domingo, 3 de outubro de 2021

Supersede

O acadêmico, ilustre, que me distingue com sua intimidade, estava apreensivo. Interpelei-o:
Que que há, mestre? Em dia tão fausto para a Academia, o senhor com esta cara!
Fausto? Tens certeza? Deus te ouça, meu filho. Mas tenho cá as minhas nuvens.
Nuvens?
Os meus receios.
Vamos ver se adivinho. Acha que a supersede… não vai dar renda compensadora?
Vai dar, e fantástica.
Tem medo, talvez, de que a construção, assim gigantesca, não seja bastante segura.
Aquilo? Aquilo é obra para séculos.
Então não entendo. A Academia assina contrato para levantar um senhor edifício, as firmas contratantes são as mais idôneas, o imóvel encherá de dinheiro a instituição, que tem ótimo executivo, e o mestre me sai com esse ar de quem não comeu e não gostou?
Por isso mesmo. É bondade demais, Carlos. Uma coisa assim não existe.
Não existe, como? Tem terreno de três mil e quinhentos metros quadrados, oferecido pelo marechal Castelo Branco e doado pelo Congresso Nacional, tem financiamento no valor de quinze milhões de dólares, tem projeto bacana de Maurício Roberto, o contrato será firmado hoje, e vai me dizer que isso não existe?
Existe em demasia, o que é maneira de não existir, de virar conto de Onássis e perturbar a cabeça da gente.
Desculpe, mestre, mas o senhor não estará cultivando complexo de franciscano?
Não me compreendes, estou vendo. Não é de admirar. A faculdade de compreensão vai minguando à medida que se expandem os meios de comunicação. És um, entre milhões, a prová-lo.
Perdão, eu…
Cala e escuta. A Academia atrai ou não atrai os homens e até as mulheres de letras?
Realmente.
E que é a Academia? O fardão, o espadim, o colar, a poltrona azul e ouro, a cajuada, o jeton que não dá para pagar a despesa de viver durante um mês, a sepultura e, principalmente, se não laboro em erro, e se não mentiu Machado, “a glória que fica, eleva, honra e consola”. Se com apenas isso, que não é muito, ela se faz tão cobiçada, imagina como vai ser daqui por diante, com o seu império imobiliário.
Ora!
É o que te digo. Todo mundo, mas todo mundo mesmo, querendo participar do condomínio de quarenta andares, da renda dos escritórios e dos seis andares de garagem. Noite e dia, gente de olho no reumatismo, no colesterol, no diabete da gente… É sinistro.
Não ligue. Faça figa.
Eu faço, mas adianta? E os despachos em sentido adverso? A descaridade dos que desejarão a minha vaga, sinônimo de minha morte? Cada sorriso, um punhal; cada blandícia, um pavê envenenado. É o que iremos lucrar, entrando na área da grande empresa.
Com a renda, ouço dizer, se custearão empreendimentos culturais.
Sobre as nossas campas, abertas antes da hora. E imaginas que iremos produzir mais, com a burra cheia de pecúnia? Nosso tempo será todo absorvido com pedidos de empenho para alugar a melhor loja, o escritório de vista mais panorâmica. Nossas letras serão de preferência as imobiliárias, de câmbio e do Tesouro. Manteremos um plantão na Bolsa de Valores. Outro no BNH. Cibulares e Marcelo serão nossos assessores para a avaliação das obras, perdão, dos títulos dos candidatos à imortalidade. E as leis fiscais, os problemas de Imposto de Renda e quejandos não nos deixarão dormir, quanto mais escrever ensaios ou rapsódias.
Mestre…
Em quê? Em investimentos? Em construção civil? Em juros? Não sou mestre de coisíssima alguma, sou um condenado à riqueza, uma vítima da prosperidade. O Athayde vai se ver comigo na próxima sessão! O diabo é que não consigo brigar com ele. Ninguém consegue. Leva a gente na conversa, no aveludado. E acabará me nomeando administrador do superedifício, presta atenção no que eu estou falando!
Disse, e vestiu-se com esmero para a solenidade de assinatura do contrato.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

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