Enquanto a primeira metade da vida é
apenas uma infatigável aspiração de felicidade, a segunda metade,
pelo contrário, é dominada por um sentimento doloroso de receio,
porque se acaba então por perceber, mais ou menos claramente, que
toda felicidade não passa de quimera, que só o sofrimento é real.
Por isso os espíritos sensatos visam menos aos prazeres do que a uma
ausência de desgostos, a um estado de algum modo invulnerável. –
Nos meus anos de mocidade, uma campainhada à porta causava-me
alegria, porque pensava: “Bom! É qualquer coisa que sucede”.
Mais tarde, experimentado pela vida, esse mesmo ruído despertava-me
um sentimento vizinho do medo; dizia de mim para mim: “Que
sucederá?”.
Na velhice, as paixões e os desejos
extinguem-se uns após outros, à medida que os objetos dessas
paixões tornam-se indiferentes; a sensibilidade diminui, a força na
imaginação torna-se sempre mais fraca, as imagens empalidecem, as
impressões já não aderem, passam sem deixar vestígios, os dias
decorrem cada vez mais rápidos, os acontecimentos perdem a sua
importância, tudo se descolora. O homem acabrunhado pela idade
passeia cambaleando ou repousa a um canto, não sendo mais do que a
sombra, o fantasma do seu ser passado. Vem a morte, que lhe resta
para destruir? Um dia a sonolência muda-se em último sono e os seus
sonhos… já inquietavam Hamlet no célebre monólogo. Creio que
desde esse momento sonhamos.
Todo homem que despertou dos primeiros
sonhos da mocidade, que tem em consideração a sua própria
experiência e a dos outros, que estudou a história do passado e a
da sua época, se quaisquer preconceitos demasiado arraigados não
lhe perturbam o espírito, acabará por chegar à conclusão de que
este mundo dos homens é o reino do acaso e do erro, que o dominam e
o governam a seu modo sem piedade alguma, auxiliados pela loucura e
pela maldade, que não cessam de brandir o chicote. Por isso, o que
há de melhor entre os homens só aparece após grandes esforços;
qualquer inspiração nobre e sensata dificilmente encontra ocasião
de se mostrar, de proceder, de se fazer ouvir, ao passo que o absurdo
e a falsidade no domínio das ideias, a banalidade e a vulgaridade
nas regiões da arte, a malícia e a velhacaria na vida prática
reinam sem partilha, e quase sem interrupção; não há pensamento,
obra excelente que não seja exceção, um caso imprevisto, singular,
incrível, perfeitamente isolado, como um aerolito produzido por uma
ordem de coisas diferente daquela que nos governa. – Com respeito a
cada um em particular, a história de uma existência é sempre a
história de um sofrimento, porque toda carreira percorrida é uma
série ininterrupta de reveses e de desgraças, que cada um procura
ocultar, porque sabe que, longe de inspirar aos outros simpatia ou
piedade, dá-lhes enorme satisfação, de tal modo que se comprazem
em pensar nos desgostos alheios a que escapam naquele momento; – é
raro que um homem no fim da vida, sendo ao mesmo tempo sincero e
ponderado, deseje recomeçar o caminho, e não prefira infinitamente
o nada absoluto.
Não há nada fixo na vida fugitiva: nem
dor infinita, nem alegria eterna, nem impressão permanente, nem
entusiasmo duradouro, nem resolução elevada que possa durar toda a
vida! Tudo se dissolve na torrente dos anos. Os minutos, os
inumeráveis átomos de pequenas coisas, fragmentos de cada uma das
nossas ações, são os vermes roedores que devastam tudo o que é
grande e ousado… Nada se toma a sério na vida humana; o pó não
vale esse trabalho.
Devemos considerar a vida como uma
mentira contínua, tanto nas coisas pequenas como nas grandes.
Prometeu? Não cumpre a promessa, a não ser para mostrar quanto o
desejo era pouco desejável: tão depressa é a esperança que nos
ilude, como a coisa com que contávamos. – Se nos deu, foi só para
tornar a nos tirar. A magia da distância apresenta-nos paraísos que
desaparecem como visões logo que nos deixamos seduzir.
A felicidade, portanto, está sempre no
futuro ou no passado, e o presente é como uma pequena nuvem sombria
que o vento impele sobre a planície cheia de sol; diante dela, atrás
dela, tudo é luminoso, só ela projeta sempre uma sombra.
O homem só vive no presente, que foge
irresistivelmente para o passado, e afunda-se na morte: salvo as
consequências, que se podem refletir no presente, e que são a obra
dos seus atos e da sua vontade, a sua vida de ontem acha-se
completamente morta, extinta: deveria portanto ser-lhe indiferente à
razão que esse passado fosse feito de gozos ou de tristezas. O
presente foge-lhe, e transforma-se incessantemente no passado; o
futuro é absolutamente incerto e sem duração… E, assim, como do
ponto de vista físico, o andar não é mais do que uma queda sempre
evitada, da mesma maneira a vida do corpo é a morte sempre suspensa,
uma morte adiada, e a atividade do nosso espírito, um tédio sempre
combatido… É preciso, enfim, que a morte triunfe, pois lhe
pertencemos pelo próprio fato do nosso nascimento, e ela não faz
senão brincar com a presa antes de devorá-la. É desse modo que
seguimos o curso da nossa existência, com um interesse
extraordinário, com mil cuidados, mil precauções, durante todo o
tempo possível, como se sopra uma bola de sabão, aplicando-nos a
enchê-la o mais que podemos e durante muito tempo, não obstante a
certeza que temos de que ela acabará por rebentar.
