Indicado o posto de Jaqueta Branca,
faz-se necessário dizer como este veio a ocupá-lo.
Todos sabem que, na marinha mercante, os
marinheiros são divididos em quartos — os de estibordo e bombordo
—, os quais assumem à noite seus turnos de trabalho. Esse mesmo
esquema é seguido em todos os navios de guerra. Mas nesses, além
dessas divisões, há outras indispensáveis, dado o grande número
de homens e a necessidade de precisão e disciplina. Não apenas
existem grupos específicos designados às três gáveas como,
enquanto o navio se prepara para zarpar ou durante qualquer outra
manobra que envolva todos os praças, marinheiros dentre esses grupos
são destacados para cada verga dessas gáveas. Assim, quando se dá
a ordem para desferrar a vela de sobrejoanete grande, Jaqueta Branca,
e ninguém mais, corre para obedecer-lhe.
Em tais ocasiões, não apenas grupos
específicos permanecem a postos nos três conveses do navio, como
homens específicos desses grupos são igualmente designados a
tarefas específicas. Da mesma forma, ao dar bordo, rizar velas de
gávea ou ancorar, cada um dos valorosos quinhentos da fragata
conhece seu posto e invariavelmente nele se encontra. Cada um desses
praças nada mais vê e a nada mais se dispõe, ali permanecendo até
que a morte cruel ou um oficial lhes ordene que saia.
Há, não obstante, momentos em que, por
obra da negligência dos oficiais, se apresentam exceções à regra.
Uma circunstância deveras grave decorrente de tal caso será
relatada em capítulo futuro.
Não fosse por tais regulações, a
tripulação de um navio de guerra não seria diferente de uma turba,
mais ingovernável ao recolher velas numa tempestade do que a de
lorde George Gordon ao botar a portentosa residência de lorde
Mansfield abaixo.16
Mas isso não é tudo. Além da função
de Jaqueta Branca como desferrador da vela de sobrejoanete grande,
quando a equipagem toda era convocada a fazer à vela, e além de
suas funções específicas ao dar bordo, ancorar etc., ele era
membro permanente do quarto de estibordo, umas das duas grandes
divisões básicas da tripulação. E nesse quarto era ele um gajeiro
do mastro principal; isto é, designado, com certo número de
marinheiros, a estar sempre pronto a executar quaisquer ordens
relativas àquele que é o mastro principal, da verga grande para
cima. Pois, incluindo a verga grande e descendo dela ao convés, o
mastro principal ficava aos cuidados de outro destacamento.
Os homens de cada quarto — de bombordo
e estibordo — responsáveis pelas gáveas dos mastros de traquete,
grande e de gata estão em alto-mar subdivididos respectivamente em
quartos de vigia, que regularmente rendem uns aos outros nas gáveas
às quais estão designados, enquanto, coletivamente, rendem todo o
quarto de bombordo de homens da gávea.
Além desses gajeiros, corpo sempre
formado de marinheiros ágeis e ativos, há o grupo da âncora
d’esperança — todo ele composto de veteranos —, cujo lugar é
no castelo de proa; permanecendo sob seus cuidados a verga do
traquete, as âncoras e todos os panos de gurupés.
São homens há muito expostos às
intempéries do mar, escolhidos dentre os mais experientes marujos a
bordo. São eles os companheiros que cantam “The Bay of Biscay Oh!”
e “Here a sheer hulk lies poor Torn Bowling!”, “Cease, rude
Boreas, blustering railer”;17 que, quando em terra firme, em alguma
taberna, pedem um trago de alcatrão e uma bolacha.18 São eles os
sujeitos que desfiam intermináveis casos sobre Decatur, Hull e
Bainbridge; e levam consigo pedaços do Old Ironsides como os
católicos a madeira da verdadeira cruz de Cristo. Esses são os
homens que alguns oficiais jamais ousam ofender, por mais que
amaldiçoem os demais. Só de observá-los, fazem bem à alma; os
corajosos membros da Velha Guarda; os duros granadeiros do mar, que
durante as procelas perderam incontáveis chapéus pela borda fora.
Esses são os homens cuja companhia alguns dos aspirantes mais jovens
almejam, com quem aprendem o melhor de sua experiência como homens
do mar e a quem veem como veteranos, caso tenham alguma reverência
em suas almas, o que não vale para todos os aspirantes.
