sexta-feira, 19 de novembro de 2021

O álbum branco | 5

Por volta das cinco da manhã de 28 de outubro de 1967, no distrito inóspito entre a baía de São Francisco e o estuário que a polícia de Oakland chama de Beat 101A, um militante negro de 25 anos chamado Huey P. Newton foi parado e interrogado por um policial branco chamado John Frey Jr. Uma hora depois, Huey Newton estava sob custódia no hospital Kaiser em Oakland, onde deu entrada para tratamento emergencial de um ferimento a bala na barriga. Algumas semanas depois, ele foi indiciado pelo tribunal do condado de Alameda, acusado de assassinar John Frey, ferir outro policial e sequestrar um transeunte.
Na primavera de 1968, quando Huey Newton estava aguardando julgamento, fui vê-lo na prisão do condado de Alameda. Suponho que fui porque estava interessada na alquimia dos problemas, e um dos problemas era o que Huey Newton se tornara àquela altura. Para entender como isso aconteceu, você deve primeiro ter Huey Newton em mente, quem ele era. Huey Newton veio de uma família de Oakland, e, por um tempo, frequentou a faculdade em Merritt. Em outubro de 1966, acompanhado de um amigo chamado Bobby Seale, organizaram o que chamaram de Partido dos Panteras Negras. Pegaram o nome emprestado do emblema usado pelo Partido da Liberdade do condado de Lowndes, no Alabama, e desde o início se autodefiniram como um grupo político revolucionário. A polícia de Oakland conhecia os Panteras e tinha uma lista dos cerca de vinte carros dos membros. Não estou alegando aqui que Huey Newton não matou John Frey. No contexto das políticas revolucionárias, a culpa ou inocência de Huey Newton é irrelevante. Só estou dizendo como ele foi parar na prisão do condado de Alameda, e por que manifestações eram feitas em seu nome, protestos organizados sempre que ele aparecia nas audiências. Vamos lá, Huey, diziam os bótons (cinquenta centavos cada), e aqui e ali nos degraus do tribunal, entre os Panteras com seus óculos de sol e boinas, os cantos iam se elevar:

Pega o M 31.
Que a gente vai
Brincar com algum
BUM BUM. BUM BUM.

Lute, irmão”, uma mulher acrescentaria como em um amém bem-humorado. “Bangue-bangue.”


Palhaçada, palhaçada.
Não suporto o jogo
Que o branco está jogando.
Única saída, única saída.
BUM BUM. BUM BUM.

