Copio um trecho de uma conferência que
pronunciei no Texas, a convite de uma universidade:
... Nessa minha experiência fui de
início levada a pensar, pela primeira vez com atenção na palavra
vanguarda, e, por uma questão de autoclarificação e
auto-honestidade, precisei também tentar a configuração do que
para mim significava uma vanguarda literária. Vanguarda seria,
também para mim, é claro, experimentação... O que me confundiu um
pouco a respeito de vanguarda como experimentação é que toda
verdadeira arte é experimentação e, lamento muito, toda verdadeira
vida é experimentação... Por que então uma experimentação era
vanguarda e a outra não? Vanguarda seria aquela que revertesse
valores formais e tentasse, por assim dizer, um oposto ao que
estivesse no momento sendo formalmente feito? Seria simplório
demais, além de tão raso quanto as modas. Quem sabe, vanguarda
seria para mim a forma sendo usada como novo elemento estético? Mas
a expressão “elemento estético” não se entende bem comigo. Ou
vanguarda seria a nova forma, usada para rebentar a visão
estratificada e forçar, pela arrebentação, a visão de uma
realidade outra – ou, em suma, da realidade? Isso já estava
melhor. Qualquer verdadeira experimentação levaria a maior
autoconhecimento, o que significaria: conhecimento. Vanguarda seria,
pois, em última análise, um dos instrumentos de conhecimento, um
instrumento avançado de pesquisa. Esse modo de experimentação
partiria de renovações formais, suponhamos, que levariam ao reexame
de conceitos, mesmo de conceitos não formulados, só subentendidos.
Mas poderia também partir da consciência, mesmo não formulada, de
conceitos novos, e revestir-se inclusive de uma forma clássica – e
isso já contrariava o conceito de vanguarda, em estrito senso, como
é geralmente configurada?
Foi então que percebi que minha
dificuldade com a matéria era muito mais funda. É que eu estava
lidando com um assunto afim a duas palavras cujo sentido nunca tivera
muito sentido para mim: refiro-me à expressão forma e fundo. São
palavras usadas em contraposição ou em justaposição, não
importa, mas significando de qualquer maneira divisão. E essa
expressão “forma-fundo” sempre me desagradou vitalmente –
assim como me incomoda a divisão “corpo-alma”, “matéria-energia”
etc. Sem nunca me deter muito no assunto, eu repelia quase de
instinto esse modo de, por se ter cortado verticalmente um fio de
cabelo, passar por isso a julgar que o fio de cabelo compõe-se de
duas metades. Ora, um fio de cabelo não tem metades, a menos que
sejam feitas. Bem sei que usar divisão de fundo e forma talvez seja
às vezes hipótese de trabalho, instrumento para estudo. Se também
eu usasse esse instrumento, vanguarda então seria inovação de
forma? Mas “inovação de forma” podia então implicar conteúdo
ou fundo antigo? Mas que conteúdo é esse que não poderia existir
sem a chamada forma? Que fio de cabelo é esse que existiria
anteriormente ao próprio fio de cabelo? Qual é a existência que é
anterior à existência? Vendo-me tão confusa, então eu me propus,
apenas para facilitar e também apenas para hipótese de avanço meu,
que para mim a palavra “tema” seria aquela que substituiria a
unidade indivisível que é fundo-forma. Um “tema”, sim, pode
preexistir, e dele se pode falar antes, durante e depois da coisa
propriamente dita; mas fundo-forma “é” a coisa propriamente
dita, e do fundo-forma só se sabe ao ler, ver, ouvir, experimentar.
Eu me propus: tema, e a coisa escrita; tema, e a coisa pintada; tema,
e a música; em suma: tema, e viver. Foi só então que consegui me
entender mais, e sobretudo entender melhor o modo como eu via o caso
brasileiro.
Tive que pôr de lado a palavra, no seu
sentido europeu. Pensei, por exemplo, se o nosso movimento de 1922, o
chamado movimento modernista, seria considerado vanguarda por outros
países, em 1922 mesmo. Nesse movimento a experimentação,
característica de uma vanguarda, seria reconhecida como tal por
outras literaturas? O movimento de 1922 foi de profunda libertação,
libertação significa sobretudo um novo modo de ver, libertação é
sempre vanguarda, e também nessa de 1922 quem estava na linha de
frente se sacrificou. Mas libertação é às vezes avanço apenas
para quem se está libertando, e pode não ter valor de moeda
corrente para os outros. Para nós 1922 significou vanguarda, por
exemplo, independentemente de qualquer valor universal. Foi movimento
de posse: um movimento de tomada de nosso modo de ser, de um dos
nossos modos de ser, o mais urgente naquela época, talvez. Que já
tenhamos inclusive ultrapassado 1922, ainda mais o reafirma como
movimento de vanguarda: foi tão absorvido e incorporado que se
superou, o que é característica de vanguarda, e se a 1922 nos
referimos historicamente, na realidade ainda somos resultado dele. O
próprio Mário de Andrade, se ainda vivesse, teria incorporado a si
próprio, ainda mais, o melhor de sua sadia rebelião, e seria hoje
um clássico de si mesmo. O futuro de um homem de vanguarda é amanhã
não ser lido exatamente por aqueles que mais se assemelham a ele,
isto é, exatamente os mais aptos a entender sua necessidade de
procura estarão amanhã ocupados com novos movimentos de procura.
Pensando em vários homens de nossa vanguarda, ocorreu-me sem nenhuma
melancolia que é então, exatamente, que o escritor de vanguarda
terá atingido sua finalidade maior: se terá dado tanto e terá sido
tão bem usado, que amanhã desaparecerá. Eu disse amanhã. Mas
depois de amanhã – passada a vanguarda, passado o necessário
silêncio – depois-de-amanhã ele se levanta de novo. E é claro
que Mário de Andrade não desapareceu: 1922 não foi ontem, foi
anteontem…
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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