“Ó, vós, sábios, cuja ciência é
elevada e profunda, que meditastes e que sabeis onde, quando e como
tudo se une na natureza, para que são todos esses amores, esses
beijos; vós, sublimes sábios, dizei-mo! Torturai o vosso espírito
sutil e dizei-me onde, quando e como me sucedeu amar, por que me foi
dado amar?”
Bürger
Habitualmente vê-se os poetas ocupados
em pintar o amor. A pintura do amor é o assunto principal de todas
as obras dramáticas, trágicas ou cômicas, românticas ou
clássicas, tanto nas Índias como na Europa: é igualmente o mais
fecundo de todos os assuntos, tanto para a poesia lírica como para a
poesia épica, sem falar da grande quantidade de romances que, há
séculos, se produzem todos os anos nos países civilizados da
Europa, tão regularmente como os frutos das estações. Todas essas
obras no fundo são descrições variadas e mais ou menos
desenvolvidas dessa paixão. As pinturas mais perfeitas, Romeu e
Julieta, a nova Heloísa, Werther adquiriram glória imortal. Dizer
como La Rochefoucauld que o amor apaixonado é como os espectros de
que todos falam, mas que ninguém viu; ou então contestar como
Lichtenberg, no seu Ensaio sobre o poder
do amor, a realidade dessa paixão e negar que seja conforme à
natureza é um grande erro. Porque é impossível conceber como um
sentimento estranho ou contrário à natureza humana, como uma pura
fantasia, o que o gênio dos poetas não se cansa de pintar, nem a
humanidade de acolher com inabalável simpatia; visto que, sem
verdade, não há arte completa.
Nada é tão belo como a verdade; só
a verdade é agradável.
Boileau
Assim, a experiência geral, embora não
se renove todos os dias, prova que uma inclinação viva e ainda
suscetível de ser governada pode, sob o império de certas
circunstâncias, aumentar e exceder pela sua violência todas as
outras paixões, desviar todas as considerações, vencer todos os
obstáculos com uma força e uma perseverança incríveis, a ponto de
se arriscar sem hesitação a vida para satisfazer o desejo, e
perdê-la até, se esse desejo é sem esperança. Não é só nos
romances que existem Werther e Jacopo Ortiz; todos os anos, a Europa
poderia apresentar pelo menos uma meia dúzia: sed ignotis
perierunt mortibus illi. Eles são mortos desconhecidos, cujos
sofrimentos têm apenas como cronista o empregado que registra os
óbitos, e como anais as notícias diversas da imprensa. As pessoas
que leem os jornais franceses e ingleses podem atestar a exatidão do
que afirmo. Mas, maior ainda é o número daqueles a quem essa paixão
conduz ao manicômio. Enfim, verificam-se todos os anos diversos
casos de duplo suicídio, quando dois amantes desesperados tornam-se
vítimas das circunstâncias exteriores que os separam; quanto a mim,
nunca compreendi como é que dois entes que se amam, e julgam
encontrar nesse amor a suprema felicidade, não preferem romper
violentamente com todas as convenções sociais e sofrer toda a
espécie de vergonha a abandonar a vida renunciando a uma felicidade
além da qual nada podem imaginar. – Quanto aos graus inferiores,
aos ligeiros ataques dessa paixão, todos os têm diariamente sob os
olhos, e, por menos jovem que seja, também a maior parte do tempo no
coração.
Não é portanto permitido duvidar da
realidade do amor, nem da sua importância. Em vez de causar
admiração que um filósofo procure também apoderar-se desse
assunto, tema eterno de todos os poetas, deve antes surpreender que
uma questão que representa na vida humana um papel tão importante
tenha sido, até agora, descurada pelos filósofos, e se encontre
diante de nós como uma matéria nova. De todos os filósofos, foi
ainda Platão quem mais se ocupou do amor, principalmente no Banquete
e no Fedro. O que ele diz sobre o assunto entra no domínio
dos mitos, das fábulas e dos ditos equívocos e, sobretudo, diz
respeito ao amor grego. O pouco que sobre isso diz Rousseau, em seu
Discours sur l’inégalité, é falso e insuficiente; Kant,
na terceira parte do Traité sur le sentiment du beau et du
sublime, trata tal assunto de um modo demasiado superficial, e
por vezes inexato, como quem não entende nada do caso. Platner, na
sua antropologia, apenas nos oferece ideias medíocres e vulgares.
A definição de Spinoza merece ser
citada pela sua extrema simplicidade: Amor est titillatio,
concomitante idea causae externae (Eth. IV, prop.
