O acadêmico, ilustre, que me distingue
com sua intimidade, estava apreensivo. Interpelei-o:
— Que que há, mestre? Em dia tão
fausto para a Academia, o senhor com esta cara!
— Fausto? Tens certeza? Deus te ouça,
meu filho. Mas tenho cá as minhas nuvens.
— Nuvens?
— Os meus receios.
— Vamos ver se adivinho. Acha que a
supersede… não vai dar renda compensadora?
— Vai dar, e fantástica.
— Tem medo, talvez, de que a
construção, assim gigantesca, não seja bastante segura.
— Aquilo? Aquilo é obra para séculos.
— Então não entendo. A Academia
assina contrato para levantar um senhor edifício, as firmas
contratantes são as mais idôneas, o imóvel encherá de dinheiro a
instituição, que tem ótimo executivo, e o mestre me sai com esse
ar de quem não comeu e não gostou?
— Por isso mesmo. É bondade demais,
Carlos. Uma coisa assim não existe.
— Não existe, como? Tem terreno de
três mil e quinhentos metros quadrados, oferecido pelo marechal
Castelo Branco e doado pelo Congresso Nacional, tem financiamento no
valor de quinze milhões de dólares, tem projeto bacana de Maurício
Roberto, o contrato será firmado hoje, e vai me dizer que isso não
existe?
— Existe em demasia, o que é maneira
de não existir, de virar conto de Onássis e perturbar a cabeça da
gente.
— Desculpe, mestre, mas o senhor não
estará cultivando complexo de franciscano?
— Não me compreendes, estou vendo. Não
é de admirar. A faculdade de compreensão vai minguando à medida
que se expandem os meios de comunicação. És um, entre milhões, a
prová-lo.
— Perdão, eu…
— Cala e escuta. A Academia atrai ou
não atrai os homens e até as mulheres de letras?
— Realmente.
— E que é a Academia? O fardão, o
espadim, o colar, a poltrona azul e ouro, a cajuada, o jeton que não
dá para pagar a despesa de viver durante um mês, a sepultura e,
principalmente, se não laboro em erro, e se não mentiu Machado, “a
glória que fica, eleva, honra e consola”. Se com apenas isso, que
não é muito, ela se faz tão cobiçada, imagina como vai ser daqui
por diante, com o seu império imobiliário.
— Ora!
— É o que te digo. Todo mundo, mas
todo mundo mesmo, querendo participar do condomínio de quarenta
andares, da renda dos escritórios e dos seis andares de garagem.
Noite e dia, gente de olho no reumatismo, no colesterol, no diabete
da gente… É sinistro.
— Não ligue. Faça figa.
— Eu faço, mas adianta? E os despachos
em sentido adverso? A descaridade dos que desejarão a minha vaga,
sinônimo de minha morte? Cada sorriso, um punhal; cada blandícia,
um pavê envenenado. É o que iremos lucrar, entrando na área da
grande empresa.
— Com a renda, ouço dizer, se
custearão empreendimentos culturais.
— Sobre as nossas campas, abertas antes
da hora. E imaginas que iremos produzir mais, com a burra cheia de
pecúnia? Nosso tempo será todo absorvido com pedidos de empenho
para alugar a melhor loja, o escritório de vista mais panorâmica.
Nossas letras serão de preferência as imobiliárias, de câmbio e
do Tesouro. Manteremos um plantão na Bolsa de Valores. Outro no BNH.
Cibulares e Marcelo serão nossos assessores para a avaliação das
obras, perdão, dos títulos dos candidatos à imortalidade. E as
leis fiscais, os problemas de Imposto de Renda e quejandos não nos
deixarão dormir, quanto mais escrever ensaios ou rapsódias.
— Mestre…
— Em quê? Em investimentos? Em
construção civil? Em juros? Não sou mestre de coisíssima alguma,
sou um condenado à riqueza, uma vítima da prosperidade. O Athayde
vai se ver comigo na próxima sessão! O diabo é que não consigo
brigar com ele. Ninguém consegue. Leva a gente na conversa, no
aveludado. E acabará me nomeando administrador do superedifício,
presta atenção no que eu estou falando!
Disse, e vestiu-se com esmero para a
solenidade de assinatura do contrato.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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