quarta-feira, 17 de novembro de 2021

3 | Um panorama das principais divisões em que a tripulação de um navio de guerra se distribui


Indicado o posto de Jaqueta Branca, faz-se necessário dizer como este veio a ocupá-lo.
Todos sabem que, na marinha mercante, os marinheiros são divididos em quartos — os de estibordo e bombordo —, os quais assumem à noite seus turnos de trabalho. Esse mesmo esquema é seguido em todos os navios de guerra. Mas nesses, além dessas divisões, há outras indispensáveis, dado o grande número de homens e a necessidade de precisão e disciplina. Não apenas existem grupos específicos designados às três gáveas como, enquanto o navio se prepara para zarpar ou durante qualquer outra manobra que envolva todos os praças, marinheiros dentre esses grupos são destacados para cada verga dessas gáveas. Assim, quando se dá a ordem para desferrar a vela de sobrejoanete grande, Jaqueta Branca, e ninguém mais, corre para obedecer-lhe.
Em tais ocasiões, não apenas grupos específicos permanecem a postos nos três conveses do navio, como homens específicos desses grupos são igualmente designados a tarefas específicas. Da mesma forma, ao dar bordo, rizar velas de gávea ou ancorar, cada um dos valorosos quinhentos da fragata conhece seu posto e invariavelmente nele se encontra. Cada um desses praças nada mais vê e a nada mais se dispõe, ali permanecendo até que a morte cruel ou um oficial lhes ordene que saia.
Há, não obstante, momentos em que, por obra da negligência dos oficiais, se apresentam exceções à regra. Uma circunstância deveras grave decorrente de tal caso será relatada em capítulo futuro.
Não fosse por tais regulações, a tripulação de um navio de guerra não seria diferente de uma turba, mais ingovernável ao recolher velas numa tempestade do que a de lorde George Gordon ao botar a portentosa residência de lorde Mansfield abaixo.16
Mas isso não é tudo. Além da função de Jaqueta Branca como desferrador da vela de sobrejoanete grande, quando a equipagem toda era convocada a fazer à vela, e além de suas funções específicas ao dar bordo, ancorar etc., ele era membro permanente do quarto de estibordo, umas das duas grandes divisões básicas da tripulação. E nesse quarto era ele um gajeiro do mastro principal; isto é, designado, com certo número de marinheiros, a estar sempre pronto a executar quaisquer ordens relativas àquele que é o mastro principal, da verga grande para cima. Pois, incluindo a verga grande e descendo dela ao convés, o mastro principal ficava aos cuidados de outro destacamento.
Os homens de cada quarto — de bombordo e estibordo — responsáveis pelas gáveas dos mastros de traquete, grande e de gata estão em alto-mar subdivididos respectivamente em quartos de vigia, que regularmente rendem uns aos outros nas gáveas às quais estão designados, enquanto, coletivamente, rendem todo o quarto de bombordo de homens da gávea.
Além desses gajeiros, corpo sempre formado de marinheiros ágeis e ativos, há o grupo da âncora d’esperança — todo ele composto de veteranos —, cujo lugar é no castelo de proa; permanecendo sob seus cuidados a verga do traquete, as âncoras e todos os panos de gurupés.
São homens há muito expostos às intempéries do mar, escolhidos dentre os mais experientes marujos a bordo. São eles os companheiros que cantam “The Bay of Biscay Oh!” e “Here a sheer hulk lies poor Torn Bowling!”, “Cease, rude Boreas, blustering railer”;17 que, quando em terra firme, em alguma taberna, pedem um trago de alcatrão e uma bolacha.18 São eles os sujeitos que desfiam intermináveis casos sobre Decatur, Hull e Bainbridge; e levam consigo pedaços do Old Ironsides como os católicos a madeira da verdadeira cruz de Cristo. Esses são os homens que alguns oficiais jamais ousam ofender, por mais que amaldiçoem os demais. Só de observá-los, fazem bem à alma; os corajosos membros da Velha Guarda; os duros granadeiros do mar, que durante as procelas perderam incontáveis chapéus pela borda fora. Esses são os homens cuja companhia alguns dos aspirantes mais jovens almejam, com quem aprendem o melhor de sua experiência como homens do mar e a quem veem como veteranos, caso tenham alguma reverência em suas almas, o que não vale para todos os aspirantes.