Em seguida, há a guarda de popa, postada
no tombadilho; que, sob as ordens dos quartéis-mestres e subchefes
de peça de artilharia, fica encarregada da vela mestra e da vela de
ré e auxilia no puxamento do lais de verga do mastro principal e de
outros cabos da popa do navio.
Uma vez que, em termos comparativos, as
tarefas atribuídas aos homens da guarda de popa sejam leves e
simples, e tampouco se exija muita experiência náutica de tais
praças, tal grupo se compõe, sobretudo, de homens de terra firme;
os menos robustos, valentes e “marinheiros” da tripulação; e
que, lotados no tombadilho, são geralmente escolhidos com algum
interesse por sua aparência pessoal. Daí que, em sua maioria, sejam
jovens de compleição delicada, semblante gentil e modos educados;
não fazendo muita diferença no que concerne à força empregada nos
cabos, mas deixando sua marca no que toca à estima de todas as damas
estrangeiras que porventura visitem o navio. Eles passam boa parte de
seu tempo à vontade, lendo romances e livros de aventura; falando de
seus amores de terra firme; e comparando observações acerca da
melancólica e sentimental sucessão de acontecimentos que os levou —
pobres cavalheiros — ao tão duro mundo da Marinha. Muitos deles,
quanto a isso não resta dúvida, dão sinais de terem frequentado
companhia assaz respeitável. Eles sempre mantêm o asseio; e
expressam particular ojeriza ao balde de alcatrão, ao qual são
quase nunca convidados a mergulhar as pontas dos dedos.
Vangloriando-se do corte de suas calças e do brilho de seus chapéus
oleados, do resto da equipagem eles ganham o nome de “dândis do
mar” ou “meias de seda”.
Há, depois, os poceiros, sempre postados
na coberta dos canhões. Estes rebocam à popa as escotas das velas
grande e de traquete, além de estarem sujeitos aos mais repulsivos
deveres, responsáveis pela drenagem e pelo esgoto sob as cobertas.
Esses homens são todos joões-ninguém — pobres-diabos que jamais
colocam os pés em enfrechates ou se aventuram acima da amurada.
Matutos incorrigíveis, levando ainda a palha em seus cabelos, a eles
se consigna a congenial superintendência de galinheiros e chiqueiros
e do paiol de batatas. Estes ficam em geral a meia-nau, na coberta
dos canhões da fragata, entre as escotilhas grande e de proa; e
ocupam uma área tão extensa que mais parecem a feira de uma
cidadezinha do interior. Os sons melodiosos que nesta se produzem
continuamente arrancam lágrimas dos olhos dos poceiros,
lembrando-lhes de seus chiqueiros e hortas de batatas natais. Eles
são a ralé, estão à rabeira da tripulação. Quem não presta
para coisa alguma presta para ser um poceiro.
Três patamares abaixo — o convés
principal, a coberta dos canhões e a coberta das macas —
encontramos um grupo de trogloditas, os fiéis do porão, que se
entocam como coelhos, em meio a tanques d’água, garrafas e cabos.
Como mineiros da Cornualha, lavada a fuligem de suas peles são
pálidos feito fantasmas. Afora raras ocasiões, quase nunca sobem ao
convés para um banho de sol. Podem circum-navegar o mundo cinquenta
vezes e ver tão pouco dele quanto Jonas na barriga da baleia. São
um grupo preguiçoso, relapso e apático; e, quando vão a terra
firme depois de uma longa viagem, saem à luz do dia como cágados de
suas cavernas, ou ainda como ursos dos troncos de árvore, quando
chegada a primavera. Ninguém jamais sabe os nomes desses sujeitos;
passada uma viagem de três anos, ainda são como estranhos. Durante
as tempestades, quando toda a tripulação é convocada a salvar o
navio, eles vêm à tona em meio ao vendaval como os misteriosos
velhos de Paris durante o massacre dos Três Dias de Setembro —
todos se perguntam quem são e de onde vêm; e eles desaparecem
misteriosamente, para nunca mais serem vistos, até uma nova comoção
geral.
Essas são as principais divisões da
tripulação de um navio de guerra; a distribuição inferior de
tarefas, contudo, é infinita e requeria um comentador alemão à
guisa de cronista.
