quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O álbum branco | 2

Nesse período, eu estava morando em uma casa enorme na parte de Hollywood que um dia fora cara, mas que agora era descrita por um de meus conhecidos como a “vizinhança da matança sem sentido”. A casa na Franklin Avenue era alugada. A tinta descascava dentro e fora da residência, canos quebravam, caixilhos de janelas desmoronavam e a quadra de tênis não era aplainada desde 1933, mas havia muitos quartos, o pé-direito era alto e, ao longo dos cinco anos que morei ali, até mesmo a inércia um tanto sinistra da vizinhança sugeria que eu viveria naquela casa para sempre.
Mas eu não podia. Os donos estavam só esperando por uma mudança de zoneamento para pôr a casa abaixo e construir um prédio de apartamentos de luxo. Aliás, era essa destruição iminente, mas não imediata, que dava um caráter especial à vizinhança. A casa do outro lado da rua havia sido construída por uma das irmãs Talmadge, fora o consulado japonês em 1941 e agora, apesar de fechada por tábuas, era ocupada por alguns adultos sem relação de parentesco que pareciam formar algum tipo de grupo terapêutico. A casa ao lado pertencia à Synanon. Lembro-me de uma casa na esquina com uma placa de “Aluga-se”: o imóvel havia sido o consulado canadense, contava com 28 quartos grandes e dois closets refrigerados cheios de casacos de pele. Fazendo jus à vizinhança, só podia ser alugada em caráter mensal, desmobiliada. Uma vez que a disposição de alugar uma casa desmobiliada de 28 quartos por um mês ou dois é nitidamente extraordinária, a vizinhança era povoada sobretudo por bandas de rock, grupos terapêuticos e mulheres bem velhinhas, cujas cadeiras de rodas eram empurradas rua abaixo por enfermeiras em uniformes sujos. Além, é claro, de meu marido, minha filha e eu.

Pergunta: E o que mais aconteceu, se aconteceu…
Resposta: Ele disse que achava que eu podia ser uma estrela, tipo, sabe, um jovem Burt Lancaster, esse tipo de coisa.
P. Ele mencionou algum nome em especial?
R. Sim, senhor.
P. Qual nome?
R. Ele mencionou uma série de nomes. Ele falou de Burt Lancaster. Falou de Clint Eastwood. Falou de Fess Parker. Mencionou um monte de nomes…
P. Vocês conversaram depois de comer?
R. Enquanto a gente comia, depois de comer. O sr. Novarro viu nossa sorte nas cartas e leu nossa mão.
P. Ele disse que você ia ter uma sorte tremenda, ou má sorte, ou o que aconteceu?
R. Ele não era bom em ler mãos.
Esses são trechos do testemunho de Paul Robert Ferguson e Thomas Scott Ferguson, irmãos com 22 e 17 anos respectivamente, durante o julgamento pelo assassinato de Ramon Novarro, de 69 anos, na casa dele em Laurel Canyon, não muito longe da minha em Hollywood, na noite de 30 de outubro de 1968. Acompanhei esse julgamento de perto, recortando matérias de jornais e depois pegando uma transcrição emprestada com um dos advogados de defesa. O mais novo dos irmãos, “Tommy Scott” Ferguson, cuja namorada testemunhou que deixou de estar apaixonada por ele “mais ou menos duas semanas após o julgamento”, não conhecia a carreira do sr. Novarro como ator de filmes mudos até ter visto, a certa altura da noite do assassinato, uma fotografia do anfitrião como Ben-Hur. O irmão mais velho, Paul Ferguson, que começou a trabalhar em parques de diversões quando tinha 12 anos e descrevia a si mesmo aos 22 como tendo tido “uma vida agitada e boa”, deu ao júri, a pedidos, sua definição de malandro: “Um malandro é alguém que sabe conversar — não só com homens, com mulheres também. Que sabe cozinhar. Sabe fazer companhia. Lavar um carro. Várias coisas formam um malandro. Tem um monte de gente solitária nessa cidade, cara.” Ao longo do julgamento, cada um dos irmãos acusou o outro do assassinato. No fim, os dois foram condenados. Li a transcrição várias vezes, tentando ver o cenário por um ângulo que não sugerisse que eu vivia, como o relatório psiquiátrico apontou, “em um mundo de pessoas movidas por impulsos estranhos, conflitantes, mal compreendidos e, acima de tudo, tortuosos”. Nunca conheci os irmãos Ferguson.
Conheci uma das figuras centrais de outro julgamento de assassinato do condado de Los Angeles durante aqueles anos: Linda Kasabian, principal testemunha de acusação no que ficou conhecido popularmente como “Julgamento Manson”. Certa vez, perguntei a Linda o que ela achava da sequência de eventos aparentemente fortuita que a levou ao Spahn Movie Ranch e então à penitenciária de Sybil Brand sob a acusação, depois retirada, de assassinar Sharon Tate Polanski, Abigail Folger, Jay Sebring, Voytek Frykowski, Steven Parent e Rosemary e Leno LaBianca. “Tudo acontece para me ensinar algo”, respondeu Linda. Ela não acreditava que o acaso fosse desprovido de padrão. Linda agia de acordo com o que identifiquei posteriormente como teoria dos dados. Aliás, durante aqueles anos, eu agia da mesma maneira.
Talvez o clima daqueles anos fique mais evidente se eu disser que, ao longo deles, eu não conseguia visitar minha sogra sem desviar os olhos de um poema emoldurado, uma “prece para o lar”, que ficava pendurado em um corredor da casa dela em West Hartford, Connecticut:

Deus sustente os cantos deste lar
E bem-aventurado seja o batente
E sustente a lareira e sustente as tábuas
E sustente cada ambiente
E sustente a janela de cristal que deixa
a luz das estrelas entrar
E sustente cada porta que abre bem, para o estranho
e o familiar.

