Muitos meses se passaram até que Zeca
fosse considerado curado da loucura. Donana voltava todos os dias à
casa do compadre João do Lajedo para ajudar na administração das
bebidas de raiz, nas preces e no asseio do filho. Com o tempo, ele
foi retornando à vida de antes, embora estivesse claro que algo
havia mudado em seu interior para sempre. Seus olhos já não
guardavam inocência. Um peso havia desabado sobre seus ombros
magros. Participava com interesse e atenção das cerimônias da casa
do curador, aprendia de forma dedicada sobre os ritos e preceitos,
auxiliava nas brincadeiras, nas cantigas para chamar os encantados.
Identificava com facilidade as entidades que surgiam, mudava o ritmo
da cantiga, sabia em que velocidade os atabaques deveriam ser
tocados, dependendo se queria agitar ou amansar algum espírito. Nas
festas, se inteirava da ordem em que deveriam se apresentar. Também
não se surpreendia com as mudanças que por vezes surgiam.
Aos poucos, voltou ao roçado com a mãe,
mas continuou a dormir na casa do curador. Voltou para a plantação
de cana. Saía de casa com Donana e os dois irmãos maiores, antes de
o sol nascer. Mas não se descuidava de suas preces, nem da vela que
deveria acender, nem mesmo de voltar no começo da noite para a casa
do compadre João do Lajedo.
Quando Zeca foi considerado pronto,
quando já podia reconhecer os males que adentravam pela porta do
velho curador, quando compreendeu a natureza do parto, da vida e da
morte de animais e de cultivos, deixou a casa de João do Lajedo,
ainda que continuasse a participar das cerimônias. Retornou à
Caxangá para trabalhar com a mãe na colheita e reconhecimento das
ervas da mata, e preparava unguentos e beberagens para as mais
diversas aflições.
Mas o tempo trouxe a necessidade de
seguir para outro lugar. Queria andar por outras terras, procurar
trabalho. As roças da Fazenda Caxangá começavam a sofrer com uma
nova estiagem. O mandacaru não havia florido no tempo esperado, a
caatinga perdeu sua folhagem. Tinham que buscar água cada vez mais
longe e os barreiros também foram secando. As fazendas foram armando
seus homens para que a água que restava armazenada não fosse levada
pelos estranhos. Os rios estavam com níveis cada vez mais baixos e
não era mais possível encontrar a abundância de peixe que havia no
período das chuvas. Todo esse ambiente hostil, onde faltava água,
mas sobrava violência, foi se tornando a paisagem dos primeiros anos
de sua vida como homem. À mesma época, passavam viajantes a caminho
de lugares onde houvesse água, e onde precisassem de trabalhadores,
também.
Não sei dizer quando chegaram as
notícias sobre Água. Deve ter sido entre um cigarro de palha e
outro, entre a erva colhida no campo e a reza para mau-olhado e
quebranto, entre janelas e cavalos que levantavam a terra seca de
Caxangá. Anunciaram que existia uma fazenda onde corriam rios de
água escura. Não sei quando se disse que havia abundância de
peixe, se cultivava arroz, e havia fartura de dendê, buriti e um
grande espelho d’água onde os rios Utinga e Santo Antônio se
encontravam. Que os donos não se importavam de abrigar mais gente,
queriam apenas que fosse de trabalho e não reclamasse da labuta.
Gente que suasse de sol a sol, de domingo a domingo. Queriam gente
que aguasse as hortas e transformasse a terra da fazenda em riqueza e
que não temesse ferir suas mãos na colheita.
Em troca, poderia se construir uma tapera
de barro e taboa, que se desfizesse com o tempo, com a chuva e com o
sol forte. Que essa morada nunca fosse um bem durável que atraísse
a cobiça dos herdeiros. Que essa casa fosse desfeita de forma fácil
se necessário. Podem trabalhar – contavam nas suas romarias pelo
chão de Caxangá –, podem trabalhar, mas a terra é dessa família
por direito. Os donos da terra eram conhecidos desde a lei de terras
do império, não havia o que contestar. Quem chegasse era
forasteiro, poderia ocupar, plantar e fazer da terra sua morada.
Poderia cercar seu quintal e fazer roça na várzea nas horas vagas.
Poderia comer e viver da terra, mas deveria obediência e gratidão
aos senhores.
Depois de muito sondar os viajantes em
conversas, os compadres que traziam notícias de parentes que havia
mudado para mais longe, Zeca Chapéu Grande resolveu partir. Quando
chegou o dia, avisou a mãe que iria embora. Donana sentiu seus olhos
cansados se encherem d’água. “Por favor, não chora, mãe.”
Minha avó retirou o cordão com um crucifixo de seu pescoço e
passou pela cabeça do filho. “O velho Nagô me acompanha, mãe.”
Disse que se saísse naquele instante estaria em Água Negra no dia
seguinte. Vestiu-se com a roupa costurada pelas mulheres da casa, mãe
e irmã. “Que os caboclos e os guias lhe acompanhem”, as palavras
roçaram a boca de Donana. “Que lhe acompanhem Sete-Serra, Iansã,
Mineiro, Marinheiro, Nadador, Cosme e Damião, Mãe D’Água,
Tupinambá, Tomba-Morro, Oxóssi, Pombo Roxo, Nanã.”
Zeca partiria antes de o sol chegar. Os
pássaros voavam de um lado a outro, em alvoroço, lançando boa
sorte entre o voo e o pouso. Na sacola de palha que havia trançado
nas horas vagas, Donana havia colocado um pedaço de charque, uma
lata de farinha de mandioca e uma pequena garrafa de mel para se
alimentar na estrada. Talvez ele quisesse dar um beijo no rosto da
mãe, na testa da irmã, um abraço nos irmãos. “Bênção, minha
mãe. Mandarei notícias por quem voltar para este lado. Mandarei
boas notícias. E voltarei para te buscar, minha mãe, para que viva
perto de mim.” Donana limpou os olhos. “Muito digo Deus lhe
acompanhe.”
Ele carregou a sacola de palha com a
comida e as poucas roupas que tinha. Papel pra fazer cigarro, um
pente em que faltavam dentes. Um aparelho de barbear enferrujado.
Trilhou pela estrada um dia e uma noite até chegar à Água Negra, o
lugar onde passaria o resto de sua vida.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
Nenhum comentário:
Postar um comentário