“Você tem que tirar a mão de seu pai
da cabeça, comadre. Precisa ir para outra casa de curador”, diziam
as filhas de Tonha. Depois vieram Crispina e Crispiniana para falar o
mesmo. E por último Maria Cabocla, ao passar pela porta da casa
velha, onde eu havia me instalado desde que o pai adoeceu. Não dava
importância ao que me diziam. Era a crença que meu próprio pai
havia ajudado a difundir durante toda sua vida na fazenda, mas que
não fazia mais qualquer sentido para mim. Como poderia tirar a mão
de meu pai de minha cabeça? Meu pai se foi e a mão dele também.
Nem que quisesse seguir à risca as crenças, ainda assim não
tiraria sua mão de mim. Zeca Chapéu Grande era meu pai, guia pela
terra e responsável pelo que sou. Seus filhos e filhas de santo
seguiram dia após dia procurando casas de jarê conhecidas dos
arredores para retirar sua mão de suas cabeças. Temiam estar
sentenciados ao passamento. Eu não conseguia temer nada, nem temi as
grosserias de Tobias, muito menos Aparecido avançando sobre mim. Não
temia os vivos, não temeria os mortos. Chegaram mesmo a chorar à
nossa porta dizendo que eu iria morrer. “Deixem Belonísia. Se ela
não quer, ela não tira. Muito agradecida, mas vão cuidar da vida
de vocês”, disse Salu mais de uma vez, até que o tempo passou e
pareceram esquecer. “Se descuidarem”, pensei, “é capaz de
vocês irem antes de mim”. Como iria rir se fossem antes de mim.
Minha mãe, abatida, passou um longo
período sem conseguir ir para a roça. Também começou a beber
cachaça, antes mesmo do meio-dia. Era estranho, nunca havia visto
minha mãe beber numa festa ou celebração. Comecei a esconder as
garrafas de aguardente, mas ela ia à feira e dava um jeito de trazer
às escondidas, junto com os mantimentos. Entornava largos copos,
como nunca havia feito, e dormia sentada na cadeira, até roncar.
Esquecia a comida no fogo e parecia não sentir mais vontade de
interagir com os netos. Nos poucos momentos em que ficava sóbria,
pegava algo que havia pertencido ao nosso pai para dizer “olha o
que deixou”, ou então “ele não conseguiu terminar de fazer
isso”. As recordações tomavam conta de seu dia quando alguém
aparecia pedindo ajuda para algum problema, acostumados que estavam a
tratar suas mazelas com Zeca. Ela dizia que não poderia ajudar, que
não era curadora. “Não vou mexer com coisas que não sei”,
disse a Domingas enquanto abanava a lenha do fogão, “não nasci
com o dom”.
A obra da casa que meu pai havia começado
a levantar estava parada e passou meses assim, sem que ninguém se
dispusesse a continuar. Não se sentiam autorizados. Minha mãe bateu
o pé olhando para o mato que começava a crescer em volta da casa,
“vou desmanchar aquela casa, não quero mais sair daqui”. “Essa
casa está se desmanchando”, Bibiana relembrou, “talvez fosse
melhor terminar a outra para mudar o quanto antes”. Minha mãe, que
havia perdido qualquer vontade de mudança, fez valer sua vontade,
“ninguém mexe, deixe o tempo tomar conta dela”.
Quando o sol se prolongou no horizonte
trazendo de novo a estiagem, Salu passou um dia enferma na cama,
ardendo de febre. Dona Tonha veio visitá-la. Ficaram as duas no
quarto, conversando baixo. No dia seguinte, me disse que iria para
Cachoeira, que estava entregue à bebida por obrigação que não
cumpria dos encantados, que meu pai havia deixado. Dona Tonha a
acompanharia. Considerou que naquele momento precisava retirar a mão
do marido da cabeça. Partiu para encontrar o curador, e fiquei
sozinha em casa. Retomei o movimento do roçado porque queria tentar
fazer as coisas voltarem a parecer como antes. Pensava que continuar
trabalhando era a única maneira de recordar meu pai de uma forma que
não fosse mais tão doída. Me coloquei nas trilhas com meu irmão,
e, de fato, arar a terra, plantar, colher, consertar cerca, foram me
curando de sua ausência, da mesma maneira que haviam me curado da
tristeza que senti ao deixar a casa para viver com Tobias. Da mesma
forma de quando fiquei viúva: foi o que me sustentou nas terras da
beira do Santo Antônio. Foi das coisas que nasceram de novo em
minhas mãos que pensei sobre o rumo que tomaríamos sem a liderança
de nosso pai. Como seria tudo sem as forças dos encantados, que por
tanto tempo haviam estado entre nós.
Por último, Salu retornou à fazenda
depois da viagem a Cachoeira e disse que iria terminar de construir a
casa. Disse também que não triscaria mais em bebida. A decisão
trouxe alívio. Em pouco tempo, a casa que meu pai havia deixado com
a construção encaminhada ficou pronta. Limpamos o terreno do mato
que havia crescido. Preparamos tudo para a mudança. O mesmo pai de
santo que havia cuidado de minha mãe em Cachoeira veio até Água
Negra para orientar a transferência de uma casa para outra. Na casa
velha havia vivido um homem poderoso que movimentava energias entre o
mundo dos vivos e dos mortos. Moveu sentimentos bons e ruins, curou a
terra, curou pessoas, evocou espíritos da natureza. Então tudo que
havia vivido, todo o movimento de seu mundo de fé estava pairando
naquele espaço, e deveria ser encaminhado a um destino. Ela seria
desmanchada. Retiraram portas, janelas e o junco que recobria o teto.
O pai de santo bateu com ervas nas paredes e entoou cantigas que
nunca havia escutado nas brincadeiras de jarê.
“Se tiver alguma força nessa casa, a
senhora vai querer, dona Salustiana? Para seguir a sina de seu
marido?”, perguntou o velho. “Não”, respondeu sem hesitar, com
olhos firmes no que o benzedor fazia. “Então, posso tomar para
mim?”, parou com as folhas no ar enquanto acompanhava ao lado de
minha mãe. “Pode”, foi o que respondeu.
O velho não tocou em nenhuma parede. Não
retirou nenhuma forquilha. O tempo se incumbiu de desmanchar a casa
antiga. Sem abrigar mais nossas vidas, parecia se deteriorar numa
urgência própria da natureza que a envolvia. A cada chuva forte uma
parede desmoronava e, por fim, o vento completou sua luta. A parede
de terra, do barro que era o chão de Água Negra, voltou a ser terra
de novo. Nasceram ervas e flores minúsculas em meio à umidade que
surgia com o orvalho e com a chuva que caía quando era da vontade
dos santos. Fiquei atenta a tudo o que acontecia, sabia que nada
retornaria. Olhei com certo encantamento o tempo caminhando,
indomável como um cavalo bravio.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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