quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

A vida brilhando nas telas

Numa visita recente ao magnífico Grand Canyon, nos EUA, me surpreendi com o número de pessoas tirando selfies e olhando para os seus celulares em vez de aproveitar o lugar real onde estavam, integrando corpo e mente ao cenário mágico bem à sua frente. Este é apenas um dos sintomas que vejo como um novo fenômeno global: como vimos anteriormente, parece que todo mundo quer ser estrela – a estrela da sua própria vida.
Viver a vida através de experiências concretas tornou-se secundário; o importante é registrar tudo, fazendo selfies e vídeos, e dividindo-os rapidamente nas plataformas de mídia social. Canais do YouTube se multiplicam exponencialmente. Superstars no YouTube têm milhões de seguidores. Meus filhos, por exemplo, veneram alguns deles, sujeitos de 20 ou 30 anos que fazem vídeos jogando videogames com comentários cômicos e muito palavrão. A fórmula é mágica. Os celulares e seus primos mais próximos, os tablets, estão nos transformando.
A vida brilha nas telas, o tempo todo. No furor de gravar tudo o que acontece para dividir com os outros, estamos nos esquecendo de nos engajar com o momento real e com as pessoas à nossa volta. Com certeza, alguns vão criticar o que estou dizendo, afirmando que é típico de uma geração mais velha, que sempre reclama das novas tecnologias. No meu caso, sendo físico, eu vivo cercado de novas tecnologias, essenciais no meu trabalho de pesquisa. Minha preocupação é outra, que vai mais fundo.
É o resgate da condição humana. Na era das telas individualizadas, a vida se torna um evento a ser apreciado pelos outros e não para contribuir com o crescimento de cada um. O foco é no outro, sempre na performance, e não no conteúdo pessoal do que está acontecendo. Os celulares e a mídia social permitem compartilhar informação de forma fácil e eficiente, seja ela fotos e vídeos ou documentos importantes. O alcance é muito maior, e a gratificação (quantos “likes” você ganha) é quantitativa. A vida vira um evento social, dividido com um monte de gente que pode, então, julgar o seu “valor” como pessoa.
É como se estivéssemos presos num episódio da série Black Mirror da Netflix. Claro que parte disso é ótimo. Não há nada de errado em celebrar os momentos significativos das nossas vidas, e dividi-los com as pessoas queridas. O problema começa quando a urgência de dividir o momento com os outros fica maior do que o desejo de vivenciar a experiência. O comediante americano Conan O'Brien, entre muitos outros, reclamou que nem consegue mais enxergar o seu público, vendo apenas um mar de celulares e tablets registrando (ilicitamente) o seu show. Como escrevi acima, algumas celebridades estão proibindo os convidados em seus casamentos de usar celulares.
Nick Denton, fundador da Gawker, disse a eles: “Você pode cuidar da sua presença virtual – e dos seus seguidores no Twitter e Instagram – no dia seguinte.” É claro que nossas mensagens, fotos e vídeos na mídia social podem ser gratificantes quando amigos, família e fãs respondem. Sentimos que nossa vida é importante. Mas esse tipo de gratificação pessoal é efêmero. Vem e vai rapidamente. Para muita gente, serve para tampar um problema mais profundo, talvez uma insegurança, ou solidão. Basear sua vida no que os outros pensam é uma receita segura para gerar muita ansiedade e frustração.
Esvazia o seu âmago, enchendo-o com a esperança de que outros irão satisfazer a sua necessidade de viver uma vida plena, com significado. Viver pelos outros nunca dá certo, algo que as celebridades sabem muito bem. Criar um senso de si baseado no que os outros pensam não é algo novo. A diferença é que, na era das telas, ficou muito fácil se conectar com muita gente, em qualquer canto do mundo. Cada selfie ou vídeo promete a fama: “Sou lindo(a), especial, e as pessoas vão ver isso e me admirar.” Esse alcance global é muito novo. Até recentemente, poucos tinham esse tipo de acesso a um número grande de pessoas.
Os círculos sociais começavam e terminavam na família e num grupo relativamente pequeno de amigos locais. Agora, podemos nos conectar com pessoas em outros países, dividindo nossa vida com quem nem conhecemos. Temos, também, que lidar com os abusos e insultos, tanto daqueles dentro dos nossos círculos sociais como de estranhos. Um usuário pode se esconder por trás de um nome falso, atacando pessoas perversamente, causando sérios danos emocionais. Essa é a nova cara do covarde digital.
É tudo, então, apenas uma explosão de narcisismo coletivo? Felizmente, não. Muita gente usa as mídias sociais para promover causas sociais justas e dividir momentos de fato relevantes em suas vidas. Existem vídeos e podcasts de altíssima qualidade e alcance pedagógico.
O acesso à informação de qualidade é absolutamente incrível, e cobre praticamente qualquer assunto. No nível social, muitos amigos e famílias fortalecem seus laços através dessa troca digital. Por outro lado, existem aqueles que manipulam pessoas e grupos para ganho próprio. E existe muita besteira on-line, algumas inofensivas e outras perigosas, baseadas em preconceitos ofensivos ou extremismos ideológicos.
Não podemos – ou devemos – escapar da era em que vivemos. As telas não são nossas inimigas. No entanto, precisamos estar atentos para o que estamos fazendo, e não agir automaticamente, sem ter consciência de nossos atos e escolhas. Precisamos nos dar conta do conteúdo que pesquisamos nas mídias sociais, e não pular no trem sem saber onde está indo. Mais importante, precisamos aprender a nos desengajar das telas e a nos reengajar com a vida real, sem o meio digital como ponte entre você e os seus amigos, sua família ou a Natureza. O que me traz de volta à cena no Grand Canyon.
As telas levam você para longe de onde você de fato está, focando sua atenção nos “outros”, nos que estão do outro lado da mídia social, recebendo sua informação. Elas transformam o Grand Canyon, a praia, a festa, no palco da sua performance, sua vida virando um grande show para os outros. Existe uma diferença fundamental entre usar uma tecnologia e ser usado por ela. Na minha casa, usamos “dias de desintoxicação”, sem telas para as crianças ou para nós.
Tentamos criar um senso de equilíbrio entre a vida real e a virtual. Às vezes, vetamos todas as telas e focamos nossa energia e atenção na grande tela da realidade à nossa volta e nas relações diretas entre as pessoas, as emoções que criam laços emocionais profundos, desde um abraço bem forte a uma conversa franca, olho no olho. Para mim, não tem espetáculo maior do que esse.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

Nenhum comentário:

Postar um comentário