No corredor do térreo do tribunal do condado de Alameda, havia uma aglomeração de advogados, correspondentes da CBC, operadores de câmera e pessoas que queriam “visitar Huey”.
O Eldridge não vai se importar se eu subir”, disse um dos últimos para um dos advogados.
Se o Eldridge não se importa, por mim tudo bem”, respondeu o advogado. “Se você tiver credenciais de imprensa.”
Minhas credenciais são meio duvidosas.”
Então não posso deixar você ir lá em cima. O Eldridge tem credenciais duvidosas. Uma é ruim o suficiente. Tenho boas relações de trabalho aqui, não quero ferrar com isso.” O advogado se virou para um operador de câmera. “Já estão gravando?”
Naquele dia em particular, fui autorizada a subir. Um homem do Los Angeles
Times e um locutor de rádio subiram comigo. Assinamos o registro policial, sentamo-nos a uma mesa de madeira de pinho cheia de marcas e esperamos por Huey Newton.
A única coisa que vai dar a liberdade para Huey Newton”, dissera Rap Brown há pouco tempo em uma manifestação dos Panteras no auditório de Oakland, “é o poder das armas”.
Huey Newton entregou a vida por nós”, Stokely Carmichael dissera naquela mesma noite.
Porém, é claro que Huey Newton ainda não havia entregado a vida de maneira alguma. Estava na prisão do condado de Alameda esperando para ser julgado, e me perguntei se o rumo que essas manifestações estavam tomando tinha alguma vez deixado Huey preocupado, com a suspeita de que, em muitos sentidos, ele era mais útil para a revolução atrás das grades do que na rua. Quando enfim chegou, Huey parecia um jovem extremamente simpático, envolvente e franco. Não tive a impressão de que pretendia virar um mártir político. Ele sorriu para nós, esperou o advogado (Charles Garry) preparar um gravador e conversou baixinho com Eldridge Cleaver, que na época era ministro da Informação dos Panteras Negras. (Huey Newton era o ministro da Defesa.) Eldridge Cleaver usava um suéter preto e um único brinco de ouro. Falava de forma arrastada, quase inaudível, e estava autorizado a ver Huey Newton porque tinha aquelas “credenciais duvidosas”: um crachá de imprensa da Ramparts. O interesse dele era conseguir “declarações” de Huey Newton, “mensagens” para levar para o mundo lá fora; era receber um tipo de profecia para ser interpretada de acordo com a necessidade.
A gente precisa de uma declaração, Huey, a respeito do programa dos dez pontos”, disse Eldridge Cleaver. “Então vou fazer uma pergunta, entende, e você responde…”
Como o Bobby está?”, quis saber Huey Newton.
Ele tem uma audiência de delitos menores, entende…”
Achei que ele tinha sido acusado de crime grave.”
Bom, essa é outra coisa, a acusação de crime grave, ele também conseguiu algumas por delitos menores…”
Assim que Charles Garry tinha preparado o gravador, Huey Newton parou de conversar e começou a palestrar, quase sem parar. Ele falou, embolando as palavras, porque as tinha pronunciado tantas vezes antes, do “sistema capitalista-materialista dos Estados Unidos”, da “assim chamada livre iniciativa” e “da luta por liberdade das pessoas negras em todo o mundo”. Vez ou outra, Eldridge Cleaver fazia um sinal para Huey Newton e dizia algo como: “Há um bocado de gente interessada no Mandato Executivo Número Três que você emitiu para o Partido dos Panteras Negras, Huey. Gostaria de comentar alguma coisa?”
Lógico que Huey Newton ia comentar.
Sim. O Mandato Número Três é essa reivindicação do Partido dos Panteras Negras falando pela comunidade negra. A partir dele, a gente admoesta a força policial racista…”
Eu queria que ele falasse de si mesmo, esperando romper o muro retórico, mas Huey parecia ser um daqueles autodidatas para quem todas as coisas específicas e pessoais se apresentam como campos minados a serem evitados às custas da coerência, para quem a segurança reside na generalização. O homem do jornal e o homem do rádio tentaram:

Pergunta: Nos diga alguma coisa a seu respeito, Huey, e me refiro à sua vida antes dos Panteras.
Resposta: Antes dos Panteras minha vida era bem parecida com a da maioria das pessoas negras deste país.
P. Bom, sua família, alguns incidentes que você recorda, as influências que moldaram você…
R. Viver nos Estados Unidos me moldou.
P. Bom, sim, mas de forma mais específica…
R. Isso me lembra de uma citação do James Baldwin: “Ser negro e consciente nos Estados Unidos é viver em um estado de raiva constante.”