Em seguida, há a guarda de popa, postada no tombadilho; que, sob as ordens dos quartéis-mestres e subchefes de peça de artilharia, fica encarregada da vela mestra e da vela de ré e auxilia no puxamento do lais de verga do mastro principal e de outros cabos da popa do navio.
Uma vez que, em termos comparativos, as tarefas atribuídas aos homens da guarda de popa sejam leves e simples, e tampouco se exija muita experiência náutica de tais praças, tal grupo se compõe, sobretudo, de homens de terra firme; os menos robustos, valentes e “marinheiros” da tripulação; e que, lotados no tombadilho, são geralmente escolhidos com algum interesse por sua aparência pessoal. Daí que, em sua maioria, sejam jovens de compleição delicada, semblante gentil e modos educados; não fazendo muita diferença no que concerne à força empregada nos cabos, mas deixando sua marca no que toca à estima de todas as damas estrangeiras que porventura visitem o navio. Eles passam boa parte de seu tempo à vontade, lendo romances e livros de aventura; falando de seus amores de terra firme; e comparando observações acerca da melancólica e sentimental sucessão de acontecimentos que os levou — pobres cavalheiros — ao tão duro mundo da Marinha. Muitos deles, quanto a isso não resta dúvida, dão sinais de terem frequentado companhia assaz respeitável. Eles sempre mantêm o asseio; e expressam particular ojeriza ao balde de alcatrão, ao qual são quase nunca convidados a mergulhar as pontas dos dedos. Vangloriando-se do corte de suas calças e do brilho de seus chapéus oleados, do resto da equipagem eles ganham o nome de “dândis do mar” ou “meias de seda”.
Há, depois, os poceiros, sempre postados na coberta dos canhões. Estes rebocam à popa as escotas das velas grande e de traquete, além de estarem sujeitos aos mais repulsivos deveres, responsáveis pela drenagem e pelo esgoto sob as cobertas. Esses homens são todos joões-ninguém — pobres-diabos que jamais colocam os pés em enfrechates ou se aventuram acima da amurada. Matutos incorrigíveis, levando ainda a palha em seus cabelos, a eles se consigna a congenial superintendência de galinheiros e chiqueiros e do paiol de batatas. Estes ficam em geral a meia-nau, na coberta dos canhões da fragata, entre as escotilhas grande e de proa; e ocupam uma área tão extensa que mais parecem a feira de uma cidadezinha do interior. Os sons melodiosos que nesta se produzem continuamente arrancam lágrimas dos olhos dos poceiros, lembrando-lhes de seus chiqueiros e hortas de batatas natais. Eles são a ralé, estão à rabeira da tripulação. Quem não presta para coisa alguma presta para ser um poceiro.
Três patamares abaixo — o convés principal, a coberta dos canhões e a coberta das macas — encontramos um grupo de trogloditas, os fiéis do porão, que se entocam como coelhos, em meio a tanques d’água, garrafas e cabos. Como mineiros da Cornualha, lavada a fuligem de suas peles são pálidos feito fantasmas. Afora raras ocasiões, quase nunca sobem ao convés para um banho de sol. Podem circum-navegar o mundo cinquenta vezes e ver tão pouco dele quanto Jonas na barriga da baleia. São um grupo preguiçoso, relapso e apático; e, quando vão a terra firme depois de uma longa viagem, saem à luz do dia como cágados de suas cavernas, ou ainda como ursos dos troncos de árvore, quando chegada a primavera. Ninguém jamais sabe os nomes desses sujeitos; passada uma viagem de três anos, ainda são como estranhos. Durante as tempestades, quando toda a tripulação é convocada a salvar o navio, eles vêm à tona em meio ao vendaval como os misteriosos velhos de Paris durante o massacre dos Três Dias de Setembro — todos se perguntam quem são e de onde vêm; e eles desaparecem misteriosamente, para nunca mais serem vistos, até uma nova comoção geral.
