quarta-feira, 10 de novembro de 2021

I – Metafísica do amor (trecho)

Ó, vós, sábios, cuja ciência é elevada e profunda, que meditastes e que sabeis onde, quando e como tudo se une na natureza, para que são todos esses amores, esses beijos; vós, sublimes sábios, dizei-mo! Torturai o vosso espírito sutil e dizei-me onde, quando e como me sucedeu amar, por que me foi dado amar?”
Bürger

Habitualmente vê-se os poetas ocupados em pintar o amor. A pintura do amor é o assunto principal de todas as obras dramáticas, trágicas ou cômicas, românticas ou clássicas, tanto nas Índias como na Europa: é igualmente o mais fecundo de todos os assuntos, tanto para a poesia lírica como para a poesia épica, sem falar da grande quantidade de romances que, há séculos, se produzem todos os anos nos países civilizados da Europa, tão regularmente como os frutos das estações. Todas essas obras no fundo são descrições variadas e mais ou menos desenvolvidas dessa paixão. As pinturas mais perfeitas, Romeu e Julieta, a nova Heloísa, Werther adquiriram glória imortal. Dizer como La Rochefoucauld que o amor apaixonado é como os espectros de que todos falam, mas que ninguém viu; ou então contestar como
Lichtenberg, no seu Ensaio sobre o poder do amor, a realidade dessa paixão e negar que seja conforme à natureza é um grande erro. Porque é impossível conceber como um sentimento estranho ou contrário à natureza humana, como uma pura fantasia, o que o gênio dos poetas não se cansa de pintar, nem a humanidade de acolher com inabalável simpatia; visto que, sem verdade, não há arte completa.