44, dem.). Não tenho, portanto, que me servir dos meus
predecessores, nem que os refutar. Não foi pelos livros, foi pela
observação da vida exterior que este assunto se me impôs, e tomou
lugar no conjunto das minhas considerações sobre o mundo. – Não
espero a aprovação nem o elogio dos amorosos, que procuram
naturalmente exprimir com as imagens mais sublimes e etéreas a
intensidade dos seus sentimentos: a esses, o meu ponto de vista há
de parecer demasiado físico, demasiado material, por muito
metafísico e transcendente que ele seja no fundo. Possam eles notar,
antes de me julgarem, que o objeto do seu amor, que hoje exaltam em
madrigais e sonetos, mal lhes teria obtido um olhar se tivesse
aparecido dezoito anos antes.
Qualquer inclinação terna, seja qual
for a atitude etérea que afete, tem, na realidade, todas as suas
raízes no instinto natural dos sexos; e não é mesmo outra coisa
senão esse instinto especial, determinado, e perfeitamente
individualizado. Isso posto, se observarmos o papel importante que o
amor representa em todos os graus e em todas as suas fases, não só
nas comédias e nos romances, mas também no mundo real, onde é, com
o amor pela vida, a mais poderosa e a mais ativa de todas as molas;
se pensarmos que ocupa continuamente as forças da parte mais jovem
da humanidade, que é o último fim de quase todo esforço humano,
que tem uma influência perturbadora nos negócios mais importantes,
que interrompe a todo momento as ocupações mais sérias, que por
vezes altera os maiores espíritos, que não tem escrúpulo em lançar
as suas frivolidades nas negociações diplomáticas e nos trabalhos
dos sábios, que chega até a introduzir as suas cartas meigas e as
suas madeixas de cabelo nas pastas dos ministros e nos manuscritos
dos filósofos, o que não o impede de ser todos os dias o promotor
dos piores e mais intrincados negócios – que rompe as mais
preciosas relações, quebra os mais sólidos laços, torna vítimas
ou a vida ou a saúde, a riqueza, a situação e a felicidade, faz do
homem honesto um homem sem honra, do fiel, um traidor, que parece ser
qual demônio malfazejo que se esforça por alterar, transtornar e
destruir tudo; – sentir-nos-emos então prontos a bradar: Para que
tanto ruído? Para que esses esforços, essas violências, essas
ansiedades e essa miséria? Contudo trata-se apenas de uma coisa bem
simples, que cada João encontre a sua Joana. Por que é que
semelhante bagatela representa um papel tão importante e leva
incessantemente a perturbação e a discórdia à vida bem regrada
dos homens? – Mas, para o pensador sério, o espírito da verdade
desvenda pouco a pouco essa resposta: não se trata de uma ninharia,
longe disso, a importância do assunto é igual à seriedade e à
violência com que é tratado.
O fim definitivo de todo empreendimento
amoroso, quer descambe no trágico ou no cômico, é realmente, entre
os diversos fins da vida humana, o mais grave e o mais importante, e
merece a profunda seriedade com que todos se lhe dedicam.
De fato, essa questão é nada menos que
a combinação da próxima geração. Os dramatis personae, os
atores que hão de entrar em cena quando dela sairmos,
encontrar-se-ão assim determinados na sua existência e na sua
natureza por essa paixão tão frívola.
Assim como o ser, a Existentia
dessas pessoas futuras tem, como condição absoluta, o instinto do
amor em geral; a própria natureza do seu caráter, a sua Essentia,
depende absolutamente da escolha individual do amor dos sexos, e
encontra-se assim irrevogavelmente fixada a todos os respeitos. Eis a
chave do problema: conhecê-la-emos melhor quando tivermos percorrido
todos os graus do amor, desde a mais fugitiva inclinação até a
paixão mais veemente: reconheceremos então que a sua diversidade
nasce do grau da individualização na escolha.
Todas as paixões amorosas da geração
presente não são, portanto, para a humanidade inteira, senão a
séria meditatio compositionis generationis futurae, e quâ iterum
pendent innumerae generationis. De fato, não se trata, como nas
outras paixões humanas, de uma desgraça ou de uma vantagem
individual, mas da existência e da constituição especial da
humanidade futura: a vontade individual atinge, nesse caso, o seu
maior poder, transforma-se em vontade da espécie. – É sobre esse
grande interesse que repousam o patético e o sublime do amor, os
seus transportes, as suas dores infinitas que os poetas há muitos
séculos não se cansam de representar em exemplos sem número. Que
outro assunto seria superior em interesse àquele que trata do bem ou
do mal da espécie? Porque o indivíduo é para a espécie o que a
superfície dos corpos é para os próprios corpos. É por isso que
se torna tão difícil despertar interesse num drama onde se não
introduza uma intriga amorosa; e, contudo, não obstante o uso diário
que se lhe dá, o assunto nunca se esgota.
Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo
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