Durante dois meses, hospedei um cachorro
fox terrier de meia-idade, Rex, teimoso como uma mula, dúbio como um
tesoureiro de partido, que eu conhecia há muito.
É o cachorro amigo melhor amigo de um
amigo que viajara.
Me dou bem com os cachorros dos amigos e
dos melhores amigos. Sou daqueles que chegam e recebem festa. Do cão.
Porque faço carinhos que os amigos já não têm mais paciência de
fazer.
Ofereço pedaços de pizza por debaixo da
mesa, tecos de carne em churrascos, pego a bolinha de tênis da boca
deles e atiro longe e ainda comando “muito bem” quando devolvem.
Sou uma espécie de palhaço de festa.
Faço coisas que os amigos não fazem
mais para não estragar a dieta ou mimar em excesso o cão que,
depois que eu for embora, continuará atrás de pedaços de pizza,
churrascos e bolinhas de tênis.
Rex é um cachorro problemático. Bem,
todos devem ser, convivendo conosco. Não se deve confiar em cães.
Ou você teria coragem de tirar a bolinha de tênis da boca de
Blondie, a cadela pastor alemão do Hitler?
Cachorros vivem a dualidade selva e lar.
Uma espécie de Indiana Jones dos animais. E têm personalidades e
aspectos definidos à nossa comparação. Classificamos cachorros em
curiosos, alegres, reprimidos, obstinados, ciumentos, altruístas,
solitários, risonhos, obedientes e bem-educados, marxistas, de
direita, niilistas, noveleiros, vaidosos, chatos, irresponsáveis,
esquecidos, briguentos, bonitos, gordos, desengonçados, fedorentos,
ridículos, estranhos, enjoados, assexuados, tarados, incompetentes,
displicentes, burros e geniais.
Muitas características são indicadas
pelas raças, efeito de cruzamentos genéticos e históricos: o cão
de guarda, o companheiro, o dócil, o bom com crianças, o pastor, o
caçador, o farejador, o corredor. São características “fabricadas”
de acordo com necessidades culturais e até políticas de uma época.
Devem estar em baixa na Europa cães de guarda ou caçadores de
raposa. Devem estar em alta farejadores de bombas ou entorpecentes.
Cães entram e saem de moda. Logo, logo,
haverá características de tribos mais contemporâneas, o cão gay,
house, acid, mauricinho, hip-hop, hiporonga, cinéfilo, cool,
conversador, panicado, tarja-preta, deprê, samba de raiz, cachorro
cachorra...
A neura de Rex: ele come o próprio rabo
devido a um neuroma (um tumor). Seu remédio: gardenal. Não há
equivalência humana a esse fenômeno psíquico. Um, porque não
temos rabo. A maioria. Mutilar-se é um efeito parecido. Neguinho faz
cortes até em cerimônias religiosas. Mas ninguém mastiga e engole
partes do corpo. Apenas unhas. Qual é a disposição comportamental
do indivíduo-cão que come o próprio rabo?
Rex sofre de depressão. Toma remédio
tarja-preta. Ele quer sumir e começa pela ponta. Seu objetivo é
comer o rabo e depois o resto. Rex está para o melhor amigo do homem
o que Virginia Woolf está para as letras (e Marilyn Manson para a
música). Virou desde cedo o cachorro abajur, com aquela aba patética
na cabeça, que o impede de fazer o que mais almeja: comer-se. Não
queremos que Rex suma da face da Terra.
Rex é o tipo de cachorro que olha pra
você nos olhos e sorri. Você fala com ele, e a resposta é um
latido. Então, o animal se frustra por não expressar em palavras
seus sentimentos, isola-se e se deprime.
Rex não vê televisão com você. Nem a
do Senado. Faz festa quando você chega e depois some pela casa,
esconde-se, fica perdido em seus tormentos ou em raciocínios
labirínticos banais.
Sempre desconfiei que Rex é mais
inteligente do que muitos. Homens. Por isso ele se deprime. O físico
César Lattes costumava dizer que a descoberta da partícula méson
pi, atribuída a ele, fora feita por seu cachorro.
Lattes ficava horas observando-o,
enquanto o cão observava um relógio de parede. Não apenas Rex tem
uma mente brilhante.
Eu só sabia de uma coisa, quando o
hospedei: eu tinha de passear com ele duas vezes por dia. O resto?
Havia um saco enorme de ração: seu mensalão.
Um problema: já é trabalhoso pôr a
coleira num cão comum, imagine num psicótico hiperativo. Como eu
teria que sair com ele à noite, deixava-o já encoleirado. Péssimo.
Às vezes, sentia Rex calado demais, quando ia investigar, ele havia
se enroscado em algo com a coleira e ficava na posição me
esperando.
O bairro deve ter estranhado eu, na
cadeira de rodas, e um cão abajur, procurando um lugar para ele
cheirar e relaxar. A força que o bicho fazia era de derrubar o
Super-Homem. Eu tinha de me concentrar para não ser arrastado por
ele.
Descobri que se eu amarrasse bem a
coleira na cadeira, ambos sobreviveríamos. No entanto, certa tarde,
entrei no elevador, enrolei a coleira na mão e fechei a porta. Sem
perceber, Rex não entrara. A sorte é que dei uma olhadinha antes.
Imagine se aperto o botão do meu andar...
Eu estaria digitando com apenas uma mão.
E seu rabo não seria mais ameaçado pelos dentes nervosos do próprio
dono.
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola
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