A vida não se apresenta de modo algum
como um mimo que nos é dado gozar, mas antes como um dever, uma
tarefa que tem de se cumprir à força de trabalho; daí resulta,
tanto nas grandes como nas pequenas coisas, uma miséria geral, um
trabalho sem descanso, uma concorrência sem tréguas, um combate sem
fim, uma atividade imposta com uma tensão extrema de todas as forças
do corpo e do espírito. Milhões de homens, reunidos em nações,
concorrem para o bem público, procedendo, assim, cada indivíduo em
seu próprio interesse; caem, porém, milhares de vítimas para a
salvação comum. Umas vezes são preconceitos insensatos, outras,
uma política sutil que excita os povos à guerra; urge que o suor e
o sangue da grande massa corram em abundância para levar a bom fim
as fantasias de alguns, ou para expiar as suas faltas. Em tempo de
paz, a indústria e o comércio prosperam, as invenções operam
maravilhas, os navios sulcam os mares e transportam coisas deliciosas
de todas as partes do mundo, as ondas tragam milhares de homens. Tudo
está em movimento, uns meditam, outros procedem, o tumulto é
indescritível.
Mas qual é o alvo de tantos esforços?
Manter durante um curto espaço de tempo entes efêmeros e
atormentados, mantê-los, no caso mais favorável, em uma miséria
suportável e numa ausência de dor relativa que o tédio logo
aproveita; depois a reprodução dessa raça e a renovação do seu
curso habitual.
Os esforços sem tréguas para banir o
sofrimento só têm o resultado de o fazer mudar em figura. Na origem
aparece sob a forma da necessidade, do cuidado pelas coisas materiais
da vida. Conseguindo-se, à custa de penas, expulsar a dor sob esse
aspecto, logo se transforma e toma mil formas diferentes, segundo as
idades e as circunstâncias; é o instinto sexual, o amor apaixonado,
o ciúme, a inveja, o ódio, a ambição, o medo, a avareza, a doença
etc. etc. Se não encontra outro acesso livre, toma o manto triste e
pardo do tédio e da saciedade, e então, para combatê-la, é
preciso forjar armas. Logrando-se expulsá-la, não sem combate,
volta às suas antigas metamorfoses, e a dança recomeça…
O que ocupa todos os vivos e os conserva
em contínua atividade é a necessidade de assegurar a existência.
Mas feito isso, não sabem que mais hão de fazer. Assim, o segundo
esforço dos homens é aliviar o peso da vida, tornar-se insensível,
matar o tempo, isto é, fugir ao aborrecimento. Vemo-los, logo que se
livram de toda a miséria material e moral, logo que sacudiram dos
ombros todos os fardos, tomarem sobre eles mesmos o peso da
existência, e considerarem como um ganho toda hora que têm
conseguido passar, ainda que no fundo ela seja tirada dessa
existência, a qual se esforçam por prolongar com tanto zelo. O
aborrecimento não é um mal para desdenhar: que desespero faz
transparecer no rosto! Faz que os homens, que se amam tão pouco uns
aos outros, se procurem com todo entusiasmo; é a origem do instinto
social. O Estado considera-o como uma calamidade pública, e por
prudência toma medidas para combatê-lo.
Esse flagelo, que não é menor que o seu
extremo oposto, a fome, pode impelir os homens a todos os desvarios;
o povo precisa de panem et cirsenses [pão e circo]. O rude
sistema penitenciário da Filadélfia, fundado sobre o isolamento e a
inatividade, faz do aborrecimento um instrumento de suplício tão
terrível que mais de um condenado tem recorrido ao suicídio para
fugir dele. Se a miséria é o aguilhão perpétuo para o povo, o
tédio o é igualmente para os ricos. Na vida civil, o domingo
representa o aborrecimento e os seis dias da semana, a miséria.
A vida do homem oscila, como um pêndulo,
entre a dor e o tédio, tais são na realidade os seus dois últimos
elementos. Os homens tiveram de exprimir essa ideia de um modo
singular; depois de terem feito do inferno o lugar de todos os
tormentos e de todos os sofrimentos, que ficou para o céu?
Justamente o aborrecimento.
O homem é o mais necessitado de todos os
seres: não tem mais do que vontade, desejos encarnados, um composto
de mil necessidades. E assim vive na Terra, abandonado a si próprio,
incerto de tudo o que não seja a miséria e a necessidade que o
oprime. Por meio das exigências imperiosas, todos os dias renovadas,
o cuidado da existência preenche a vida humana. Ao mesmo tempo
atormenta-o um segundo instinto, o de perpetuar a sua raça. Ameaçado
por todos os lados pelos perigos mais diversos, tem de usar de uma
prudência sempre vigilante para lhes escapar. Com passo inquieto,
lançando em volta olhares cheios de angústia, segue o seu caminho
lutando com os acasos e com os inimigos sem número. Assim como
caminharia por entre os desertos selvagens, assim segue em plena vida
civilizada; para ele, não existe a segurança:
Qualibus in tenebris vitae, quantisque
periclis
degitur hoc aevi quod cumquest!
(Lucr. II, 15)
A vida é um mar cheio de perigos e de
turbilhões que o homem só evita à força de prudência e de
cuidados, embora saiba que, mesmo que consiga lhes escapar com
perícia e esforços, não pode, contudo, à medida que avança, sem
retardar o grande, o total, o inevitável naufrágio, a morte que
parece lhe correr ao encontro: é esse o fim supremo de tão
laboriosa navegação, para ele infinitamente pior que todos os
perigos dos quais escapou.
Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo
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