Essas são as principais divisões da tripulação de um navio de guerra; a distribuição inferior de tarefas, contudo, é infinita e requeria um comentador alemão à guisa de cronista.
Nada falamos aqui sobre os guardiões do contramestre, o subchefe do mestre-artilheiro, o subchefe do mestre-carpinteiro, o subchefe do mestre-veleiro e o subchefe do mestre-armeiro; nem sobre o mestre-d’armas, os cabos navais, os timoneiros, os quartéis-mestres e serventes de peça de artilharia; ou sobre o capitão do castelo de proa, o capitão de traquete, o capitão de mastro principal, o capitão de gata, o capitão da guarda de popa, o capitão do porão principal, o capitão do porão à proa; ou ainda sobre os tanoeiros, os pintores, os latoeiros; ou sobre o comissário do comodoro, o comissário do capitão, o comissário da praça-d’armas e o comissário do alojamento dos aspirantes; o cozinheiro do comodoro, o cozinheiro do capitão, o cozinheiro dos oficiais, o cozinheiro do fogão dos oficiais, o cozinheiro do rancho de quarto; nem sobre os pajens encarregados dos catres, os mensageiros, os camareiros, os auxiliares de cirurgião e inúmeros outros, cujas funções são específicas e pitorescas.
É devido a essa interminável subdivisão de tarefas num navio de guerra que, antes de se engajar em tal embarcação, um marinheiro precisa de boa memória. E quanto mais ele tiver de um matemático, melhor.
A propósito, Jaqueta Branca esteve um bom tempo envolvido em cálculos, relativos aos vários “números” que lhe foram dados pelo primeiro lugar-tenente. Antes de tudo, Jaqueta Branca recebeu o número de rancho; depois, seu número de navio, ou melhor, o número pelo qual ele respondia quando seu quarto era convocado; o número de sua maca; e, então, o número do canhão em que fora lotado; além de uma variedade de outros números, os quais teriam consumido algum tempo do próprio Jedediah Buxton23 até que os organizasse para a soma. Todos esses números, ademais, precisam ser muito bem lembrados — caso contrário, a ira se cumprirá sobre você.
Imagina, agora, um marinheiro de marinha mercante de todo desacostumado ao tumulto de um navio de guerra pisando pela primeira vez em seu convés e recebendo todos esses números. Antes mesmo de ouvi-los, ele sente a cabeça já mais ou menos atordoada com a novidade dos sons entrando-lhe pelos ouvidos, que por sua vez mais lhe parecem campanários repletos de sinos de aviso. Na coberta dos canhões parecem passar mil bigas com foices nas rodas; ele escuta a marcha dos marinheiros armados; o choque de cutelos e as imprecações. Os guardiões do contramestre assoviam a seu redor como falcões aos guinchos num vendaval, e os estranhos ruídos de sob o convés lhe surgem como os ribombares vulcânicos de uma montanha. Ele se esquiva dos sons como um recruta inexperiente que salta ante as bombas lançadas.
A quase nada se reduzem, nesse instante, todas as expedições de circum-navegação do globo; e igualmente inúteis se tornam experiências árticas, antárticas e equinociais; bem como tempestades enfrentadas na costa de Beachy Head ou mastros perdidos perto do cabo Hatteras. Ele deve começar do zero; ele nada sabe; nem o grego e o hebraico podem ajudá-lo, pois a língua que precisa aprender não conhece gramática ou léxico.
Observe-o, enquanto avança em meio às fileiras de velhos guerreiros do mar; observe sua postura cabisbaixa, os gestos deprecatórios, os olhos de campônio, dignos de um escocês em Londres nos idos do rei Jaime; seu “por obséquio, nobres senhores!”. Ele é todo perplexidade e confusão. E quando, para completar, o primeiro lugar-tenente, cujo ofício é o de dar boas-vindas aos recém-chegados e informar-lhes seus quartos, quando esse oficial, tampouco amigável e gentil, confia-lhe à memória número após número — 246, 139, 478, 351 —, tudo que o pobre-diabo deseja é correr.
Estude, portanto, a matemática e cultive suas memórias, se pensa em embarcar num navio de guerra.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

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