sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Frau Dukas


Do lado de fora do gabinete de Albert, sua secretária e governanta residente, Frau Helen Dukas, estava esperando o relógio terminar de bater a hora. Não gosta do que acabou de ouvir Albert dizer ao telefone: “Você vai me ligar de novo?”
Você = outra admiradora que é pura perda de tempo.
Ela entra no gabinete, trazendo consigo o aroma de cânfora. Faz tempo que Albert pensa em lhe dizer: “A substância química orgânica C10H16O é desagradável.” Mas nunca reuniu coragem para fazer isso.
Frau Dukas abre as venezianas verdes da janela principal do gabinete com um floreio, fazendo um barulho que pretendia ser uma reprimenda. A janela dá para os salgueiros-chorões, bordos e olmos da rua arborizada do subúrbio residencial.
A luz do Sol faz os olhos de Albert lacrimejarem mais. Ele os esfrega com o dorso da mão e pisca.
Frau Dukas, austera, alta e magra, é originária do sudoeste da Alemanha, filha de um comerciante judeu alemão. Sua mãe era de Hechingen, a mesma cidade da segunda esposa de Albert. Como secretária e vigia dos portões do cientista há cerca de 25 anos, ela se dedica a proporcionar a ele uma vida tranquila.
Seu quarto na casa da rua Mercer fica ao lado do de Albert, do qual é separado por um banheiro. Há também um pequeno gabinete e um quarto reservados para quando a enteada dele, Margot, o visita. E um outro foi da irmã de Albert, Maja. Faz quatro anos que Maja morreu.
Com quem o senhor estava falando? — pergunta Frau Dukas.
Uma moça chamada Mimi Beaufort. Gostei da voz dela. Da velha e querida Boston. Terra do feijão e do bacalhau, onde os Lowell só falam com os Cabot e, pelo que supomos, com os Beaufort. Famílias que só falam com Deus. Você acha que consegue descobrir quem ela é?
Ela lhe telefona por engano e o senhor quer que eu descubra quem é?
Quero. Quem nunca cometeu um erro nunca experimentou nada de novo.
Se me permite dizer, o senhor não deveria perder seu tempo.
Helen, Kreativität ist das Resultat Verschwendeter Zeit. Criatividade é resultado do tempo perdido. Descubra quem é essa Mimi Beaufort. Procure o nome na lista telefônica de Greenwich, em Connecticut. E me traga uma xícara de chocolate quente, por favor.
Albert usa chinelos surrados de couro, sem meias. Sua camisa puída, aberta no pescoço, revela uma velha camiseta azul.
Frau Dukas ajeita um cobertor em volta dos pés dele.
Nunca vi tantos cartões de aniversário — admira-se.
O que há para comemorar? Aniversários são coisas automáticas. Enfim, aniversários são para crianças. — Mais uma vez, ele secou os olhos lacrimejantes, cujo brilho contrastava com as linhas e rugas da testa. — Estou com 75 anos. Nenhum de nós está ficando mais jovem.
Ele enche o cachimbo com fumo da lata do Revelation e o acende. Uma nuvem de fumaça se eleva em ondas.
Por favor, Helen, traga meu chocolate quente.
Tudo a seu tempo.
O que está segurando, Helen?
Frau Dukas lhe entrega uma fotografia de jornal mostrando a nuvem em forma de cogumelo da bomba atômica que destruiu Hiroshima em 6 de agosto de 1945.
Umas crianças de uma escola de Lincoln, no Nebraska, lhe pediram que assine isto. Está disposto a assinar para elas?
Envolto na nuvem de fumaça do cachimbo, Albert observa a imagem, consternado.
Se for preciso.
Vou buscar sua xícara de chocolate — diz Frau Dukas, como se prometesse uma recompensa.
Deixou-o sozinho para assinar a foto. A. Einstein, 14 de março de 1954.
Em seguida, ele pega uma folha de papel e escreve:

Cento e quarenta mil almas pereceram em Hiroshima. Cem mil pessoas foram terrivelmente feridas. Setenta e quatro mil pereceram em Nagasaki. Outras 75 mil sofreram lesões fatais, por queimaduras, ferimentos e radiação gama. Em Pearl Harbor... quantos morreram? Disseram-me que foram 2.500. O poeta britânico Donne nos diz: “A morte de qualquer homem me diminui, porque faço parte da humanidade; por isso, nunca procures saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” O mundo ocidental está satisfeito, satisfeito. Eu, não. As coisas maravilhosas que vocês aprendem na escola são obra de muitas gerações, produzidas pelo esforço entusiástico e pelo trabalho infinito de todos os países do mundo. Tudo isso é posto nas mãos de vocês como sua herança, para que possam recebê-la, honrá-la, ampliá-la e, um dia, entregá-la fielmente a seus filhos. É assim que nós, mortais, alcançamos a imortalidade, nas coisas permanentes que criamos em comum.

