A mulher se reclina. Seus olhos e seus
ouvidos se colocam a postos. Sua boca aberta recebe o hálito que
atravessa as folhas das árvores, os animais, que tocara a pele de
todas as mulheres antes dela. Ela está no centro da maloca, e a
maloca é o ventre do universo, e a barriga dela, o centro do mundo.
Sobre o telhado, o céu rebrilha de estrelas, crânios muito alvos
faiscando eternamente. Então ela começa a gritar seu suor de seiva
e sangue. O trabalho dos ossos do quadril se afastando como pedras
que há muito assentadas não resistem à imposição violenta das
águas. Ela sente as dores em ondas que vão e vêm em fluxo e
refluxo, e enfim seu canal se dilata totalmente para a passagem dos
rios, primeiro o rio que traz um menino, depois o rio que traz uma
menina.
São todos os rios que chegam naquela
noite, todos os braços e pernas do Japurá, todas as águas do
Paranáhuazú, cujo nome ancestral é Deus que fala todas as línguas
. E, conforme o trabalho das dores rasguem o breu, nascem a menina e
seu irmão. Ela, uma criança mirrada, mas de olhos bem abertos e com
uma pequenina boca vermelha como o fruto do buritizeiro e, por esse
motivo, é chamada de Iñe-e pelo velho avô, o xamã. Está
destinada a crescer e a aprender os ritos das comidas, os usos da
açacurana, o preparo do curare. O irmão, em tudo igual e diverso
dela, nasce destinado à guerra e, por seu grito, como que de trovão,
Tsittsi é chamado. E recebe, do velho avô, um dente de onça do seu
colar. A onça, sim, inimiga do seu povo, mas a quem devem temor e
respeito por ser a Dona da Caça, aquela que lhes permite viver em
seus domínios.
Iñe-e cresce escutando a história do
seu nascimento e do nascimento do irmão fluindo, como a água de
onde veio, da boca de sua mãe. É uma das histórias que mais lhe
agradam ouvir, mais do que a de Juziñamui, o devorador de gente,
mais do que as histórias do quebradão das antas, mais do que o
episódio da tartaruga que chorava por não poder chupar os
testículos do tuxaua que havia morrido e que arrancava risadas de
todos os ouvintes, moços e velhos. Escuta também como surgiu a
desconfiança que o pai passou a ter dela quando, ainda muito
pequena, se desgarrou das mulheres que preparavam a yuca e ficou
horas desaparecida. Somente a encontraram no fim da tarde. Quando as
esperanças de vê-la viva novamente se esvaíam, os parentes a
avistaram à margem do rio, em companhia de uma enorme onça; Iñe-e
de cócoras, Tipai uu, a onça, a seu lado, a cauda batendo
ritmadamente de um lado para o outro, como quem espera, como quem
vela, tendo deixado a criança intacta e segura até a chegada do seu
povo, quando então foi embora. Naquele dia, o entendimento do pai
dizia que a filha, por haver se ajuntado em pacto com a inimiga,
mesmo sem ter ciência do que havia de fato acontecido, era agora
inimiga como a onça. Muito embora o velho avô a tenha benzido em
proteção dos donos dos animais no instante em que nascera, o pai
acreditava que o evento era um sinal de maldição.
Ela um dia se transforma e nos devora a
todos, como Nonueteima se transformou em jaguar, acusou o pai certa
vez, deixando a mãe entre irritada e amedrontada pelo destino que
via se desenhar para a filha. Para o avô, aquele ódio não estava
certo, o encontro da menina com a onça cintilava como uma dádiva
quando ele consultou a sabedoria da coca a respeito. Mas mesmo isso
não conseguia retirar a cisma do coração do filho, cujas fibras
embranqueciam a cada contato com os estrangeiros, o que era, de fato,
e o velho sabia, uma verdadeira desgraça.
Alheia a esses embates, a menina ia
seguindo a vontade de crescer e, ademais, a cisma ou a raiva do pai
eram inconstantes. Ora recrudescendo com uma nova implicância, ora
adormecendo como se nunca tivesse existido. Ela não sabia se gostava
de ter sido onçada por Tipai uu, mas em seu coração sabia que, por
outro lado, não desgostava. Onça voa de um grande salto, onça
engana os melhores caçadores, onça esturra enchendo a mata de
reverência e temor, onça enterra os dentes no cangote do inimigo.
Ela pensava, em pensamento desarrumado de criança pequena,
pensamento que ia guardando muito bem guardado, que talvez algum dia
haveria de ter alguma serventia ter feito pacto com onça.
Quando a menina completou sete anos, o
avô decidiu levá-la às festas de Yurupari, o Dono das Frutas,
quando meninos e meninas são colocados diante do Esawámina, para
talvez serem escolhidos em uma missão de grande responsabilidade.
Entre o povo dela, meninas e meninos tinham a mesma honra de ser
escolhidos. Assim, ao som das trompas e flautas, Iñe-e foi uma das
crianças eleitas, e por isso deveria mirar Yurupari por sete vezes
para que, quando completasse doze anos, se convertesse em curadora do
corpo e do espírito, vendo aquilo que ninguém mais poderia
enxergar.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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