos, filho! No
mesmo dia, na festa, aparece-me o Diabo vestido de mulher. Era ela!
E, sem se voltar, apontando o polegar
para trás, indicou a velha que nos seguia em silêncio.
— Não olhe para ela agora, que dá
pena de ver. Mas naquele tempo era um jovem turbulenta com um peixe.
“A bela das longas pestanas”, assim é que a chamavam, e ela
levava bem o apelido, a marota! Agora, ai, pobre de nós! Cadê as
pestanas? Foram depenadas!
Neste momento, atrás de nós, a velha
soltou um grunhido surdo como um cão rabugento preso à coleira. Mas
não disse palavra.
— Lá está o mosteiro! — disse o
velho esticando o braço.
À beira mar, esperando entre dois
rochedos, brilhava, todo branco, o pequeno mosteiro. Ao centro, a
cúpula da igreja, pintada de fresco, pequena e redonda, como um seio
de mulher. Em volta da igreja, cinco ou seis celas de portas azuis;
no pátio, três grande ciprestes e, ao longo do claustro, grandes
figueiras em flor.
Apressamos o passo. Melodiosos salmos nos
chegavam pela janela aberta do santuário, o ar salgado perfumava-se
de benjoim. A porta exterior, em arcada plena, estava toda aberta
para o pátio muito limpo, cheiroso, pavimentado de seixos pretos e
brancos. Ao longo das paredes, à direita e à esquerda, fileiras de
potes de alecrim, manjerona e manjericão.
Que serenidade! Que doçura! Ao sol
poente, as paredes brancas de cal coloriram-se de rosa.
A igrejinha, acolhedora, pouco iluminada,
tinha cheiro de vela.
Homens e mulheres moviam-se numa nuvem de
incenso e cinco ou seis monjas, em hábitos pretos, entoavam com
vozes fraquinhas e amenas o Senhor Todo-Poderoso. Ajoelhavam-se a
cada instante e frufru de suas veste parecia um bater de asas.
Há muitos anos eu não ouvia os cânticos
à Virgem. A revolta da primeira juventude me fizera passar diante
das igrejas cheio de desprezo e cólera. O tempo me abrandara e
cheguei a ir, algumas vezes, a festas solenes: Natal, as Vigílias, a
Ressurreição. Regozijava-me vendo ressuscitar a criança que
subsistia em mim. O sentimento místico de outrora se transformava em
prazer estético. Os selvagens creem que quando um instrumento
musical não serve mais para os ritmos religiosos, perde sua força
divina e emite então sons harmoniosos. Assim a religião se tinha
degradado em mim: tornara-se arte.
Pus-me a um canto, apoiado à cadeira
reluzente que as mãos dos fiéis tinham tornado polida como marfim.
Ouvia, encantado, vindas das profundezas do tempo, as melopeias
bizantinas: “Salve! Altura inacessível ao pensamento humano.
Salve! Esposa não desposada, ó Rosa jamais fanada...”
E as freiras a caírem por terra, à
cabeça à frente e os hábitos a rangerem como asas.
Os minutos passavam, tal anjos de asas
perfumadas com benjoim, trazendo lírios fechados e louvando a beleza
de Maria. O sol se punha, caía o crepúsculo, manso e azul. Não me
lembro mais como fomos para o pátio, onde fiquei só com a Madre
Superiora e duas jovens freiras, sob o grande cipreste. Uma noviça
trouxe-me doce, água fresca e café e começamos uma conversa amena.
Falamos dos milagres da Virgem, da
linhita, das galinhas que começavam a pôr na primavera, da irmã
Endóxia que estava epilética. Caía no chão da igreja e agitava-se
com um peixe, escumado, blasfemava e rasgava as roupas.
— Tem trinta e cinco anos —
acrescentou a Superiora, — idade maldita, horas difíceis! Que Sua
Graça, Nossa Senhora Degolada lhe venha em socorro e ficará curada.
Dentro de dez ou quinze anos, estará boa.
