sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Água

 


Na panela, borbulhava a sopa de aroma surpreendentemente bom. O relógio marcava 20h15, horário que já denotava atraso no jantar do domingo. Dona Lourdes acabava de pôr a mesa quando o marido entrou pela porta da cozinha, pegou a lata de torradas, sorriu de canto para ela e sentou-se no lugar que ocupava havia quarenta e dois anos. Ela encheu o copo dele com água fresca, como sempre fazia.
José Luis era homem reservado. Nunca deixou de trabalhar, nem de dar um bonito nó na gravata, ainda que o tecido barato não colaborasse muito. Demonstrava seu amor pela mulher apenas no silêncio da noite, quando, fingindo dormir, abraçava-a até o braço formigar. Sua timidez nunca permitiu mais do que isso e os passeios de mãos dadas nas manhãs de sol.
Eram um casal feliz. Não tiveram filhos – não por falta de tentativa, mas por alguma questão fisiológica que preferiram não investigar –, porém não eram frustrados. Amavam um ao outro, aos sobrinhos e sobrinhos-netos e à gatinha branca que coloria o sofá da sala.
Dona Lourdes encheu a sopeira. Uma de suas formas de demonstrar amor era a incapacidade de levar panelas à mesa quando o marido estava em casa. Escolhia recipientes mais bonitos: travessas, pratos, taças, sopeiras. Era um item a mais para lavar depois. E ela lavava com todo o prazer do mundo.
Ao servir o prato do marido – enquanto ele passava maionese caseira em uma torrada e colocava-a no cantinho do prato da esposa –, perguntou como havia sido o tradicional carteado dominical com os amigos. Ele respondeu que bem, sem grandes detalhes, apenas contando que o Carlos Augusto e o Chico andavam numa baita maré de sorte, levavam quase todas.
Mentir era difícil para José Luis. Sua criação, sua autoexigência e seu terno desbotado mas cheio de honra em nada harmonizavam com mentiras. Mas não tinha naquele peito magro coragem suficiente para contar a verdade à esposa.
Qual não seria o espanto de Dona Lourdes se soubesse onde o marido passava, realmente, as tardes de domingo havia tantos anos? Qual não seria a surpresa dela se descobrisse que não existia carteado? E que o Carlos Augusto, o Chico e o Mário Sérgio eram, na verdade, personagens de livros que o marido lera na adolescência, que nunca tinham saído daquelas páginas, tampouco jogavam buraco, ou tranca, aos finais de semana?
Como reagiria a mulher, perguntava-se ele, envergonhado e culpado por tantos anos de mentiras? Achava que, mais do que magoada pela desonestidade de tantas inverdades, Lourdes o acharia ridículo por fazer coisa dessas a esta altura da vida. Por isso, José Luis decidia sempre manter o discurso. Às vezes, até contava que havia feito uma canastra de às a às.
Depois do jantar, enquanto ela lavava feliz os pratos, a panela e a sopeira, ele foi ao quarto, tirou do bolso um papel dobrado em quatro e abriu, antes de guardá-lo no fundo da gaveta.
Sentia-se mesmo ridículo por, aos setenta e um anos, sair todo domingo de cabelo penteado e lenço no bolso, pegar o ônibus 268 e descer na praça onde, aos vinte e cinco anos, vira pela primeira vez aquela mulher de cabelos cor de ouro que seria sua pela vida toda. Sentava-se no banco onde estava em 1969 quando viu Lourdes sair da mercearia com o vestido verde-água, tirava uma caneta do bolso, desdobrava a folha de papel em branco, e escrevia poemas de amor que nunca teria coragem de entregar à esposa, dobrava a folha de volta com certa vergonha até de si mesmo e ia para casa.
Quando a mulher veio para a cama, estava com uma camisola do mesmo verde que ele nunca perdeu da memória sobre o corpo robusto e pouco flácido, que denunciava a vida simples mas feliz. Ela olhou para ele e sorriu com os lábios, os olhos e os ombros, como lhe era peculiar. Ele apagou a luz para poder abraçá-la o quanto antes.

Em sua cabeça, ecoavam os últimos versos escondidos deste domingo:
Água. Água que nunca houve no negro do seu olhar.
Mas que corre até hoje no verde da minha lembrança.
Água. Água que inunda meu peito de tanto te amar.
Que me trouxe você, quando já não havia esperança.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

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