Nada falamos aqui sobre os guardiões do
contramestre, o subchefe do mestre-artilheiro, o subchefe do
mestre-carpinteiro, o subchefe do mestre-veleiro e o subchefe do
mestre-armeiro; nem sobre o mestre-d’armas, os cabos navais, os
timoneiros, os quartéis-mestres e serventes de peça de artilharia;
ou sobre o capitão do castelo de proa, o capitão de traquete, o
capitão de mastro principal, o capitão de gata, o capitão da
guarda de popa, o capitão do porão principal, o capitão do porão
à proa; ou ainda sobre os tanoeiros, os pintores, os latoeiros; ou
sobre o comissário do comodoro, o comissário do capitão, o
comissário da praça-d’armas e o comissário do alojamento dos
aspirantes; o cozinheiro do comodoro, o cozinheiro do capitão, o
cozinheiro dos oficiais, o cozinheiro do fogão dos oficiais, o
cozinheiro do rancho de quarto; nem sobre os pajens encarregados dos
catres, os mensageiros, os camareiros, os auxiliares de cirurgião e
inúmeros outros, cujas funções são específicas e pitorescas.
É devido a essa interminável subdivisão
de tarefas num navio de guerra que, antes de se engajar em tal
embarcação, um marinheiro precisa de boa memória. E quanto mais
ele tiver de um matemático, melhor.
A propósito, Jaqueta Branca esteve um
bom tempo envolvido em cálculos, relativos aos vários “números”
que lhe foram dados pelo primeiro lugar-tenente. Antes de tudo,
Jaqueta Branca recebeu o número de rancho; depois, seu número de
navio, ou melhor, o número pelo qual ele respondia quando seu quarto
era convocado; o número de sua maca; e, então, o número do canhão
em que fora lotado; além de uma variedade de outros números, os
quais teriam consumido algum tempo do próprio Jedediah Buxton23 até
que os organizasse para a soma. Todos esses números, ademais,
precisam ser muito bem lembrados — caso contrário, a ira se
cumprirá sobre você.
Imagina, agora, um marinheiro de marinha
mercante de todo desacostumado ao tumulto de um navio de guerra
pisando pela primeira vez em seu convés e recebendo todos esses
números. Antes mesmo de ouvi-los, ele sente a cabeça já mais ou
menos atordoada com a novidade dos sons entrando-lhe pelos ouvidos,
que por sua vez mais lhe parecem campanários repletos de sinos de
aviso. Na coberta dos canhões parecem passar mil bigas com foices
nas rodas; ele escuta a marcha dos marinheiros armados; o choque de
cutelos e as imprecações. Os guardiões do contramestre assoviam a
seu redor como falcões aos guinchos num vendaval, e os estranhos
ruídos de sob o convés lhe surgem como os ribombares vulcânicos de
uma montanha. Ele se esquiva dos sons como um recruta inexperiente
que salta ante as bombas lançadas.
A quase nada se reduzem, nesse instante,
todas as expedições de circum-navegação do globo; e igualmente
inúteis se tornam experiências árticas, antárticas e equinociais;
bem como tempestades enfrentadas na costa de Beachy Head ou mastros
perdidos perto do cabo Hatteras. Ele deve começar do zero; ele nada
sabe; nem o grego e o hebraico podem ajudá-lo, pois a língua que
precisa aprender não conhece gramática ou léxico.
Observe-o, enquanto avança em meio às
fileiras de velhos guerreiros do mar; observe sua postura cabisbaixa,
os gestos deprecatórios, os olhos de campônio, dignos de um escocês
em Londres nos idos do rei Jaime; seu “por obséquio, nobres
senhores!”. Ele é todo perplexidade e confusão. E quando, para
completar, o primeiro lugar-tenente, cujo ofício é o de dar
boas-vindas aos recém-chegados e informar-lhes seus quartos, quando
esse oficial, tampouco amigável e gentil, confia-lhe à memória
número após número — 246, 139, 478, 351 —, tudo que o
pobre-diabo deseja é correr.
Estude, portanto, a matemática e cultive
suas memórias, se pensa em embarcar num navio de guerra.
Herman Melville, in Jaqueta Branca
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