Frau Dukas volta com o chocolate quente. Albert coloca mais fumo no cachimbo, enquanto faz um sinal com a mão para que ela se sente.
Uma carta, por favor, Helen... para Bertrand Russell. — Dita: — Concordo com seu esboço de proposição de que a perspectiva da raça humana é sombria, em um grau sem precedentes. A humanidade se encontra diante de uma alternativa clara: ou pereceremos todos ou teremos de adquirir nem que seja um pequeno grau de bom senso.
O relógio de pêndulo badala um quarto de hora.
Eis, portanto, o problema que lhe apresentamos — continua Albert —, claro, pavoroso e inescapável: daremos fim à raça humana ou deverá a humanidade renunciar à guerra? As pessoas vão se recusar a enfrentar essa alternativa porque é muito difícil abolir a guerra. Com minhas cordiais saudações, Albert Einstein.
Ele tira um dos chinelos velhos, remove uma pedrinha de granito do espaço entre dois dedos do pé e a deposita sobre a carta de Born.
Gostei da voz da moça. Pense na relatividade. Quando um homem se senta com uma moça bonita por uma hora, parece que foi um minuto. Mas ele que vá se sentar em um fogão quente por um minuto; isso lhe parecerá mais longo do que qualquer hora. Isso é relatividade. Mimi Beaufort. Beaufort é um sobrenome notável.
Por quê? — indaga Frau Dukas, em um tom que sugere não haver nada de notável nele.
Virando-se para as janelas a fim de ponderar sobre a luz do Sol que brincava de espalhar pontos luminosos sobre as árvores, Albert diz:
Significa a bela fortaleza.
A visão de um grupo de crianças negras brincando ao sol o faz sorrir.
O líder do grupo canta:
Mamãe está morando...
E o grupo canta:
Está morando onde?
Fazendo uma dança para balançar os quadris, eles cantam em uníssono:

Ora, ela mora num lugar chamado Tennessee.
Dê um pulo, Tenna, Tennessee.
Bem, nunca fui à faculdade,
Nunca fui à escola.
Mas, em matéria de boogie,
Sei dançar feito um doido.
É só ir pra frente, pra trás, prum lado e pro outro.
Pra frente, pra trás, prum lado e pro outro.

