Para Theo, que nomeou esta história,
e para Nina, que traz no rosto a nossa herança. Meus iauaretês.
Para Raoni, a Onça.
Quando Niimúe criou o mundo, o fez a
partir de seu próprio corpo. O mundo é esse ser gigante que mal
distinguimos se estamos distraídos, mas que se apurarmos a vista
encontraremos em seus detalhes. Há uma elegância no mundo por vezes
despercebida na pressa com que as pessoas vão se acostumando a
viver. Em seus cabelos se emaranham de igual modo os fios de fogo, de
água, de vento e de ar. Em seu rosto se incrustam jaguares e
macacos, ratos e antílopes, formigas e quatis, beija-flores e
serpentes, todo sortimento de animais que conhecemos, além daqueles
que desconhecemos, os animais sem nome, ainda não descobertos, não
catalogados, sem taxonomia, os animais desaparecidos.
Uma gigantesca jiboia circunda a cintura
do mundo e se fecha, engolindo a si própria. Inhames, batatas e
macaxeiras calçam seus pés, trepadeiras, troncos, cipós, orquídeas
e flores de diversas cores e formatos conformam-se em peitoral,
braços, pernas, sexo. Em suas unhas escarpadas de rochas e cristais
irrompem folhagens ora miúdas, ora de formidável tamanho, abrindo
fendas em seus corações minerais. O sexo do mundo é instável, ora
macho, ora fêmea, ora macho e fêmea, ora algo que não podemos
definir com palavras, esse meio insustentável para a mensagem. A
aparência do mundo é também instável. Muitas vezes seu rosto se
afigura como que feito de legumes e frutas, árvores milenares
irrompem de protuberâncias na testa, como chifres. Muitas vezes
assume o aspecto de uma grande e dessemelhante ave. Seus olhos, no
entanto, são sempre faíscas multicoloridas.
Niimúe ofereceu sua criação aos
primeiros donos, os animais primordiais. É com eles que as pessoas
precisam negociar para comer, para beber, para construir casas,
edifícios, iglus, taperas, malocas, favelas. É a eles que se deve
prestar contas do minério extraído até que a terra vire ferida em
crosta, das caldeiras explodidas, dos carburadores entupidos, dos
rios envenenados e das minúsculas partículas de plástico que
incham no ventre dos oceanos. É a eles que deveremos prestar contas.
E eles cobrarão.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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