sexta-feira, 26 de novembro de 2021

De uma conferência no Texas

Copio um trecho de uma conferência que pronunciei no Texas, a convite de uma universidade:

... Nessa minha experiência fui de início levada a pensar, pela primeira vez com atenção na palavra vanguarda, e, por uma questão de autoclarificação e auto-honestidade, precisei também tentar a configuração do que para mim significava uma vanguarda literária. Vanguarda seria, também para mim, é claro, experimentação... O que me confundiu um pouco a respeito de vanguarda como experimentação é que toda verdadeira arte é experimentação e, lamento muito, toda verdadeira vida é experimentação... Por que então uma experimentação era vanguarda e a outra não? Vanguarda seria aquela que revertesse valores formais e tentasse, por assim dizer, um oposto ao que estivesse no momento sendo formalmente feito? Seria simplório demais, além de tão raso quanto as modas. Quem sabe, vanguarda seria para mim a forma sendo usada como novo elemento estético? Mas a expressão “elemento estético” não se entende bem comigo. Ou vanguarda seria a nova forma, usada para rebentar a visão estratificada e forçar, pela arrebentação, a visão de uma realidade outra – ou, em suma, da realidade? Isso já estava melhor. Qualquer verdadeira experimentação levaria a maior autoconhecimento, o que significaria: conhecimento. Vanguarda seria, pois, em última análise, um dos instrumentos de conhecimento, um instrumento avançado de pesquisa. Esse modo de experimentação partiria de renovações formais, suponhamos, que levariam ao reexame de conceitos, mesmo de conceitos não formulados, só subentendidos. Mas poderia também partir da consciência, mesmo não formulada, de conceitos novos, e revestir-se inclusive de uma forma clássica – e isso já contrariava o conceito de vanguarda, em estrito senso, como é geralmente configurada?
Foi então que percebi que minha dificuldade com a matéria era muito mais funda. É que eu estava lidando com um assunto afim a duas palavras cujo sentido nunca tivera muito sentido para mim: refiro-me à expressão forma e fundo. São palavras usadas em contraposição ou em justaposição, não importa, mas significando de qualquer maneira divisão. E essa expressão “forma-fundo” sempre me desagradou vitalmente – assim como me incomoda a divisão “corpo-alma”, “matéria-energia” etc. Sem nunca me deter muito no assunto, eu repelia quase de instinto esse modo de, por se ter cortado verticalmente um fio de cabelo, passar por isso a julgar que o fio de cabelo compõe-se de duas metades. Ora, um fio de cabelo não tem metades, a menos que sejam feitas. Bem sei que usar divisão de fundo e forma talvez seja às vezes hipótese de trabalho, instrumento para estudo. Se também eu usasse esse instrumento, vanguarda então seria inovação de forma? Mas “inovação de forma” podia então implicar conteúdo ou fundo antigo? Mas que conteúdo é esse que não poderia existir sem a chamada forma? Que fio de cabelo é esse que existiria anteriormente ao próprio fio de cabelo? Qual é a existência que é anterior à existência? Vendo-me tão confusa, então eu me propus, apenas para facilitar e também apenas para hipótese de avanço meu, que para mim a palavra “tema” seria aquela que substituiria a unidade indivisível que é fundo-forma. Um “tema”, sim, pode preexistir, e dele se pode falar antes, durante e depois da coisa propriamente dita; mas fundo-forma “é” a coisa propriamente dita, e do fundo-forma só se sabe ao ler, ver, ouvir, experimentar. Eu me propus: tema, e a coisa escrita; tema, e a coisa pintada; tema, e a música; em suma: tema, e viver. Foi só então que consegui me entender mais, e sobretudo entender melhor o modo como eu via o caso brasileiro.
Tive que pôr de lado a palavra, no seu sentido europeu. Pensei, por exemplo, se o nosso movimento de 1922, o chamado movimento modernista, seria considerado vanguarda por outros países, em 1922 mesmo. Nesse movimento a experimentação, característica de uma vanguarda, seria reconhecida como tal por outras literaturas? O movimento de 1922 foi de profunda libertação, libertação significa sobretudo um novo modo de ver, libertação é sempre vanguarda, e também nessa de 1922 quem estava na linha de frente se sacrificou. Mas libertação é às vezes avanço apenas para quem se está libertando, e pode não ter valor de moeda corrente para os outros. Para nós 1922 significou vanguarda, por exemplo, independentemente de qualquer valor universal. Foi movimento de posse: um movimento de tomada de nosso modo de ser, de um dos nossos modos de ser, o mais urgente naquela época, talvez. Que já tenhamos inclusive ultrapassado 1922, ainda mais o reafirma como movimento de vanguarda: foi tão absorvido e incorporado que se superou, o que é característica de vanguarda, e se a 1922 nos referimos historicamente, na realidade ainda somos resultado dele. O próprio Mário de Andrade, se ainda vivesse, teria incorporado a si próprio, ainda mais, o melhor de sua sadia rebelião, e seria hoje um clássico de si mesmo. O futuro de um homem de vanguarda é amanhã não ser lido exatamente por aqueles que mais se assemelham a ele, isto é, exatamente os mais aptos a entender sua necessidade de procura estarão amanhã ocupados com novos movimentos de procura. Pensando em vários homens de nossa vanguarda, ocorreu-me sem nenhuma melancolia que é então, exatamente, que o escritor de vanguarda terá atingido sua finalidade maior: se terá dado tanto e terá sido tão bem usado, que amanhã desaparecerá. Eu disse amanhã. Mas depois de amanhã – passada a vanguarda, passado o necessário silêncio – depois-de-amanhã ele se levanta de novo. E é claro que Mário de Andrade não desapareceu: 1922 não foi ontem, foi anteontem…

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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