Albert se levanta com esforço e faz seu próprio boogie-woogie. Ainda de costas para Frau Dukas, diz:
Anote isto, por favor: “Restam preconceitos dos quais eu, como judeu, tenho clara consciência; mas eles não importam, se comparados à atitude dos brancos para com seus concidadãos de tez mais escura. Quanto mais me sinto norte-americano, mais essa situação me entristece. Só consigo fugir da sensação de cumplicidade com ela ao falar disso livremente.”
Para quem devo mandar? — pergunta Frau Dukas.
Para mim. Para mim, Helen. Um lembrete para mim mesmo. Agora... quero que trate o seguinte como estritamente confidencial. — Ele suspira fundo e continua: — Todos os meus relacionamentos pessoais foram um fracasso. Que homem não visitaria a própria enteada morrendo de câncer? Minha primeira esposa morreu sozinha em Zurique. Minha filha desapareceu. Não faço ideia de onde está. Nem sei se continua viva.
Por favor... não deixe que seu passado o destrua.
Meu filho... meu filho, você sabe, Helen... meu filho Eduard está em clínicas para esquizofrênicos há quase 25 anos. A terapia, o tratamento eletroconvulsivo, destruiu a memória e as aptidões cognitivas dele.
Mas não sua relação afetiva com ele.
Minha única relação afetiva é com o povo judeu. Este é o meu vínculo humano mais forte. Eu disse à rainha Isabel da Bélgica: “A estima exagerada que dedicam ao trabalho da minha vida deixa-me muito constrangido. Sinto-me obrigado a pensar em mim como um trapaceiro involuntário. Ich bin ein Betrüger [Eu sou uma fraude].” Preciso de ar puro, meu fígado está doendo.
Frau Dukas abre as janelas.
Lá fora, do rádio de um caquético sedan Buick de quatro portas, vem o som de Doris Day cantando “Secret Love”.
Albert faz um gesto de impaciência.
Vá verificar a lista telefônica, Helen.
Frau Dukas assim faz, e descobre que a residência da família Beaufort é o Beaufort Park, em Greenwich, no condado de Fairfield, Connecticut. Albert imagina como Mimi Beaufort é. Sua voz certamente guarda o eterno encanto da juventude. Ela vai se tornar uma nova amiga? Uma confidente, talvez. Um amor secreto para lhe acalmar a alma perturbada pela idade, pelas dores e mal-estares e por seus maus pressentimentos. Os raios de sol caem sobre sua escrivaninha. Ele se deleita com os desenhos. Folheia as páginas gastas da “Sonata para violino e piano em mi menor, K. 304”, de Mozart.
É uma honra ver se desdobrar tamanha ternura, tanta pureza de beleza e verdade. Tais qualidades são indestrutíveis. Como Mozart, ele acredita ter desvendado as complexidades do universo, cuja essência do eterno está além da mão do destino e da humanidade iludida. A idade nos permite sentir essas coisas.
Ele observa as sombras bruxuleantes no chão. Imagina ver nos desenhos o rosto de seus familiares, amigos e pessoas queridas. Suas amizades íntimas e mais apreciadas lhe parecem ter sido cíclicas. Um número excessivo delas evaporou. Desde seu nascimento. Faz muito tempo. Em Ulm, às onze e meia da manhã, na Bahnhofstrasse, 135, a casa destruída por um dos mais violentos ataques aéreos dos Aliados, em dezembro de 1944. Ele se lembra de ter escrito a um correspondente de cujo nome se esqueceu: “O tempo afetou [a cidade] ainda mais do que a mim.”
Será que resta algo da antiga Ulm?, pensa. E de meus amigos e entes queridos, aqueles que compuseram minha vida e me formaram? A mim: O Rosto Mais Famoso do Mundo.
Como foram gentis comigo os residentes de Ulm que pretenderam dar meu nome a uma rua! Em vez disso, os nazistas a chamaram de Fichtestrasse, em homenagem a Fichte, cuja obra Hitler lera e que era lido por outros nazistas, como Dietrich Eckart e Arnold Fanck.
Depois da guerra, ela foi rebatizada de Einsteinstrasse. A reação dele a essa notícia, enviada pelo prefeito da cidade, sempre o faz sorrir. “Existe uma rua lá que leva o meu nome. Pelo menos, não sou responsável pelo que vier a acontecer nela. Acertei ao recusar os direitos de cidadão honorário de Ulm, considerando o destino dos judeus na Alemanha nazista.”

Pega a caneta e escreve:

Tal como vocês, não há nada que eu possa fazer para ajudar minha cidade natal. Mas posso fazer algo pela história da minha intimidade juvenil. O paraíso religioso da juventude foi minha primeira tentativa de me libertar dos grilhões do “meramente pessoal”, de uma vida dominada por desejos, esperanças e sentimentos primitivos. Lá adiante fica o mundo, em toda a sua vastidão, existindo independentemente de nós, seres humanos, erguendo-se à nossa frente como um imenso e eterno enigma, ao menos parcialmente acessível à nossa inspeção e ao nosso pensamento. A contemplação desse mundo acena como uma libertação. Na infância, notei que muitos dos homens que eu aprendera a estimar e admirar haviam encontrado a liberdade e a segurança íntimas ao buscá-la. A apreensão mental desse mundo extrapessoal, no arcabouço de nossas capacidades, apresentou-se a meu pensamento, de modo meio consciente, meio inconsciente, como uma meta suprema. Homens de motivação similar, do presente e do passado, bem como as percepções que eles haviam alcançado, eram os amigos que não podiam ser perdidos. O caminho para esse paraíso não era tão confortável e atraente quanto o caminho para o paraíso religioso, porém mostrou-se confiável, e nunca me arrependi de havê-lo escolhido. A não ser, talvez, pelo fato de eu duvidar que exista um único ser senciente, em qualquer parte do mundo, que não conheça meu rosto.

R. J. Gadney, in Aqui quem fala é Albert Einstein

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