Esse poema me dava calafrios. Aquilo parecia o tipo de detalhe “irônico” de que os repórteres se apoderariam na manhã em que os corpos fossem encontrados. Em minha vizinhança na Califórnia, a gente não tinha uma “prece para o lar”, não abençoávamos as portas que se abriam para o estranho. Paul e Tommy Scott Ferguson eram os estranhos na porta de Ramon Novarro, em Laurel Canyon. Charles Manson era o estranho na porta de Rosemary e Leno LaBianca, em Los Feliz. Alguns estranhos batiam à porta e inventavam uma razão para entrar: uma ligação, por exemplo, para a companhia de seguros a respeito de um carro que não estava à vista. Outros só abriam a porta e entravam, e eu ia me deparar com eles no saguão. Lembro-me de perguntar a um desses estranhos o que ele queria. Olhamos um para o outro pelo que pareceu um tempo enorme, e então ele viu meu marido no primeiro degrau da escada. “Entrega de frango frito”, respondeu por fim, mas não tínhamos pedido frango. Ele também não segurava nada. Peguei o número da placa do furgão dele. Ao longo daqueles anos, eu estava sempre anotando números de placas de furgões, veículos dando a volta no quarteirão, estacionados do outro lado da rua, ou em ponto morto no cruzamento. Colocava esses números na gaveta de um toucador onde poderiam ser encontrados pela polícia quando o momento chegasse.
Nunca duvidei de que o momento ia chegar, pelo menos não nos lugares inacessíveis da mente, onde cada vez mais eu parecia viver. Tantos encontros naqueles anos eram desprovidos de qualquer lógica, exceto a fantasiosa. No casarão da Franklin Avenue muita gente parecia entrar e sair sem qualquer relação com aquilo que eu fazia. Sabia onde os lençóis e as toalhas eram guardados, mas nem sempre sabia quem estava dormindo em cada cama. Tinha as chaves, mas não a chave. Lembro-me de tomar um Compazine de 25 miligramas em um domingo de Páscoa e preparar um almoço enorme e sofisticado para algumas pessoas, muitas das quais ainda estavam lá na segunda-feira. Lembro-me de andar de pés descalços o dia inteiro no piso de madeira gasto daquela casa e lembro-me de “Do You Wanna Dance” na vitrola, “Do You Wanna Dance”, “Visions of Johanna” e uma música chamada “Midnight Confessions”. Lembro-me de uma babá dizendo que viu a morte em minha aura. Lembro-me de conversar com ela a respeito daquilo, de lhe pagar, abrir todos os janelões e ir dormir na sala.
Era difícil me surpreender naqueles anos. Era difícil até mesmo conseguir minha atenção. Estava absorvida por minha intelectualização, meus dispositivos obsessivo-compulsivos, minha projeção, minha formação reativa, minha somatização e pela transcrição do julgamento dos Ferguson. Um músico que eu conhecera alguns anos antes me ligou de um hotel em Tuscaloosa para contar como poderia me salvar com a cientologia. Tinha encontrado com ele uma vez na vida, conversado por talvez meia hora sobre arroz integral e tabelas, e agora ele estava me falando do Alabama de E-metro e de como eu podia ficar “limpa”. Recebi uma ligação de um estranho em Montreal que parecia querer me recrutar para uma operação de narcóticos. “É tranquilo falar nesse telefone?”, perguntou várias vezes. “O Grande Irmão não está ouvindo?”
Disse que duvidava, embora cada vez duvidasse menos.
Porque o que a gente está falando, no fundo, é de aplicar a filosofia zen a dinheiro e negócios, sabe? E se eu digo que a gente vai financiar o submundo, e se menciono dinheiro grande, você sabe do que estou falando, né? Você sabe o que está pegando, né?”
Talvez ele não estivesse falando de narcóticos. Talvez estivesse falando de gerar lucro com rifles M-1. Eu havia parado de procurar a lógica naquelas ligações. Em 1968, uma pessoa com quem eu tinha estudado em Sacramento, e visto pela última vez em 1952, apareceu em minha casa em Hollywood como detetive particular de West Covina, uma das poucas mulheres habilitadas do estado da Califórnia. “Chamam a gente de Dick Tracy sem pau”, disse ela, em tom preguiçoso, mas espalhando o jornal do dia na mesa do saguão. “Tenho um monte de amigos bem próximos entre as autoridades policiais. Talvez você queira conhecer alguns deles.” Trocamos promessas de manter contato, mas nunca mais nos vimos. Um encontro nada atípico daquele período. Os anos 1960 tinham terminado antes de me ocorrer que essa visita pode não ter sido exclusivamente social.

Joan Didion, in O álbum branco

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