Nada é tão belo como a verdade; só a verdade é agradável.
Boileau

Assim, a experiência geral, embora não se renove todos os dias, prova que uma inclinação viva e ainda suscetível de ser governada pode, sob o império de certas circunstâncias, aumentar e exceder pela sua violência todas as outras paixões, desviar todas as considerações, vencer todos os obstáculos com uma força e uma perseverança incríveis, a ponto de se arriscar sem hesitação a vida para satisfazer o desejo, e perdê-la até, se esse desejo é sem esperança. Não é só nos romances que existem Werther e Jacopo Ortiz; todos os anos, a Europa poderia apresentar pelo menos uma meia dúzia: sed ignotis perierunt mortibus illi. Eles são mortos desconhecidos, cujos sofrimentos têm apenas como cronista o empregado que registra os óbitos, e como anais as notícias diversas da imprensa. As pessoas que leem os jornais franceses e ingleses podem atestar a exatidão do que afirmo. Mas, maior ainda é o número daqueles a quem essa paixão conduz ao manicômio. Enfim, verificam-se todos os anos diversos casos de duplo suicídio, quando dois amantes desesperados tornam-se vítimas das circunstâncias exteriores que os separam; quanto a mim, nunca compreendi como é que dois entes que se amam, e julgam encontrar nesse amor a suprema felicidade, não preferem romper violentamente com todas as convenções sociais e sofrer toda a espécie de vergonha a abandonar a vida renunciando a uma felicidade além da qual nada podem imaginar. – Quanto aos graus inferiores, aos ligeiros ataques dessa paixão, todos os têm diariamente sob os olhos, e, por menos jovem que seja, também a maior parte do tempo no coração.
Não é portanto permitido duvidar da realidade do amor, nem da sua importância. Em vez de causar admiração que um filósofo procure também apoderar-se desse assunto, tema eterno de todos os poetas, deve antes surpreender que uma questão que representa na vida humana um papel tão importante tenha sido, até agora, descurada pelos filósofos, e se encontre diante de nós como uma matéria nova. De todos os filósofos, foi ainda Platão quem mais se ocupou do amor, principalmente no Banquete e no Fedro. O que ele diz sobre o assunto entra no domínio dos mitos, das fábulas e dos ditos equívocos e, sobretudo, diz respeito ao amor grego. O pouco que sobre isso diz Rousseau, em seu Discours sur l’inégalité, é falso e insuficiente; Kant, na terceira parte do Traité sur le sentiment du beau et du sublime, trata tal assunto de um modo demasiado superficial, e por vezes inexato, como quem não entende nada do caso. Platner, na sua antropologia, apenas nos oferece ideias medíocres e vulgares.
A definição de Spinoza merece ser citada pela sua extrema simplicidade: Amor est titillatio, concomitante idea causae externae (Eth. IV, prop. 44, dem.). Não tenho, portanto, que me servir dos meus predecessores, nem que os refutar. Não foi pelos livros, foi pela observação da vida exterior que este assunto se me impôs, e tomou lugar no conjunto das minhas considerações sobre o mundo. – Não espero a aprovação nem o elogio dos amorosos, que procuram naturalmente exprimir com as imagens mais sublimes e etéreas a intensidade dos seus sentimentos: a esses, o meu ponto de vista há de parecer demasiado físico, demasiado material, por muito metafísico e transcendente que ele seja no fundo. Possam eles notar, antes de me julgarem, que o objeto do seu amor, que hoje exaltam em madrigais e sonetos, mal lhes teria obtido um olhar se tivesse aparecido dezoito anos antes.
Qualquer inclinação terna, seja qual for a atitude etérea que afete, tem, na realidade, todas as suas raízes no instinto natural dos sexos; e não é mesmo outra coisa senão esse instinto especial, determinado, e perfeitamente individualizado. Isso posto, se observarmos o papel importante que o amor representa em todos os graus e em todas as suas fases, não só nas comédias e nos romances, mas também no mundo real, onde é, com o amor pela vida, a mais poderosa e a mais ativa de todas as molas; se pensarmos que ocupa continuamente as forças da parte mais jovem da humanidade, que é o último fim de quase todo esforço humano, que tem uma influência perturbadora nos negócios mais importantes, que interrompe a todo momento as ocupações mais sérias, que por vezes altera os maiores espíritos, que não tem escrúpulo em lançar as suas frivolidades nas negociações diplomáticas e nos trabalhos dos sábios, que chega até a introduzir as suas cartas meigas e as suas madeixas de cabelo nas pastas dos ministros e nos manuscritos dos filósofos, o que não o impede de ser todos os dias o promotor dos piores e mais intrincados negócios – que rompe as mais preciosas relações, quebra os mais sólidos laços, torna vítimas ou a vida ou a saúde, a riqueza, a situação e a felicidade, faz do homem honesto um homem sem honra, do fiel, um traidor, que parece ser qual demônio malfazejo que se esforça por alterar, transtornar e destruir tudo; – sentir-nos-emos então prontos a bradar: Para que tanto ruído? Para que esses esforços, essas violências, essas ansiedades e essa miséria? Contudo trata-se apenas de uma coisa bem simples, que cada João encontre a sua Joana. Por que é que semelhante bagatela representa um papel tão importante e leva incessantemente a perturbação e a discórdia à vida bem regrada dos homens? – Mas, para o pensador sério, o espírito da verdade desvenda pouco a pouco essa resposta: não se trata de uma ninharia, longe disso, a importância do assunto é igual à seriedade e à violência com que é tratado.
O fim definitivo de todo empreendimento amoroso, quer descambe no trágico ou no cômico, é realmente, entre os diversos fins da vida humana, o mais grave e o mais importante, e merece a profunda seriedade com que todos se lhe dedicam.
De fato, essa questão é nada menos que a combinação da próxima geração. Os dramatis personae, os atores que hão de entrar em cena quando dela sairmos, encontrar-se-ão assim determinados na sua existência e na sua natureza por essa paixão tão frívola.
Assim como o ser, a Existentia dessas pessoas futuras tem, como condição absoluta, o instinto do amor em geral; a própria natureza do seu caráter, a sua Essentia, depende absolutamente da escolha individual do amor dos sexos, e encontra-se assim irrevogavelmente fixada a todos os respeitos. Eis a chave do problema: conhecê-la-emos melhor quando tivermos percorrido todos os graus do amor, desde a mais fugitiva inclinação até a paixão mais veemente: reconheceremos então que a sua diversidade nasce do grau da individualização na escolha.
Todas as paixões amorosas da geração presente não são, portanto, para a humanidade inteira, senão a séria meditatio compositionis generationis futurae, e quâ iterum pendent innumerae generationis. De fato, não se trata, como nas outras paixões humanas, de uma desgraça ou de uma vantagem individual, mas da existência e da constituição especial da humanidade futura: a vontade individual atinge, nesse caso, o seu maior poder, transforma-se em vontade da espécie. – É sobre esse grande interesse que repousam o patético e o sublime do amor, os seus transportes, as suas dores infinitas que os poetas há muitos séculos não se cansam de representar em exemplos sem número. Que outro assunto seria superior em interesse àquele que trata do bem ou do mal da espécie? Porque o indivíduo é para a espécie o que a superfície dos corpos é para os próprios corpos. É por isso que se torna tão difícil despertar interesse num drama onde se não introduza uma intriga amorosa; e, contudo, não obstante o uso diário que se lhe dá, o assunto nunca se esgota.

Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo

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