quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Quasimodo

A terra da Itália guarda as vozes de seus antigos poetas em suas puríssimas entranhas. Ao pisar o solo das campinas, ao cruzar os parques onde a água cintila, ao atravessar as areias de seu pequeno oceano azul, pareceu-me ir pisando substâncias diamantinas, cristais secretos, todo o fulgor guardado pelos séculos. A Itália deu forma, som, graça e arrebatamento à poesia da Europa; tirou-a de sua primeira forma informe, de sua rusticidade vestida de sotaina e armadura. A luz da Itália transformou as vestimentas esfarrapadas dos jograis e a ferragem das Canções de Gesta em um rio caudaloso de diamantes cinzelados.
Para nossos olhos de poetas recém-chegados à cultura, vindos de países onde as antologias começam com os poetas do ano 1880, era um assombro ver nas antologias italianas a data de 1230 e tantos, 1310 ou 1450 e – entre estas datas – os tercetos deslumbrantes, o apaixonado atavio, a profundidade e a pedraria dos Alighieri, Cavalcanti, Petrarca, Poliziano.
Estes nomes e estes homens emprestaram luz florentina ao nosso doce e poderoso Garcilaso de la Vega, ao suave Boscán, iluminaram Góngora e tingiram com seu dardo de sombra a melancolia de Quevedo, moldaram os sonetos de William Shakespeare da Inglaterra e inflamaram as essências da França, fazendo florescer as rosas de Ronsard e du Bellay.
Assim pois, nascer em terras de Itália é empresa difícil para um poeta, empresa estrelada que implica assumir um firmamento de heranças resplandecentes.
Conheço há anos Salvatore Quasimodo e posso dizer que sua poesia representa essa consciência que para nós pareceria fantasmagórica por sua carga pesada e ardente. Quasimodo é um europeu que dispõe para a ciência certa do conhecimento e do equilíbrio de todas as armas da inteligência. No entanto, sua posição de italiano central, de protagonista atual de um intermitente mas inesgotável classicismo, não o converteram em um guerreiro preso dentro de sua fortaleza. Quasimodo é um homem universal por excelência, que não divide o mundo belicosamente em Ocidente e Oriente mas sim que considera, como absoluto dever contemporâneo, apagar as fronteiras da cultura e estabelecer como dons indivisíveis a poesia, a verdade, a liberdade, a paz e a alegria.
Em Quasimodo unem-se as cores e os sons de um mundo melancolicamente sereno. Sua tristeza não significa a derrotada insegurança de Leopardi mas sim o recolhimento germinal da terra na tarde, essa unção que adquire a tarde quando os perfumes, as vozes, as cores e os sinos protegem o trabalho das sementes mais profundas. Amo a linguagem recolhida deste grande poeta, seu classicismo e seu romantismo e sobretudo admiro nele sua própria impregnação na continuidade da beleza, assim como o poder de transformar tudo em uma linguagem de verdadeira e comovedora poesia.
Por cima do mar e da distância levanto uma fragrante coroa feita com folhas de Araucana e a deixo voando no ar para que a levem o vento e a vida, deixando-a sobre a fronte de Salvatore Quasimodo. Não é a apolínea coroa de louros que tantas vezes vimos nos retratos de Francesco Petrarca. É uma coroa de nossos bosques inexplorados, de folhas que no entanto não têm nome, encharcadas pelo orvalho de auroras austrais.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Nenhum comentário:

Postar um comentário