Ser negro e consciente nos Estados Unidos é viver em um estado de raiva constante”, Eldridge Cleaver escreveu em letras enormes em um bloco de notas, e aí acrescentou: “Huey P. Newton citando James Baldwin.” Podia visualizar isso estampado acima da plataforma dos alto-falantes em uma manifestação, impresso no papel timbrado de um comitê ad hoc ainda por nascer. A bem da verdade, quase tudo que Huey Newton dizia tinha cara de ser uma “citação”, um “pronunciamento” para ser utilizado quando a oportunidade surgisse. Eu tinha ouvido Huey P. Newton Sobre o Racismo (“O Partido dos Panteras Negras é contra o racismo”), Huey P. Newton Sobre o Nacionalismo Cultural (“O Partido dos Panteras Negras acredita que a única cultura pela qual vale a pena lutar é a cultura revolucionária”), Huey P. Newton Sobre o Radicalismo Branco, Sobre a Ocupação Policial do Gueto, Sobre o Europeu Versus o Africano. “O europeu começou a ficar doente quando negou a natureza sexual”, disse Huey Newton, e nesse ponto Charles Garry o interrompeu, conduzindo a pauta de volta ao essencial. “Mas não é verdade, Huey, que o racismo começou por razões econômicas?”
Essa interlocução estranha pareceu assumir vida própria. Estava quente naquele cômodo pequeno, a luz fluorescente me incomodava e eu ainda não sabia em que medida Huey Newton entendia a natureza do papel para o qual fora escalado. Por acaso eu sempre gostei da lógica da posição dos Panteras, baseada na proposição segundo a qual o poder político começava no final do cano de uma arma (as armas exatas já tinham até sido especificadas em um memorando anterior de Huey P. Newton: “carabina .45 do Exército; espingarda Magnum calibre 12 com cano 18, de preferência da marca High Standard; M-16; pistolas Magnum .357; P-38”), e também conseguia apreciar a beleza de considerar Huey Newton um “problema”. Nas politicagens da revolução, todo mundo era descartável, mas eu duvidava de que a sofisticação política de Huey Newton pudesse se alargar até ele ver a si mesmo dessa forma. É fácil enxergar o valor de um caso Scottsboro quando não se é um menino Scottsboro. “Há mais alguma coisa que queiram perguntar para Huey?”, indagou Charles Garry. Não parecia haver. O advogado ajustou o gravador. “Tenho um pedido, Huey, de um estudante do ensino médio, repórter do jornal da escola. Ele queria uma declaração sua, e vai me telefonar hoje à noite. Gostaria de me confiar uma mensagem para ele?”
Huey Newton fitou o microfone. Houve um momento em que pareceu não lembrar o xis da questão, então se iluminou. “Gostaria de destacar”, falou, a voz ganhando volume à medida que os discos de memória eram ativados, ensino médio, estudante, juventude, mensagem para a juventude, “que os Estados Unidos estão se tornando uma nação muito jovem…”.

Ouvi um gemido e um lamento. Fui checar e… esse cara negro estava lá. Tinha sido baleado na barriga e não parecia estar em sofrimento insuportável, então eu disse que ia avaliar o ferimento. Perguntei para ele se era um Kaiser, se era do Kaiser, e ele respondeu: “Sim, sim. Chama um médico. Não vê que eu estou sangrando? Levei um tiro. Agora traz alguém aqui.”
Perguntei se tinha o crachá do Kaiser e ele ficou perturbado com isso.
Qual é? Traz um médico aqui. Eu levei um tiro.”
Estou vendo, mas você não parece estar em nenhum sofrimento insuportável.”
Então eu disse que a gente precisava conferir para ter certeza de que ele era um membro. […] E isso meio que o perturbou ainda mais. Ele me chamou de alguns nomes feios e falou: “Traz um médico aqui agora mesmo, levei um tiro e estou sangrando.” Então tirou o casaco e a camisa, e os jogou ali no balcão. “Não está vendo esse sangue todo?”
Estou.” Não era tanto assim, então respondi: “Bom, você tem que assinar a ficha de admissão antes de um médico examinar você.”
Não vou assinar nada.”
Você não pode ser examinado por um médico a menos que assine a ficha de admissão.”
Não tenho que assinar nada”, e esbravejou mais umas poucas e boas.

Esse é um excerto do testemunho, perante o tribunal do condado de Alameda, de Corrine Leonard, a enfermeira encarregada da emergência do hospital da Fundação Kaiser, em Oakland, às 5h30 da manhã do dia 28 de outubro de 1967. Claro que o “cara negro” era Huey Newton, ferido naquela manhã durante o tiroteio que matou John Frey. Por um bom tempo deixei uma cópia desse testemunho fixada na parede do escritório, seguindo a teoria de que ilustrava um choque de culturas, um exemplo clássico de alguém historicamente excluído confrontando a ordem estabelecida em seu nível mais mesquinho e impenetrável. Essa teoria foi esmigalhada quando soube que Huey Newton era, de fato, um membro registrado do Plano de Saúde da Fundação Kaiser, ou seja, nas palavras da enfermeira Leonard, “um Kaiser”.

Joan Didion, in O álbum branco

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