1.
No princípio eu era de carne e estava
na terra. | Isabela Figueiredo, Caderno de memórias coloniais
|
I
Foram muitos de muitos dias por mar e
terra. E o tempo em que eles estiveram no mar foi de medo, fome,
doença. O mar, eles não sabiam, se afigurava como um grande
ajuntamento de todos os rios, que os assustava com sua boca enorme,
seu rugir mesmo na calmaria, sua respiração de bicho surdo e feroz
por baixo de seus pés. Estremeciam. Tanta água não, nunca haviam
conhecido, um espírito assustador em sua baba salgada, esturrando,
mas onça é que não. Por vezes o próprio céu invertido em água.
Sob seus pés, água que corria, despropositada jiboia; acima da
cabeça deles, água exata em ferir, talvez borduna ou flecha em
vertiginoso voo. Às vezes, sobre seus corpos, a água em cristais
polidos, muito frio, coisas que cortam e matam.
Nenhum deles nunca vira um rio que
falasse tantas águas, rio sem margens. Em nenhum dos rios que
conheciam, tanta fúria, tanto mistério. Nem o Paranáhuazú, a mãe
de todos os rios, a quem os brancos chamam de Amazonas, aquele que
guarda o mundo que existe para a vida que se vive depois de morrer,
nem ele se apresentava tão perigoso, tão ameaçador. Outrossim,
cruzar aquela água infinita e perturbada, imenso rio sem margens,
certamente era morrer sem chegar ao lugar dos antepassados. E embora
o medo corresse por seus ossos e os fizesse tremer, havia ainda que a
grande fera era mesmo a embarcação e aquilo que a colocava em
movimento, a carne bruta e ameaçadora dos marinheiros, a força
invisível, liame que lhe dera ânimo de existir e que permitia, no
intestino do porão, a ânsia, o vômito, a merda já esverdeada e
líquida que o lavava e rescendia a podre e, ainda, os insetos e
ratos, pragas que alimentavam todo sortimento de moléstias.
O navio, pois bem, grande canoa da morte.
Pessoas, plantas, bichos, macacos, kdiziba, tatus, gooi, tamanduás,
heehi e, ainda, os Desencantados. Como chamá-los? Iñe-e pudera
observar ainda em terra os cientistas em seu trabalho de
desencantamento. E logo percebera que não se tratava apenas de matar
o bicho. Era outra atividade. Primeiro, levavam sua alma para a pele
do papel em tão perfeita conformidade que seria possível dizer que
o bicho rastejaria, caso fosse cobra, ou voaria, caso fosse pássaro,
para fora daquele frágil limite. Depois, o desencantamento
prosseguia. E morrer era só uma parte muito pequena daquilo tudo. O
bicho, o bicho mesmo, em força e sangue, era tornado em nada depois
que tudo se dava por encerrado. Morto e destripado, o bicho era
limpo, sendo raspada da pele a carne já desprovida de poder, e o
corpo esvaziado de tudo o que tinha sido um dia, restando um saco
mole e triste, que só depois seria reconstruído com palha ou
qualquer tipo de enchimento que servisse, recebendo, pouco a pouco, a
antiga forma, e sendo assoprada nele aquela outra cara, aquele outro
corpo, aquela boca que, aberta, não mais comeria; que, fechada, não
mais se abriria: e era daí que surgiria o novo bicho, o outro bicho,
muitas vezes inventando um movimento que nunca poderia terminar,
endurecido em uma posição, salto ou bote que a partir daquele
momento jamais poderia se extinguir. Aos olhos de Iñe-e o
desencantamento era uma coisa verdadeiramente assombrosa.
Que vida a deles, a dos Desencantados!
Iñe-e observava tudo aquilo com temor e,
se em cada um daqueles bichos procurava uma voz, um movimento,
procurava neles também reconhecer os olhos da mãe, do irmão, de
qualquer parente que ficara para trás, como se isso fosse possível.
Procurava neles até seus próprios olhos. Perguntando dentro de si
mesma: Será assim que tudo vai acabar? Iñe-e paralisada, fixada na
mesma posição, eternamente, talvez com um olhar triste, talvez com
um olhar surpreso, talvez com um sorriso ao mesmo tempo impassível e
engraçado, ou quem sabe lábios apertados um contra o outro, numa
tristeza capaz de embaraçar quem venha a me observar em qualquer
tempo? E essa larga viagem, em que me levam, é também uma viagem de
desencantamento, de destripamento?
Eram coisas que ela se perguntava como se
já soubesse quais seriam as respostas, antevendo seu retrato na
parede branca de um museu visto por centenas de pessoas que não a
conheciam, que não sabiam seu nome ou o que sentira no dia em que
seu captor se postara diante dela com material de desenho e tintas,
muito pronto para roubar a sua alma e obrigando-a, quando já não
era mais natural, a se despir. Pessoas que, mirando seu olhar
cabisbaixo, ignoravam que muito dela ainda permanecia ali.
Na tarde em que vira uma grande onça
destripada no terreiro, o coração se tornara muito pequeno dentro
do peito, minúsculo coração de pássaro sem penas, reduzido a
presa caída do ninho. Naquele dia, entre raiva e dor, chorou por si
mesma pela primeira vez.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
Nenhum comentário:
Postar um comentário