A vida é o tempo que segue correndo,
Iñe-e aprendeu. Até que se deu a chegada daquele homem
desconhecido. Ele viera em uma grande comitiva como se fosse um
grande chefe. Havia três montarias, um pequeno séquito de escravos,
caçadores e pescadores a seu dispor, e muitos outros homens, entre
eles um parente e um outro branco já conhecido do povo miranha. Esse
branco, sempre com as armas postas na cintura, era muito animado,
falador, conhecedor da floresta e das gentes de origem dela. Uma
comitiva de muitas canoas fora anunciada dias antes pelos vizinhos,
mas a embarcação do desconhecido, que era a principal, veio coberta
de folhas de tamarica, para protegê-lo do sol, e só isso já
indicava sua importância. Doze homens remavam para ele, uns da nação
dos coerunas e outros da nação dos macunás. O homem que era como
um grande chefe tinha um aspecto lastimável, por estar doente
parecia que houvesse sido banhado na tintura rubra do achiote.
Picadas dos carapanãs formavam calombos em seu corpo, e Iñe-e achou
que aquele era um homem muito feio.
O alvoroço do povo reverberava no
estampado das chitas, no chiado das miçangas, no tilintar dos troços
de metal. Algumas crianças que de primeiro foram arredias agora
cercavam os visitantes com seus olhos curiosos, admirados, e a
presença daqueles homens monopolizava o cochicho das mulheres, ao
mesmo tempo que dobrava a ocupação delas no preparo das comidas. Os
homens agora tocavam os trocanos em resposta aos moradores
adjacentes, anunciando que os brancos chegaram bem, que o principal
deles repousava por causa da febre, que os subordinados estavam
comendo, que todos eles estavam dançando, que vieram interessados em
fazer negócios lucrativos.
O homem de aspecto lastimável é cuidado
com beijus, sopa de yuca, água fresca e frutas até que a moléstia
dê uma trégua a seu corpo. O velho avô faz o seu trabalho de cura
com as ervas. E tão logo o branco se recupera, aqueles se tornam
verdadeiramente dias de festa. Inaugurando um novo costume, a mãe de
Iñe-e e Tsittsi recentemente havia sido repudiada e trocada por uma
mulher mais jovem e mais alta pelo seu pai, o tuxaua. Temerosa do que
poderia significar aquela perda de posição, recomendara, desde a
chegada dos estrangeiros, com voz trêmula, que a filha mantivesse
distância daqueles homens, especialmente quando estivessem tratando
com o pai. Suas mãos trançando o fio de buriti em exato movimento
de dedos em dança; seu coração, porém, palpitando, bambo. Igual
recomendação lhe fez o avô, que por sua vez parecia mais
encarquilhado e até tristonho.
Alguns dias depois de sarado, o branco
partiu para as cachoeiras do Araracoara, e o pai se embrenhou com os
guerreiros em busca dos escravos que o homem encomendara. Quando o
tuxaua regressou, trazia alguns poucos homens, muitas mulheres e
várias crianças. Eram crianças que aquele branco queria, Iñe-e
ouviu o avô dizer a outro velho. Porém, na noite em que o tuxaua e
o branco negociavam, Iñe-e ficou mais próxima do centro daquelas
transações do que deveria. Ouviu o pai rir muito alto. Ouviu a voz
do branco vexada, vacilante. Antes era costume que seu povo trocasse
com os brancos apenas os inimigos e os órfãos dos inimigos por
mercadorias variadas e ferramentas de trabalho. Mas, desde que esses
negócios com os estrangeiros se haviam tornado mais constantes,
muitas coisas tinham mudado, e alguns dos seus modos e hábitos
começaram a se entranhar no tuxaua, o pai de Iñe-e, que se barbeava
como eles e que passara mesmo a usar calça comprida e até uma
casaca que a menina achava esquisita e feia. Ocasionalmente o pai até
dizia palavras na língua dos brancos, a maioria das quais ele mesmo
desconhecia o significado. Em uma de suas viagens fora batizado por
um frade e desde então exigia ser chamado de João Manoel.
Iñe-e escutara uma vez as mulheres, sua
mãe entre elas, dizendo que o pai pegara a doença dos brancos e que
estava se tornando um estrangeiro em sua própria nação. Mas os
guerreiros mais velhos e mesmo os jovens pareciam estar todos de
acordo com ele, e o povo miranha se congratulava pelas trocas que o
chefe se empenhava em realizar. Foi assim que nos últimos tempos as
crianças órfãs e mulheres do seu povo haviam virado moeda também,
e por isso a mãe e o avô de Iñe-e temiam as visitas dos brancos,
especialmente por causa dela, e tentavam escondê-la dos olhos do
pai, como se isso o fizesse esquecer de sua existência. Mas todos os
esforços se revelaram inúteis. Não havia nenhum esconderijo a seus
olhos, nada e nem ninguém que o impedisse.
Uma manhã em que o sol se levantou do
mesmo jeito que sempre se levantava, e em que a mata falava sua
língua do mesmo modo com que sempre falava, nada denunciava o que
estava por acontecer. O pai de Iñe-e e o estrangeiro, que atendia
pelo nome de Martius, firmaram acordo sobre a venda de sete crianças.
Mas o homem branco deixaria o porto dos Miranhas levando consigo oito
vidas. Iñe-e lhe fora dada como presente.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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