— Dez ou quinze anos... — murmurei
espantado.
— Que são dez ou quinze anos — disse
a superiora severamente.
— pense na eternidade!
Não respondi. Sabia que a eternidade é
cada um dos minutos que passam. Beijei a mão da superiora, uma mão
branca e gorda, cheirando a incenso, e fui-me embora.
Caíra a noite. Dois ou três corvos
voltavam aos ninhos, apressados; as corujas saíam dos ocos das
árvores para comer; os caramujos, as lagartas, os vermes, os ratos
do mato saíam da terra para serem comidos pelas corujas.
A serpente misteriosa que morde a própria
cauda me envolveu em seus círculo: a terra pare e depois devora seus
filhos; e logo põe outros no mundo para de novo os devorar.
Olhei em torno. Estava escuro. Os últimos
aldeões haviam partido. Solidão completa, ninguém me via. Tirei os
sapatos, mergulhei os pés no mar, rolei-me na areia. Senti a
necessidade de tocar, com meu corpo nu, as pedras, a água, o ar. a
palavra da superiora “Eternidade” tinha-me exasperado, eu a
sentia cair em mim como o laço que aprisiona os cavalos selvagens.
Dei um pulo, tentando escapar. Eu tinha que tocar, sem roupas, peito
contra peito, a terra, o mar; queria sentir com segurança que essas
coisas efêmeras e queridas existiam.
“Só tu existes, ó Terra! Bradei no
meu foro íntimo. E eu sou o teu último recém-nascido, mamo em teu
seio e não o largo. Tu não me deixas viver mais que um minuto, mas
o minuto se transforma em seio e eu o mamo.”
Tive um calafrio. Com se houvesse corrido
o risco de me precipitar nessa palavra antropófaga “Eternidade”.
Lembrei-me como outrora — como mesmo? Ainda no ano passado! — eu
me debruçava sobre ela com ardor, olhos fechados e braços abertos,
com vontade de nela me precipitar.
Quando cursava o primeiro ano da escola
comunal, havia como leitura na segunda parte da cartilha, um conto de
fadas: “uma criancinha caíra num pote. Lá encontrou uma cidade
maravilhosa, com jardins floridos, um lago de mel, uma montanha de
arroz-doce e brinquedos multicolores. À medida que eu soletrava,
cada sílaba me fazia penetrar mais profundamente no conto. Ora, uma
vez, ao meio-dia, chegando da escola, entrei correndo em casa,
precipitei-me para o poço, no quintal, sob a latada, e me pus a
olhar, fascinado, a superfície da água, lisa e negra. Logo me
pareceu ver a cidade maravilhosa, casas e ruas, crianças e uma
parreira cheia de uvas. Deixei cair a cabeça, estendi os braços,
batendo com os pés no chão para ganhar impulso e cair. Nesse
momento minha mãe me viu.
Deu um grito e correu, chegando ainda a
tempo de me pegar pela cintura...
Criança, quase caí no poço. Adulto,
quase caí na palavra “Eternidade”, e também em não poucas
outras palavras: “amor”, “esperança”, “pátria”, “Deus”.
Cada palavra transposta me dava a impressão de escapar de um perigo
e avançar um passo. Mas não.
Trocava somente de palavras e a isto
chamava de “libertação”. Eis-me há dois anos suspenso à
palavra “Buda”.
Mas, bem o sinto, graças a Zorba, Buda
será o último pote, a última palavra-precipício e estarei liberto
para sempre. Para sempre.
É o que se diz de cada vez.
Levantei-me de um salto. Estava feliz dos
pés à cabeça. Despi-me e me lancei ao mar. As ondas alegras
brincavam e eu brincava com elas. Quando, enfim, fatigado saí da
água, deixei-me secar ao vento da noite. Pus-me a caminho em longas
passadas ligeiras, com a sensação de ter escapado de um grande
perigo e me ter agarrado, mais forte que nunca, ao seio da terra.
Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego
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