domingo, 19 de dezembro de 2021

A vilã das vilãs

Caro senhor diretor de programação. Ouvi a chamada da sua novela das 8, que estreou na segunda-feira: “Uma história de paixões e desafios. A personagem em busca de seus sonhos. Tem coisas que só o tempo consegue apagar. Uma história com que você sempre sonhou.”
Vou ser honesto com o senhor, o texto não quer dizer absolutamente nada, e o chato é que ficou a semana repetindo, repetindo. Então, pensei em outras frases: “O tempo não para, num clima de paixão sem limites. Uma história de encontros e desencontros. Em busca de desafios. Uma aventura para entender a condição humana. Emoção atrás de emoção.”
Aí, liguei para a sua emissora. Aí, a telefonista me deixou esperando horas. Aí, tive uma ideia sensacional para a próxima novela das 8. Me disseram que isso se chama sinopse. Não sou profissional. Mas desde que me entendo por gente (será que alguém se entende por planta ou paralelepípedo?), gosto de TV, passo horas em frente dela. Meu apelido de pequeno era Aba, pois diziam que eu estava para a TV como a aba, para o abajur.
Minha novela se chama Estar Passando. A vilã, Patrícia Castro, é uma dessas atendentes que nunca passam a ligação, mais cruel que Nazaré, mais mau-caráter que Laura, mais sem noção que Maria de Fátima. Será a vilã de todas as vilãs.
Patrícia Castro, quando criança, apanhava dos pais diariamente, que pegavam o telefone e davam na cabeça dela. A avó era aleijada e repetia, apontando a bengala: “Deixa que eu bato! Deixa que eu bato!” O pai, conhecido como Maluco Beleza, depois se elege vereador de São Paulo com o slogan “sempre cabe mais um”. A mãe vira apresentadora de programa de fofocas da TV. A avó é flagrada, numa armação do avô, no colo de Chico Buarque. Que família...
Na escola, Patrícia só dizia uma frase: “Trin-trin, nenê tá chamando.” A professora dava com o celular tijolão da época da estatal na cabeça dela, porque atrapalhava a tabuada. Ela era apaixonada por Gegê, um gago de nascença (reparei que toda novela tem que ter uns deficientes), que se casa depois com a filha do português que compra a estatal de telefonia (para a novela passar nos dois países, certo?). Sim, aí é o núcleo dos ricos, que fica debatendo se o buquê do merlot é melhor que o do pinot (discussão da moda). E, lá pelas tantas, ó, alguém mata alguém, certo? Um rico, claro, porque quando matam pobre não dá ibope. E tem um monte de funcionário da telefônica que é de pai trocado. E tem que ter, tipo assim, uma mensagem de cidadania: a discriminação que sofrem as pessoas que têm celular sem câmera. E do prédio da companhia tem um monte de pôr do sol. Tem a atendente bacana, Joana, que tem uma amiga gay, lógico. E por quem Gegê, apesar de estar casado com a filha do portuga, se apaixona. É, pela gay! Tô fugindo.
Patrícia Castro foi enviada a um convento. Começou atendendo o telefone lá. Mas levava telefonada das freiras, porque não passava as ligações, já que panicava com o toque do PABX. Ela fugiu, fez curso de atendente para superar o trauma, foi trabalhar num banco e ligava para os clientes vendendo cartão de crédito. Só a xingavam, batiam o telefone na sua cara. Até ela trabalhar numa firma que presta serviços à companhia telefônica do portuga. Sua vingança se desenha. Ela leva à loucura todo o elenco, dos ricos aos pobres (incluindo aquela atriz que só está lá porque é filha do autor ou namorada do diretor), deixando as pessoas esperando na linha, obrigando-as a ditar o endereço residencial, comercial, a data de nascimento, o tipo sanguíneo e os números da identidade, CIC, dependentes e argentinos no Corinthians. Quando eram grossos, ela apenas esticava o indicador com unhas vermelhas de maléfica-de-novela e deletava o número do cliente, que virava “este número de telefone não existe” ou “fora da área de cobertura”.
Caso queira usar minha ideia, contatar por este e-mail, pois meu celular foi desligado por uma verdadeira Patrícia Castro, telefonista folgada de um 0800 verdadeiro de uma companhia que o Procon afirma ser a campeã em reclamações, certo?

Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola

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